Na roça

Corriam os finais dos anos cinquenta. Menina raquítica, cabelos lisos, escorridos e ralos, de índio , pele clara, meu pai me chamava de rata branca, o nariz era vermelho, feito palhaço, sapeca, levada a breca, como dizia minha mãe, subia no topo de qualquer árvore para ver o céu mais de perto, sentir o sabor das estrelas, ver o horizonte dar a luz à lua, aspirar o aroma da manhã de inverno, outono, primavera, ou verão , o perfume das flores da ameixeira, dos laranjais, ser beijada pelo vento, ora calmo, carinhoso, ora bruto, furioso, indomável, formando redemoinhos onde acreditávamos estar o capeta, tocada pelo canto dos pássaros em revoada, canários, sabiás da laranjeira, azulões, pintassilgos, os mil pássaros que sobrevoavam o céu azul da minha infância, tão enorme, infinito. Misterioso e encantador. Inteiro meu. Acordava muito cedo. No sítio a gente dormia com as galinhas cocorocó já no puleiro, com o som dos grilos e da cigarra, os susurros do vento lá fora , o coaxar dos sapos no corguinho, os passos imaginários do lobisomem no quintal, os acordes do violão de meu pai, o canto doce da minha mãe, a lua nascendo como uma bola de fogo, lá no horizonte, nas colinas do sítio do Seu Abilio, homem bom, sempre de chapéu de aba, botas de cano longo, cunversador qui só, tinha uma fllha anã , diferente para nós crianças, porque já era adulta e tinha o nosso tamanho... era policial, morria de medo dele. Minha mãe dizia que o homem prendia menina danada. Acordávamos com a sinfonia dos pássaros, o barulho dos gravetos de peroba da mãe colocando na boca do fogão de barro à lenha. O cheiro do café colhido por meu pai, torrado por ela no velho torrador de lata, ia lá no quarto dizer q o sol já já ia nascer. Eu nem passava pela cozinha, os olhos impregnados de ramela, ia direto para o curral, enlameado de estrume , onde meu pai tirava o leite da Brioza, minha vaca, tucura, sem raça, sem pedigree , ou da jersinha, vaca leiteira, de estimação da família. Meu pai espirrava as tetas da vaca em minha boca, que delícia de leite, se tinha bactérias, nem sabíamos.Tudo tão natural. Pronto, estava alimentada. Corria descalça, pisando nos tocos, nos vidros, nos estrumes, os pés cobertos de bicho de pé , pro pomar no entorno da nossa casa. Ali , no outono, eu me fartava de tangerina, mexerica, laranja, de toda variedade: abacaxi, lima, baiana, e outras frutas do pomar: cana, jabuticaba, guabiroba, pitanga, manga, goiaba, araticum . A parreira de uva , quase no pé da mata virgem, nos servia só à época do Natal. Nas lavouras brancas, encontrávamos a maria preta e a fruta do juá , agrestes, mas q a gente apreciava mais que maçã argentina. Essas a gente comia só na casa da vovó, na cidade, qdo ficava doente: catapora, sarampo, varicela, caxumba, barriga desandada. Sem fome nenhuma para apreciá-la. Na roça ninguém morria de fome. Minha mãe fazia comida cedo. Às oito o feijão já estava no caldeirão de ferro preto cozinhando. Às dez todo mundo subia pra roça, levar a marmita pro pai , que, exaustivamente, trabalhava a terra roxa das lavoras de café, arroz, feijão, milho, ervilha.. Quando meu pai matava porco era um misto de alegria e tristeza. Os porcos eram nossos animais de estimação. Meu saudoso irmão Lote dava mamadeira pra eles dentro de casa.Literalmente, nós dávamos nome aos porcos : Totó, Tetê, Titica,Tuquinha... Ficou na memória o zumbido da faca por meu pai amolada , a bacia enorme de alumínio, onde o sangue do porco escorria., os panos de saco... um verdadeiro ritual, um sacrifício. Igual ao do Velho Testamento de Abraão, Isaac, Jacó. Mas não era para os Deuses, era pra nós, crianças em crescimento, - carecia de comer carne, dizia meu pai. Escondíamos o rosto e tampávamos os ouvidos pra não ver a facada fatal e ouvir o grito doído do pobre porquinho. Depois a gente esquecia. Passava. Era preciso. Todos ajudávamos no preparo da linguiça. A mãe temperava a carne do porco - moída na máquina de alumínio pregada na mesa de madeira maciça, de peroba - com pimenta malagueta do quintal , sal, e muita alegria. Em seguida, passava a carne temperada através de um funil, para tripa que o pai comprava na venda do Seu Evaristo, no Patrimônio. Prontas, eram colocadas em um varal na varanda anexa à cozinha, bem ventilada, onde ficavam para curtir, e não estragar. Ali dividiam o espaço com as réstias de alho, de cebola, trançadas por meu pai, cascas de laranja, que a mãe usava pra ajudar a acender o fogo. A gente fazia a mãe fritar uns pedaços da linguiça ainda verde, como dizia dona Chiquita , no mesmo dia. Lombrigas é que não faltavam em nossas barrigas... à época , eram tratadas com coco , sementes de abóbora madura torradas no forno de barro, e outras ervas, como a hortelã .... ou benzidas na casa de Dona Pricidona, benzedeira famosa... curava qualquer doença, de sarampo à tosse cumprida. Tantas boas lembranças, com aroma de terra molhada... sol nascente, inocência. Cheiro da felicidade.

Bemtevi
Enviado por Bemtevi em 04/05/2021
Código do texto: T7247703
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