Minha Bisavó Rita  - Buritizal-SP

                    * Moura Lima

           

 

Maio, 1968

Desloquei-me de Itaberaí a Inhumas para conhecer a minha bisavó Rita que acabara de se mudar de Buritizal, cidade paulista, para Goiabeira. O meu tio Antônio Heitor de Paula cedeu, com toda presteza, a sede de sua chácara para moradia dos meus avós Tonico e Lolica, e minha centenária bisavó Rita. A casa era vistosa, com quintal amplo e repleto de frondosas mangueiras, segundo o padrão rural goiano.

Fui recebido pela minha avó Lolica com a alegria que lhe era peculiar, ou seja, a de sempre agradar às visitas, e também pelo meu avô Tonico, com sua sisudez de sempre, mas dentro da sua dignidade de caráter. Tia Alice logo chegou, e a alegria foi completa.

 

Após os preâmbulos de recepção familiar, vovó Lolica convidou-me para conhecer minha bisavó, que se encontrava em seu aposento ao lado do corredor. Ao adentrar a alcova, deparei-me com minha bisavó Rita sentada em sua cama, de roupa branca, lenço na cabeça e com um alegre sorriso estampado no rosto marcado pelos olhos místicos e fulgurantes, cheios de espiritualidade, sinalizando a eternidade. Com sua voz baixa e suave, disse-me:

— Venha para perto de mim, meu bisneto!

 

Assim que me acomodei ao seu lado, fiquei assustado com um caixão revestido de pano preto e com uma mortalha pendurada. Minha bisavó, atenta ao meu pavor, disse-me:

— Não se assuste com o meu caixão! São coisas dos costumes dos antigos. Eles se preocupavam em não dar cuidados a ninguém, até mesmo na hora da morte, e deixavam a mortalha pronta para a viagem final.

 

Ela prosseguiu, em sua mansidão de plena lucidez mental, contando-me suas memórias.

— Nasci, em 1870, na Fazenda São José que era de meu pai, Manoel Joaquim de Souza Costa. Ele foi agraciado com a patente de alferes do Exército de Portugal. A origem da família é portuguesa, de Freguesia de Baltazar, Arcebispado de Braga. Meu pai é o fundador da Vila de Patrocínio dos Buritis, hoje Buritizal, estado de São Paulo, onde encontramos o seu nome figurando em uma das principais ruas. No ano de 1848, o núcleo familiar partiu de Lavra do Funil, comarca de São João Del Rei, Minas Gerais, e empreendeu marcha para a travessia do sertão do Rio Grande, avançando até a terra das Palmeiras, hoje Buritizal, na província de São Paulo. O meu pai era um homem de grande prestígio político e social, de caráter inflexível, arrojado em suas decisões, de respeito e bondade. Um dia, nos meus anos de mocidade, meu pai me chamou e me sentenciou: “Minha filha, sou um homem de idade avançada e antevejo a brevidade da vida. Quero, primeiramente, deixar a família organizada e em paz. Como é do seu conhecimento, seu irmão Joaquim é treloso e descaminhou sua nora. Portanto, desse ato impensado, nasceu Manoel Francisco que, para abafar o escândalo em família, foi dado à escrava de confiança Francisca com a missão de criá-lo na senzala. Não quero deixá-lo desamparado, e você foi escolhida para se casar com ele. Se assim você concordar, dar-lhe-ei a fazenda São José como dote.”

Segundo minha bisavó, ela não vacilou e respondeu ao pai, com segurança, que concordava com sua vontade e aceitava o casamento.

 

Minha bisavó prossegue sua narrativa:

— Dessa feliz união, meu bisneto, nasceram as minhas filhas Maria Candelária e Carolina Lázara, a Lolica.

 

Ela reiterou-me que eram as verdades ocultas da família e prosseguiu com suas memórias:

— A velhice nos impõe limitações. À medida que os anos aumentam, o sono vai diminuindo. Acordo às 3 horas e rompo a madrugada orando pela felicidade da família, dos netos e bisnetos até o clarear do dia.

 

Em sua fala meiga e lúcida, ela continuou:

— Lembro-me, como se fosse hoje, do dia da libertação dos escravos. Da janela do meu quarto, observei os cativos alegres, cantando e dando viva à Princesa Izabel!

 

Ao vê-la em sua espiritualidade espontânea, com o rosário nas mãos, rememorando suas lembranças do século passado, refleti:

— A verdadeira religiosidade, ou devoção, não está nos faustos das cerimônias luxuosas dos templos ou nas orações mecanicamente recitadas, mas, sim, no sacrário da alma, no reino interno e no exemplo do viver diário com verdade, justiça, modéstia e misericórdia. Não sendo, portanto, no conhecer ou no pregar virtudes ao vento! É uma experiência interna que se consolida no exemplo ao longo da vida.

 

Já era noite, contudo, e me despedi, bastante comovido, da minha bisavó, visto que, no âmago da alma, aflorava-me a certeza de que seria o nosso último encontro na terra.

 

No ano seguinte, o meu avô faleceu e foi sepultado em Inhumas. Em vista disso, minha bisavó Rita e vovó Lolica retornaram a Buritizal. Em 16 de julho de 1972, aos 102 anos, faleceu minha bisavó Rita na casa em que nasceu, conforme sua vontade.

 

* Extraído do livro do autor — A Conquista do Sertão de Capim Puba, Editora Cometa.

 

 

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