Dominó

Sempre materializei as coisas boas da vida sob um dia ensolarado. Sabe... como os primeiros desenhos de uma criança: a beleza do tom verde escuro do gramado, do azul claro do céu e do resplandecente e puro raio de sol colorido em amarelo amarelo. Nem escuro nem claro, só amarelo amarelo. E assim, por um sentimento infantil e cego na afirmação de uma certeza, pintava o palco eterno da alegria. Nunca vi beleza na noite, aquela tão querida dos amantes e dos vagabundos. Nunca sequer pintei a noite, não saberia se foi pelo costume ou pela busca de manter aquela eterna felicidade materializada em lápis de cor. Enfim... nunca entendi a beleza da noite e menos ainda a subserviência do dia para com ela. Como pode o dia, em todo o seu poder, deixar que as trevas vençam só para cumprir o capricho da ordem natural das coisas?

Há coisas que não se questionam. Descobri isso com o passar dos anos. E, com o passar dos anos, também, empenhei-me numa tarefa impossível: jogar dominó. Aprendi a jogar dominó aos 8 anos de idade. Não que com tal idade fosse capaz de bater na mesa de qualquer boteco para desafiar qualquer maldito a uma partida. Peço que não me interprete mal! Só sabia colar as peças casadas por números e ordem (talvez cores, mas isso depende das peças que se usam para o jogo e suas qualidades). Creio que ainda hoje não mudou muita coisa quanto a minha destreza com o jogo, mas afirmo que jogo bem melhor. Como disse, aprendi a jogar aos 8 anos e quem me ensinou a magnífica prática foi meu avô. Nunca. Mas nunca ganhei dele uma partida sequer. Um mestre na arte. Não havia muita conversa, lembro. Afinal, não se abre muito a boca em velórios, brigas entre amigos, discussões com a esposa e num jogo de dominó com o avô, certo? O momento de sentar – se à mesa e mexer as peças era uma fenda entre avô e neto. Era perceptível o abismo entre nós a cada barulho que as peças faziam sobre a mesa de madeira maciça. A ternura, creio eu, morava apenas no café que ele passava para bebermos enquanto jogávamos. E só. Antes que me estenda sobre o humanismo daquele café, tenho que ressaltar que já perdi muito para ele.

Não havia hora para jogar. Qualquer hora era hora para o dominó. Fui crescendo distante do meu avô, mas o hábito criou raiz. Era praticamente todo dia nos mais variados lugares. Não sei diferenciar bem quais são os limites entre o hábito e o vício. Entretanto, pelo ego que me cabe nesse momento, digo que era somente hábito (um hábito viciante talvez).

Mudei para a capital há um bom tempo devido ao divórcio dos meus pais. Poderia dizer que os muitos porres, festas e trabalhos da faculdade, propostas de emprego negadas e alguns foras de garotas diriam com exatidão sobre o tempo em que me ausentei desta mesa velha mesa de madeira maciça e da presença do meu velho avô.

Coisa magica é o tempo.

- E a faculdade, Léo?

- Sim, vô... é o meu último semestre.

Além da mesa, haviam outras coisas que remetiam o passado pela memória: o vaso de vidro azul com um arranjo artificial de copos de leite na mesa de centro, o carpete verde musgo com uma mandala branca central, uma cortina improvisada com arame e uma toalha de mesa embaixo da pia e a mesma disputa de belezas na janela da cozinha entre a gaiola com um canário da terra. O sol agonizante do fim de tarde era como quando voltava da escola pra jogar dominó. Tudo era muito igual e muito diferente também, pois não havia agora muita conversa entre nós. Talvez não houvesse muito o que conversar hoje.

- Esse é o Querubim, Vô? – Puxei assunto apontando para a janela da cozinha.

- Não... esse é o Serafim.

- Não lembro desse.

- Esse é novo. É bom de canto o bicho. Mas não é tão bom quanto o Querubim.

- O que houve com o Querubim, Vô?

- Uai! O que mais? Morreu. – Disse na serenidade de um anjo que nega sua entrada ao paraíso.

E nos calamos novamente naquela tarde. Talvez não houvesse mesmo o que conversar. Era possível ouvir claramente os segundos de um despertador chinês batendo na parede conjugada da casa ao lado juntamente às risadas dos vizinhos.

- Depois do Querubim veio o Miguel Arcanjo. Miguel Arcanjo não durou muito. Tava amuado, tadinho. Agora tenho o Serafim. – Disse o velho quebrando o silêncio e prosseguiu – Você não vem aqui desde quando era criança. Já existia Querubim quando você era criança. Certo?

- Sim, Vô. Certo!

- Então... queria que ele durasse mais oito anos?

Nem porres, nem trabalhos e festas da faculdade, propostas de emprego negadas e nem fora de garotas pra lembrar com exatidão sobre minha ausência. Meu avô parecia não entender muito bem sobre a hierarquia celeste dos anjos, mas tinha uma memória muito boa. Oito anos. Passaram – se oito anos desde nosso último encontro.

- Toma café ainda, senhor? – Perguntou o velho com ar irônico.

- Se o senhor jogar dominó ainda... – respondi.

Ele sorriu aceitando o desafio. Agora era possível sentir a vivacidade em todas suas ações. Rapidamente, foi colocando a água no fogo e em seguida ia trazendo as peças.

- Você treinou o bastante, Léo?

Eu sabia que não, mas afirmei com toda a certeza.

- Sim. Tô craque agora!

Ele passou o café e o aroma fez com que se estabelecesse uma ponte entre o agora e o que passou. Era como se a saudade se sentisse pelas narinas e a infância morasse a poucos segundos do coração.

O jogo começou e o velho mostrava todo o seu domínio costumeiro. As peças coladas na mesa iam aumentando aproximando o fim daquele embate. Haviam poucas peças na minha mão e nas mãos dele menos ainda.

- Eu passo – Disse ele.

Ele passou a vez... e eu joguei. Não haviam mais peças para se comprar e ele mantinha apenas uma peça na mão.

- Eu passo – Disse ele novamente.

Não era possível que ele não tivesse mais jogadas. Eu joguei novamente. As últimas do jogo estavam em nossas mãos. Uma em sua mão e outra em minha mão.

E sim... o impossível se fez.

- Eu passo...

- Bati! – Gritei com os pulmões cheios e já de pé.

Após a minha intensa comemoração. Tomei mais uns dois ou três copos de café movidos pela euforia da vitória enquanto observávamos seu simples jardim já com muita tiririca nascendo em volta das lantanas amarelas amarelas e das vincas. Seu jardim tomava um certo ar selvagem pelo descuido. Convidei-o para mais uma partida.

- Talvez amanhã, filho. Já está chegando o sono.

- Não, Vô! Estou de viagem amanhã de manhã.

- Tudo bem. Não deixe de passar aqui e mande um abraço para sua mãe!

A penumbra ia misturando seu guache ao alaranjado entardecer da vida comum. Melhor guardar esse momento antes que a noite estrague toda beleza dessa obra.

- Bença, Vô!

- Deus te abençoe, filho! Vem cá... Leve um presente.

Aprendi a importância de contar as peças de dominó e os dias desde então. Hoje faz um mês que retornei de sua casa. Em cinco dias, desde a minha chegada, o meu velho avô se foi. Sua partida deixa um impasse quanto a nossa última partida de dominó. Ganhei dele por destreza?

Talvez ele soubesse que foi necessário cumprir com o capricho da ordem natural das coisas. Divago enquanto o Serafim canta em minha janela.

Carlos Hiro Dupré
Enviado por Carlos Hiro Dupré em 15/06/2021
Reeditado em 16/06/2021
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