Um Conto

A realidade não tem meias palavras e nem se curva ao discurso demagógico ou populista.

Trrriiiimmmm!

É o tinido, tristemente estridente e irritante do relógio, traduzindo em barulho a hora de acordar.

O despertador marca seis horas. Ele pula da cama. Não que acabasse de acordar. Na verdade passara a noite em claro. Claro que o claro é figura de linguagem, pois as luzes estavam apagadas e ele ficou a noite inteira no escuro tenebroso dos pensamentos e inquietações... e no escuro porque o quarto estava escuro, mesmo.

Embora a luz tenha estado apagada todo o tempo, ao tilintar do despertador ele pulou da cama, sonolento pela noite não dormida. E levantou-se!

No banheiro, diante do espelho viu um rosto conhecido, envelhecido não pela idade, mas pela noite que ainda lhe pesa nos olhos, como que os amarrando para não se abrirem. Depois da higiene dirige-se, arrastando os pés, com as pernas moles, até o fogão.

Água na chaleira. Mistura o café de ontem com a água e o cheiro de cloro, para um novo café: a mistura do café de ontem é para economizar pó, na hora de dar cor ao pretume do chá de carvão, chamado café. Na verdade uma forma de requentar o café, reaproveitando o resto!

Acende o fogo, com um último palito da caixa de fósforos!

Abre a geladeira e retira um resto de leite tresnoitado, natas grudando nas bordas da leiteira amassada.

Côa o café. Serve-se em um copo de extrato de tomate. Acrescenta o leite. Era o último restinho... Só sobrou a saliência da nata grudada pelas bordas: ressecada.

Toma aquilo que o povo chama de café com língua. Não tem pão para o desjejum. Mas também não tem fome. E o café, toma-o mais por hábito que por vontade.

Ainda displicentemente, enquanto beberica pequenos sorvos de café com leite, lança a mão sobre um livro esquecido sobre a mesa. Mesa sobre a qual se vê não só a desordem, mas também vários livros. Alguém estivera, com certeza, estudando ali. Ou lendo, simplesmente, ou poderia ser material de alguma criança desordenada, fazendo tarefa. Mas eram livros revoltos.

Olha a capa. Pára os olhos sobre o título. Olha as orelhas. Lê o nome do autor e suas qualificações. Abre numa página marcada e inicia uma leitura.

Olha para o relógio sobre a geladeira: sete horas!

Ouve o ruído das crianças chegando à escola que mora em frente sua casa.

Trrrrrrrriiiiiiiiiiiiimmmmmmmm!

Soa, ensurdecedora, a campainha do colégio, marcando o início das aulas.

Aumenta, momentaneamente o alvoroço da criançada no primeiro dia de aula do novo ano letivo.

Ouvem-se vozes organizando a entrada das crianças nas respectivas salas.

Ouve-se, também uma música. Com bastante atenção ele pode distinguir a melodia: uma música do Milton Nascimento que fala do coração estudante e que tem, justamente, esse título e fala de uma coisa que deve estar dentro do peito ou caminha pelo ar, que deve estar aqui do lado, bem mais perto que pensamos; e que fala de coração, juventude e fé.

Fé!

Fé?

Em meio à balburdia do vozerio das crianças e professores a música funciona como uma espécie de trilha sonora da desordem que se instala no primeiro dia de aula. Desordem que aos poucos vai se organizando: o caos virando cosmo. Um pouco, também pelo cosmético ocultando possíveis rugas nas faces de muitas professoras envelhecidas naquele alvoroço.

Aos poucos quase sem que se perceba, a paz, a ordem, a calma voltam a reinar na rua que separa a casa da escola.

Elas estão lá: as crianças em suas salas. Sem alguns professores, é verdade, mas todas dentro das salas.

Recebem uma série de orientações.

E na rua é silêncio!

Quase ninguém ouve o som leve que sai de dentro da casa, em frente à escola.

Paooouuuu!!!!

É um som agudo e ao mesmo tempo abafado.

É um som como se fora um grito que ninguém ouve!

É um som de despedida.

Um tiro!

Bzzz

Bzzzzzzz!

Bzzzzzzzzzzzzzzzzzzz!

Bzzzzzzzzzzzzzzzzzzz!

Bzzzzzzzzzzzzzzzzzzz!

Bzzzzzzzzzzzzzzzzzzz!

Bzzzzz

Bzzz bzzz!

Dois dias depois a mulher que faz a faxina acha estranho o mau cheiro que sente ao se aproximar da porta. Mais estranho ainda são as moscas!

O cheiro é extremamente desagradável.

Carniça.

Carniça?

Carniça!

Aqui?

Ali!

Logo em frente. Parece que dentro da casa!

Ela entra e vê a cena que lhe provoca um grito de horror, medo e angústia.

Moscas e vermes fazem festa no sangue ressecado.

O calor intenso daquele estado perdido num canto da federação e os dois dias que se passaram fizeram com que tivesse início o processo de putrefação do corpo do velho professor, demitido.

Em sua mão a causa e a explicação para o suicídio: Uma folha em que se lia, as letras perfeitas do bilhete: “Depois de anos de serviço, fui enxotado. Sem direitos trabalhistas. Sem conseguir novo emprego. Sem família. Sem dinheiro. E para finalizar agora, esquecido, sou sem vida. Não saio da vida para entrar na história. Saio da história para entrar no esquecimento”.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, Filósofo, Teólogo, Historiador