Discos de vinil

DISCO DE VINIL

A casa era maior que a necessidade da família, meu pai dizia que se vê um médico pelo carro, pela casa, além das roupas que veste. Fui para faculdade de medicina na capital e tiveram que viver em uma casa de cinco quartos só para os dois.

Um dos quartos o pai fez de adega, onde guardava o vinho, uma de suas paixões amadoras, o outro colecionava os discos de vinil que ouvia em uma vitrola retrô conectada ao som moderno, naqueles anos ninguém nunca encostou a mão naqueles discos, minha mãe não podia limpá-los, se ela encostasse a mão a briga duraria pelo dia inteiro, dei um sorriso ao ver o destino daqueles discos que meu pai cuidava como coisa santa, eles estavam empilhados em caixas, uma sobre as outras, vitimados pela minha mãe que sempre teve um ódio deles.

-Vai vender?

-Já vendi, seu pai tinha um chamego com essas coisas que nunca teve comigo, a maioria é de língua estrangeira e de gente gritando - ela deu de ombros – não ia deixar essa porcaria pra você, lutei com esse lixo a minha vida toda, não quero envelhecer e precisar morar com você, e de repente ter que ouvir aquela música.

-Tem um mês que ele morreu...

-E daí, ele ficou doente por meses naquela cama e eu aguentando ele pedir para repetir a mesma música?

Eu sabia qual era a música, do ano de 1933, os compositores norte-americanos Otto Harbach (letrista) e Jerome Kern (melodia) fizeram uma das músicas mais lindas e executadas pelo mundo afora, “Smoke gets in your eyes”, assim que ele falava, com paixão. Dessa forma quando falava de uma música, ele sabia tudo sobre a música, o problema que a música “Smoke gets in your eyes”, por acaso, minha mãe desconfiava que era a música que o meu pai utilizava para lembrar da primeira namorada, ela morreu aos dezessete anos de câncer.

Quando era criança sentia que a relação entre o meu pai e minha mãe era distante, não havia brigas, nem discussões, eles estavam sempre um, em um canto e o outro, no outro, minha mãe ficava ouvindo rádio ou vendo novelas, meu pai depois de atender os pacientes fumava um charuto, fazia uma oração, tomava um vinho e ia para o escritório escutar os discos, as vezes ligava o computador e procurava discos raros na internet.

Aí ele empolgado me falava:

-Paulo, achei um: Dark Round The Edges, você sabia que essa banda de rock progressivo de Northampton prensou 64 LPs em 1972, anos em que os integrantes resolveram se separar? Os discos foram distribuídos às famílias e amigos e as 12 cópias mais valiosas têm uma capa colorida e encarte com várias fotografias.

Eu ia ver, dava um sorriso e mostrava que estava interessado, mas a música não era o meu interesse, muito menos aquele tipo de música, acho que fiquei averso a todas as músicas e para mim a melhor canção era o silêncio, preferia colecionar livros, tinha muitos, era uma coisa que meu pai tolerava em mim, quando desisti da medicina e fui trabalhar em um banco ele parou de falar comigo, só me disse uma vez.

-Se é pra ter um filho assim melhor não ter, de que adianta tanto livro se toma decisões estúpidas.

Sumi depois disso, deixei os livros, deixei a casa, queria queimar tudo do meu passado, anos depois eu só falava com minha mãe pelo telefone e por momentos curtos.

Minha mãe dizia ao telefone:

-Você é igualzinho ao seu pai, largou a medicina só pra deixar ele doido, quem paga o pato sou eu.

Meu pai era um médico conceituado na cidade, muitos haviam cotado seu nome para ser prefeito, eu herdaria seus pacientes, mas repetir a vida do meu pai não me interessava, aquela briga foi uma solução fácil pra mim.

Olhei para a minha mãe e senti um remorso por não ter me tornado mais próximo dela, parecia adivinhar o que eu pensava e falou:

-Por que a Roberta não veio? - Foi até a janela para ascender um cigarro, ela fumava escondido, meu pai se dava a permissão de fumar, mas corrigia minha mãe se ela quisesse fumar um cigarro.

-Roberta prefere estar com outra pessoa agora - disse falando da minha ex, ela não viria de qualquer jeito, nunca suportou a minha mãe.

-Sim, ela é que tem sorte, acho que você tem muito do seu pai, sem você a vida dela vai ser melhor.

-É mesmo? As pessoas acham que a minha personalidade vem de você, eu não deixei a medicina?

-Isso você fez pra provocar, matou o homem, essa atitude sua mostra porque é tão parecido com ele.

-Não é o que a Roberta fala.

-O quê? Se fosse parecido comigo não casava com aquela mulher, ela não tem espírito – ela deu uma olhada para fora depois de tragar profundamente o cigarro, estávamos no outono e chovia fino, aliás desde o enterro do seu pai que chove – porcaria de tempo...

-E a bicicleta? - perguntei.

-Pode levar.

Dei um tempo e segurei o gato Max, ele tinha nove anos, estava lento, em outra ocasião não se deixaria pegar, eu sabia que se ele ficasse sozinho com minha mãe estaria encrencado.

-O que vai fazer com Max?

-Pode levar também.

-Não posso, não consigo cuidar de mim, como vou cuidar do gato?

-Então vou levar pro veterinário dá jeito, seu pai que carregou esse traste pra casa, ele apronta tanto, não dorme a noite, arranha minha porta, já não tenho idade pra isso.

Dei uma olhada na casa, passei pela cozinha, tudo muito bagunçado, minha mãe já não se cuidava, estava com quase oitenta anos, não lembrava mais de muita coisa teria que morar comigo, mas como fazer para ela deixar a casa?

-Vou contratar uma pessoa pra ficar aqui.

-Levei cinquenta anos para morar sozinha agora quer me tirar isso.

-Está esquecendo das coisas mãe, sabe que sua cabeça não é mais a mesma.

-E daí, a grande vantagem da vida é poder esquecer.

Coloquei o gato no chão e pensei:

“Talvez minha mãe tivesse razão, talvez esquecer as coisas é que torna tudo suportável.”

JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 15/07/2021
Reeditado em 15/07/2021
Código do texto: T7300330
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