Cães larápios

Cães larápios (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)

Chegou noite de sexta-feira, possivelmente 30 de novembro. Dona Maria estava muito feliz. Nos sessenta e cinco anos de idade, como uma trabalhadora honesta, trabalhando em casas de famílias, semeando, plantando, colhendo alimentos, fazendo e vendendo doces, ajudando a quem lhe pedia auxílio, no mesmo dia acabou tudo isso. Um pouco mais cedo, ela recebeu o comunicado de que foi aposentada pela previdência oficial. O pedido foi deferido e ela receberia uma boa parcela em dinheiro. Ia comprar muita coisa de que precisava. Alguns novos talheres, roupas novas, presentes para os três filhos, uma pequena reforma na casa e outros sonhos de um ser humano.

No pequeno aparelho celular, recebido de presente pelos filhos, noras, netos e do esposo, ela recebeu a notícia de que estaria aposentada. O pagamento sairia na próxima quarta-feira, lá no banco, situado na praça, perto da igreja Matriz.

Muito feliz, imediatamente ligou para os familiares. Foi rapidamente à igreja para agradecer a Deus os anos vividos, sofridos e trabalhados. Saindo do presbitério, logo encontrou a irmã. Contou-lhe a notícia e as duas se abraçaram, se festejaram e colocaram a conversa em dia, pois sentaram-se no banco da praça e lá ficaram por bastante tempo.

- Minha irmã Maria. Temos uma promessa a cumprir. Quando você entrou com o pedido de aposentadoria, mencionou que queria fazer um belo almoço para nós, lá no sítio de meu filho. Lembra-se?

- Lembro, minha querida irmã. Parece que ele terminou de fazer o forno à lenha, utilizando pedaços de cupim. Eu disse que faria um almoção; com arroz, feijão tutu, macarronada, tomate, cebola, abobrinha frita, pernil assado, com limão, cebola, batata, azeitona. Para acompanhar, uma linda e deliciosa salada e de sobremesa doce de laranja da terra com queijo.

- É a hora, minha irmã.

- Certo. Vamos marcar para o domingo daqui a quinze dias, quando eu receber o dinheiro para comprar as coisas.

- Não precisa, minha irmã.

- Seus filhos, seus netos, suas noras, sua irmã, seu marido, seu cunhado já prepararam tudo. Será neste domingo. O forno já está preparado. Todos os mantimentos já estão comprados e, para variar, convidamos o Kafu, aquele músico, que gosta de tocar violão, para tocar e cantar no almoço.

- Que bom, minha querida irmã Joana.

Após este diálogo, tudo era festa para Dona Maria. Ela não se via o momento de o esposo chegar em casa para contar-lhe a novidade. O esposo já era aposentado, mas gostava de fazer “bicos”. Nesta semana, ele se encontrava a roçar um pasto, com distância aproximada de quatro quilômetros da cidade.

O fim de semana chegou rápido. Com um piscar de olhos, já era o domingo. Cedo, muito cedo, os automóveis já estavam reunidos e partiram para o sítio pertencente à família de Joana. Netos, cunhados, genros, alguns amigos, todos estavam lá para prestigiar aquele lindo almoço.

No dia anterior, as duas irmãs foram para o sítio. Lá prepararam tudo, desde os temperos, as saladas, o preparo da carne, o aquecimento do forno, tudo. Estavam todos os ingredientes classificados em nota máxima, ou seja, estavam tudo dentro dos conformes.

Marília, neta de Joana. Afilhada de Dona Maria. Ela era a encarregada de olhar o pernil que se assava no forno. Ela estava muito apreensiva, pois era estudante do curso de medicina e estava cursando o último ano. Dependia de saber da nota de uma das disciplinas estudadas. Somente precisava saber e já se preparava para receber a colação de grau, que seria no próximo mês de março, do ano seguinte.

As pessoas se juntaram e a festa começou. Muitos abraços, muitos parabéns, muitos risos. O esposo de Maria contando piadas, a neta cantando junto ao Kafu. Enfim, a manhã estava tão bonita que até os pássaros permaneciam nas árvores apreciando. Voando bem alto, uma turma de urubus aproveitava a corrente quente em voos planadores. O sol aos poucos ia esquentando. Uma pouco mais ao sul, surgiam algumas negras nuvens. O calor estava forte porque era a transição da primavera com o verão.

Todos queriam ver o que tinha de repertório do coitado do Kafu, que se transpirava, chegando ao ponto de molhar a fina camisa de malha, na cor amarela, com sua marca comercial.

Marília, aos poucos, se concentrava próximo ao forno. Sempre atenta ao celular e esperando notícias sobre a nota da disciplina. Ficava meio distraída, mas logo era animada pelo irmão menor, que dizia:

- “Lia”, carinhosamente era apelidada, como está o pernil. Estou com fome e quero comer um pedaço.

