Pedinte

Saio para trabalhar. Estou atrasado. Ao me aproximar do ponto o meu ônibus está passando. Corro, sinalizo, mas o motorista me ignora, com um sorrisinho irônico que não pude deixar de notar. Se eu fosse uma mulher linda, de atributos invejáveis, duvido que ele não pararia. Perco o ônibus. O próximo é daqui 20 minutos, se tudo estiver normal.

Estou só no ponto. Um mendigo se aproxima e me pede uma moedinha. Sua presença me incomoda. Aquele odor característico dos moradores de rua me incomoda. Para meu espanto, não está cheirando a álcool. Não dou atenção. Que sorte, está vindo um ônibus. Salvo daquele incômodo!

Dias depois, me atraso de novo. Penso comigo: “Preciso acordar mais cedo ou perderei o emprego. Nesta crise não posso dar bobeira”. Sozinho novamente. Quem me aparece? Sim, o mendigo. Dessa vez o ônibus salvador não veio.

Ele me pede uma moeda. Como todo bom brasileiro, odeio andar com moedas. Aquele peso que não vale quase nada. Ofereço 2 reais. Fico surpreso pois ele recusa gentilmente. Diz que realmente quer apenas uma moedinha. Agradece a atenção e sai alimentando a sua pequena matilha de cães.

Aquela atitude me deixa desacorçoado. Todo mundo sabe que a tal da moedinha é apenas retórica. Eles querem cédulas. Alguns olham feio se você dá a de 2 reais. Querem 5 ou 10. Afinal, este é o preço da “pedra” ou da “trouxinha”. E a biqueira não aceita moeda. Por que ele recusou, então?

Greve de ônibus. Chego mais cedo ao ponto. Lá vem ele de novo! Me lembrou o famoso narrador nos fatídicos 7 a 1. Mas desta vez o sentimento foi diferente. Inconscientemente, acho que já me preparei para encontrá-lo. Pede a moeda. Dessa vez eu tenho. Ele agradece com um sincero sorriso falhado. E sai alegre, alimentando a matilha: Totó, Gustim, Fucô, Riguel. Sei os nomes porque ele, alegremente e em voz alta, chama um a um.

Nada de ônibus. A padaria abre. Resolvo tomar um café. Penso em como farei pra chegar ao trabalho. Não tenho dinheiro pro táxi. Minha opção é tão somente o bom e velho, velho mesmo, “busão”. Penso também naquele homem e seus cães amigos. Tomo um cafezinho e mastigo um delicioso pão com manteiga. Margarina, na verdade.

Volto ao ponto lentamente, reflexivo, pensativo. No meio da pracinha me deparo com o chafariz desativado. Nunca havia prestado atenção nele. No pequeno tanque uma água turva, fétida, mistura de água da chuva e urina. Densa, quase um lamaçal. Paro. Observo. Consigo ver ao fundo muitas moedinhas de centavos. Duvido que alguém seja capaz de fazer pedidos e lançar as moedas naquele quase esgoto.

Creio que só continuam ali pelo ínfimo valor. Não vale o sacrifício tentar retirá-las de lá. Me vem à cabeça o mendigo. Pede, as pessoas dão e aí ele joga fora? Não teria coragem de fazer isso. Ou teria. Será? Surge um ônibus ao longe. Corro ao ponto para pegá-lo. Abarrotado. Apinhado de gente. Me espremo. Consigo entrar.

Domingo de manhã. Resolvo fazer uma caminhada. Avisto aquele homem embaixo da marquise, alimentando seus fiéis escudeiros. Hoje eu me vingo. Hoje sou eu que vou importuná-lo. Tenho muito tempo livre. Pretendo tirar a questão das moedas a limpo.

Começamos a conversar. Minha intenção era repreendê-lo. Mentira! Queria era humilhá-lo mesmo. Estava ali a minha chance. Ele começa a contar a sua historia. Um dia já fora como eu. Estudou. Tinha trabalho. Menosprezava, mesmo sem querer, os mais desafortunados. Tinha casa, família, amigos. Para estes o tratamento era bastante diferenciado. Confiava em todos. Mas era ingênuo. Fora passado para trás. Perdeu tudo.

Aquilo me deixou atordoado. Quantos iguais a ele devem estar nessa situação. Poderia ser um familiar, um conhecido. Poderia ser eu. Porém, na minha rotina corrida eu nunca parei para pensar nessa possibilidade. Hoje tenho casa e emprego. E amanhã, terei?

Ele prossegue. Diz que perdeu quase tudo, menos a dignidade. É um cara forte. Não se entregou aos vícios. Hoje é feliz com seus verdadeiros e leais amigos, os cães. Afirma que não trocaria essa vida por nada nesse mundo.

Sua lucidez e segurança me impressiona. Já o vejo com outros olhos. Quase que uma admiração. Mesmo assim não desisto da empreitada. Quero saber das moedas. É ele que as joga fora? Por que? Não se sente mal com isso?

Sem nenhuma culpa ele assume que sim. Mas só joga as muito pequenas, de baixo valor, porque infelizmente nem pra eles têm serventia. Se juntam muitas delas para comprar um pãozinho, um cafezinho, os comerciantes se incomodam em ter que contar; não querem receber. Muitas vezes eles são xingados, defenestrados, escorraçados. Por isso não as utilizam. No máximo guardam-nas como um souvenir. As de 25 e 50 centavos ele costuma compartilhar com os outros moradores de rua. Eles têm um acordo tácito. Os que recolhem mais compartilham com os que não tiveram tanta “sorte”. E assim a vida segue naquela pequena comunidade sui generis.

Nesse momento já estou disfarçando as lágrimas e me odiando pela pequenez do meu caráter acerca daqueles pobres coitados. Nisso, observo ali, num cantinho, em meio aos trapos que ele usa para se defender do frio, um pote transparente com algumas poucas moedas dentro. Penso: se ele não jogasse fora tantas moedas, já teria enchido vários destes.

Então lhe pergunto: Por que jogar fora as moedas pequenas? Ele olha no fundo dos meus olhos e diz que tem uma esperança enorme no ser humano. Decidiu criar uma forma de mensurar esta esperança. Ele fica o dia todo observando as pessoas. Cada boa ação que ele presencia, coloca uma moeda no pote. E para cada ação ofensiva, desdenhosa, egoísta, para cada mal trato com o próximo, ao final do dia ele arremessa as moedas na lama do chafariz.

Faz isso há 5 anos. Aparenta ter uns 50. Com um sorriso misterioso, misto de alegria e confiança, reflexão e dúvida, um sorriso mais misterioso que o da Monalisa, ele encerra a conversa dizendo, com absoluta determinação, que não há de morrer antes de ver aquele pote cheio.

Despede-se e sai caminhando tranquilamente, orgulhoso, acompanhado da bela matilha, seus leais companheiros.