Palabraso!

09/05/2018

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Continuavam sua viagem pelo Chile, para o Sul. Tinham acabado de descer de uma carona que os deixou em Valdívia, cidade onde estava ocorrendo o campeonato Sul Americano de Basquete de 1977.

Foram para a praça central, da República, arborizada, limpa, cuidada. Vazia! Eram seis horas da tarde e ainda não estava anoitecendo, sol claro e brilhante no céu. Pássaros faziam algazarra de final de dia nas árvores, um grande barulho! Não sabiam qual pássaro era. Sentaram nos bancos para descansar e definir o que fariam ali. Havia muitos cartazes fixados nas paredes, janelas de bares, postes, caules de árvores, sobre o torneio e sabiam que o Brasil faria a final com a Argentina.

Iriam até o hotel da delegação e ver o que conseguiriam, quem sabe entradas para o jogo, conversar com os jogadores, pois "caroneiros brasileiros" como eles, não haviam cruzado por outros pela estrada, e certamente seriam uma surpresa para o time!

Seu amigo precisou ir ao banheiro e foi ao restaurante em frente à praça. Ele aguardou. Demorou muito, resolveu ir até lá ver o que ocorria. Mais de quinze minutos! Poderia o amigo estar com problemas intestinais!

Pegou as "trouxas" - bem que pareciam, pois eram duas malinhas de excursão com logotipo de empresa de turismo - e foi até onde o amigo entrara, ali perto. Atravessa a rua deserta - havia toque de recolher no país, "toque de queda" como falavam eles, já anoitecia e depois das 20 horas ninguém poderia estar nas ruas. Era preso! Não tinham ainda onde dormir.

Ele entra no restaurante e escuta alto e forte:

- Ei Macaquitooo...! - Eram os benditos uruguaios, "o vermelho e o negro", que lhes deram a primeira carona no início da viagem. Era a terceira vez que se encontravam inesperadamente. Muita coincidência!

Estavam jantando e convidaram para comer com eles, o que não regateou - o amigo já estava (deve ter se esquecido dele, ou sabia que pela demora viria ao seu encontro!). Sentou e jantaram alegremente - "negro" mudo - "vermelho" sempre falante, contando o que tinha ocorrido com eles na viagem, até aquele momento.

Iriam seguir para Osorno naquela noite - fim de linha chileno dos uruguaios e ponto final deles também, no Chile; depois, para Bariloche, pela região dos lagos, mesmo trajeto dos dois grupos. Muitas coincidências entre eles.

Os "macaquitos" não tinham onde ficar em Valdívia e perguntaram para o dono do local se teria como indicar alguma pensão barata, já eram quase dezenove e trinta da noite e estavam preocupados com o "toque de queda". Indicou local perto, dois quarteirões de onde estavam. Os uruguaios pagaram a conta e os levaram para a pensão. Chegaram, desceram e na despedida ele pede aos uruguaios que passe os endereços.

-"No necesita! Vamos a encontrarnos en Osorno. Por supuesto! Seguro!"- diz "vermelho".

-"Seguro, seguro!" - replica monossilabicamente "negro"!

Ele não confiava muito neste "por supuesto" - com certeza na sua língua - coincidências poderiam não ocorrer e não mais contato teriam! Eles não deram sua "dirección", abraços calorosos de despedida, como se fosse o ultimo, risos e :

"- Adiós "macaquitos", nos encontraremos en Osorno, seguro!" - Foram embora na deles, ou já nossa, caminhonete e nunca mais nos vimos... As coincidências acabaram-se ali, naquela despedida, como ele previra! Os fugazes encontros que nossas vidas têm e suas coincidências imprevistas!

Instalaram-se na pensão: muito arrumadinha e limpa!

Dia seguinte, no café da manhã, perguntam ao dono sobre o local do jogo, quando seria e se sabia onde estava a seleção brasileira de basquete. Indicou o ginásio, a data da final - seria contra a Argentina dali a dois dias, mas não sabia onde estava a delegação do Brasil.

Saíram pela cidade: - ruas largas, casas sem grades e com jardins em suas frentes, pouco trânsito, prédio quase nenhum, pacata e tranquila; - povo sorridente e amistoso lhes respondendo sempre as perguntas, indicaram onde estavam "los brasileños".

Chegam ao hotel da delegação. Param na entrada e avistam dois jogadores sentados em uma mesa no salão. Estavam tomando iogurte e conversando, param e os encaram, os dois maltrapilhos de pé ali no hall do hotel!

- Brasileiros? - pergunta o cabeludo encaracolado com o copo na mão. - Sim, somos!

- Não acredito! O que vocês estão fazendo aqui? Que loucura! São os únicos brasileiros aqui! Venham sentar aqui conosco.

Foram e começaram a contar a sua epopeia, as caronas com os uruguaios, Alejandro Bravo, Miguelito, enfim tudo o que acontecera até aquele momento. - De carona, que loucura! Não acredito! - replica espantado e incrédulo o cabeludo.