Impaciente, ela o respondia e olhando ao celular, não dava tanta importância ao irmão.

- Está pronto, Lia?

- Não encha, menino. Daqui a dois minutos vou tirá-lo do forno. A bandeja está aqui. Diga a todos que comecem o almoço. Tem frango, tem costela e tem muita coisa. Já, eu levo o pernil.

O irmão estava ansioso, porque perto do forno de cupim, quatros cães do sítio estavam atentos ali. O cheiro do pernil era tão bom que os convidados percebiam o tempero de longe.

Feliz, Marília retirou o pernil do forno. Estava muito quente, mas ela estava bem preparada, com luvas e não sentia o calor do forno.

Com muito cuidado, ela colocou o pernil na bandeja, colocou alguns enfeites e o preparou para levá-lo à mesa, onde os convidados estavam. Quando pegou a bandeja, o telefone celular tocou. Pela imagem da tela, era o noivo, que estava na capital e ia dar-lhe a notícia. As notas foram suficientes para a aprovação. Ela já era médica, com sonhos de especialização em pediatria. O sinal estava ruim, obrigando que ela fosse para um lugar mais alto.

Ela, toda empolgada, pôs-se a bandeja em um pequeno toco de árvore, de uns trinta centímetros de altura. Pegou o celular e foi tentando conversar com o noivo. A cada passo que ela dava para cima, o sinal ia melhorando um pouco. Pelo menos uns duzentos passos, ela conseguia conversar tranquilamente com o noivo, que disse que ela já era médica.

Os convidados deliciavam do almoço, mesmo não comendo o pernil. Comiam as saladas, o arroz, os frangos caipiras, as costelas, enfim, uma grande fartura de alimentos para o almoço.

Dona Maria estava feliz e mal podia compartilhar a felicidade com os amigos. O marido estava todo feliz e nos anos de casamento, ela nunca o viu tão feliz assim. Olhava para os filhos, para os netos e netas, para as noras. Todos estavam felizes. Ela, porém, estava preocupada com a demora do pernil. Não falou nada com ninguém. Conversava, sorria, brincava e de vez em quando percebia que um cão passou correndo rapidamente pelo recinto. Estava tão apressado que não parou. Ele era muito manso, mas não quis mesmo abanar a cauda para ninguém.

Alguns minutos, Dona Maria percebe que o outro cão, de nome Sarandi, passou correndo pelo recinto. Ele estava com algo na boca. Passou muito rápido.

Preocupada com a cena, ela pediu licença e disse:

- Vocês me aguardam aqui, pois verificarei se o pernil está pronto. A Lia está demorando muito.

Saindo apressadamente, Maria logo avistou que a Lia não estava perto do forno. Olhou para o lado de cima e a viu perto de uma árvore e conversava ao telefone. Fitou na direção do forno e viu que os dois cães estavam por perto e se rosnavam entre eles. Aproximou-se um pouco mais e contemplou que os dois cães puxavam entre ele o último pedaço do pernil assado.

Comovente com a cena, ela ficou parada. Dos olhos, saíram algumas lágrimas, pois a Lia deixou que os cães roubassem o pernil e se deliciassem daquilo que ela tinha feito a promessa.

Cabisbaixa, ela se dirigiu à mesa e comunicou o acontecido. Neste momento, quase foi derrubada, porque os dois cães bulhavam entre si pelos pedaços e ossos do pernil.

Foi tristeza para ela e para os convidados, que não comeriam o pernil assado e tão comentado por Dona Maria.

Repentinamente, Lia chega e diz que passou na prova. Já era considerada médica. Foi festa, mas ao mesmo tempo ela viu a cena dos cães que dilaceravam o último pedaço do pernil.

Com lágrimas saindo dos olhos, ela disse que esperava pela notícia da nota. Tirou o pernil do forno e o colocou em um toco, porque o sinal do telefone não estava bom. Subiu um pouco para o lado de cima e não viu mais nada.

Dona Maria se levantou e disse:

- Não tem problema não. Em março, será a colação de grau dela. Neste mesmo local, com as mesmas pessoas, vou fazer outro pernil.

- Todos estão de acordo?

Em um grande sim, todos concordaram. Foi festa dupla, pois a afilhada já era médica.

No mês de março fizeram os preparativos. As mesmas coisas, mas foi a Márcia quem olhou o forno. Márcia fez um concurso para ser professora e aguardava o resultado. O namorado estava na capital para saber o resultado. O sinal de telefone estava ruim e Márcia precisou ir mais para o alto para falar com o namorado.

Imagina o que aconteceu?

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 30/01/2021
Código do texto: T7172583
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