Ele ia chamando outros jogadores, que vinham de seus quartos - iam almoçar com a delegação argentina: a final seria no dia seguinte e esse era o ritual da organização do campeonato - fazendo grande alarde sobre a viagem dos dois "macaquitos" brasileiros - o cabeludo basqueteiro adorou o apelido dos uruguaios. Virou aglomeração de mais de um metro e noventa de altura em volta deles! Sentiram-se os mais importantes de todos ali, pois história como a deles, eles não tinham! Foram convidados para almoçar com o time brasileiro junto com o argentino, e claro, foram. Entraram no ônibus junto com os jogadores - já eram jogadores também - e conversaram bastante.

Havia no ônibus, repórter de televisão brasileira que faria a cobertura da partida para ser apresentada no sábado seguinte no Brasil, era terça feira e o jogo seria na quarta-feira, dia seguinte. Almoçaram com os argentinos, provocações seguidas feitas entre eles, comida boa, farta e de graça. Muita sorte a deles! Ganharam duas "butacas", assentos, junto da quadra para o jogo da final. Ficaram exultantes de alegria. A viagem já estava valendo a pena!

Voltaram no ônibus com a delegação que parou para eles descerem na Praça da República. Desceram e foram gozados pelo cabeludo e o resto da equipe:

- Tchau "macaquitos", amanhã lá na final, hein! Vamos ganhar!

Viraram conhecidos na cidade - a praça estava com algumas pessoas que os viram descer do ônibus. Algumas acharam que eram jogadores também - eram altos, mas não tão altos quanto os jogadores e aproveitaram a fama - vieram até eles perguntado os nomes, se iriam ganhar amanhã - eles os chilenos não gostavam dos gringos vizinhos e iriam torcer pelo time brasileiro. Deram autógrafo até! Foi a fama do acaso, curtiram!

Foram para a pousada e resolveram fazer um cartaz para que fosse visto durante a transmissão do jogo pela TV. Teria que ser chamativo. Ele teve uma ideia, meia louca, mas que chamaria com certeza a atenção. Foram comprar cartolina e caneta de ponta grossa e larga para escrever o cartaz."Brasil é du caralh..." - escreveu em preto e em letras grandes . . O amigo não acreditava no que via.

- Será que vão saber que é palavrão, chamam a polícia e vamos presos, hein? - diz o amigo.

- Não, não é a mesma coisa não... A pronúncia é diferente: aqui é "carajo", muito diferente! - responde ele, rindo de gozação. Não sabia se era ou não essa a palavra.

-Pronúncia diferente, é? Carajo! - ria o amigo também...

Chega o dia, ou a noite da batalha. Fizeram um lanche regado a bom vinho chileno, ficaram "altinhos" e foram para o ginásio com o cartaz que ele embrulhara sob o casaco.

Chegam, sentam em suas "butacas" junto da quadra perto de uma das cestas. Os times se aqueciam, corriam, lançavam a bola na cesta, acertavam.

Ele desembrulha o cartaz e a cada cesta de treinamento dos brasileiros - coincidentemente estavam se aquecendo na cesta do seu lado - balança o "Brasil é du caralh..."!Os jogadores no começo não entenderam bem o que estava escrito, mas quando decifraram, não acreditaram! Começaram a rir e espalhar para todos da brincadeira dos "macaquitos".Veio o cabeludo rindo gostosamente, dizendo:

- Provoca os gringos! A cada cesta que fizermos vocês mostram o cartaz, certo!

- Claro! Por isso que fizemos ele, pra encher o saco dos gringos! - responde.

O jogo começa e a cada cesta brasileira, ele e o amigo pulam de alegria berrando a frase: "Brasil é du caralh..." Os chilenos vendo a animação dos "brasileños", os adotam e gritam também a frase! Detestavam os argentinos. Parecia inacreditável o que ocorria, duas pessoas mobilizando a torcida toda a favor e com um palavrão! Eles também não acreditavam!

Brasil ganhava e chega o intervalo do jogo. Viraram a atração da noite, além, claro, da partida que estava emocionante. Mas eles eram, sem dúvida, a novidade ou diferença da noite! Veio repórter da TV local, pergunta:

- "Señor no es un palabraso que está escrito en el cartel? No es "carajo"?

- "No señor! No es palabraso, no señor! Es lo mismo que "mui bueno"! - responde ele. O amigo ri descontroladamente.

- "No es um palabraso! Es mui bueno...Esta foi Incrível!" - diz, rindo para o amigo!

Recomeça o jogo, cestas, cartaz, gritaria e o Brasil vence os argentinos! Eles não aguentam de felicidade e invadem a quadra, abraçam os jogadores - o cabeludo fala para eles que foram a "alma do time" e que o cartaz era o "maior barato"! Começaram, os jogadores, a dar a volta olímpica na quadra, em comemoração a conquista, eles atrás empunhando o cartaz e quando passam pela torcida argentina, ele se vira para ela e o mostra, gritando: Brasil, Brasil... Um torcedor argentino pega o cartaz e o rasga! Ele tem intenção de pular para pegar quando os jogadores brasileiros o seguram, para não sair briga na quadra.

Ficou chateado, queria guardar como recordação da conquista e da empreitada cômica e, até certo ponto, absurda, que tiveram lá. Coisa de televisão. Os seus quinze minutos de fama!

Mas foram memoráveis e verdadeiros esses acontecimentos, inesquecíveis!

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 25/11/2020
Código do texto: T7120233
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