De quando se parte (Capítulo III)
Naquele dia papai não retornou para nos buscar. Hospedados em um apartamento à beira da praia, estranhei a consulta insistente de minha mãe ao relógio. Estava aflita. Olhava pela janela como a contemplar o negrume das ondas do mar e ao mesmo tempo deixava escapar um suspiro de agonia.
– Mamãe, por que não vamos pra casa? – perguntei, quando meus olhos já coçavam de sono.
Era noite, mesmo assim minha mãe não despregava os olhos da janela e do relógio, seguidamente. Dera pouca atenção aos meus reclames. Insisti:
– Mamãe...
A este reclame ela recobrou os sentidos, virou-se em minha direção e soltou aquela frase mágica, só que de maneira artificial:
– “Diga, meu anjo”. Qual o problema? Não está gostando daqui?
– Quero meu quarto.
– Eu entendo, filhinho. Mas é só por hoje. Amanhã nós estaremos em casa, mamãe promete.
Eu não entendia por que estávamos ali, e por que teríamos que permanecer no apartamento naquela noite. Nossa casa não era tão distante. Não morávamos na orla, claro, tínhamos esse apartamento para temporadas, mas a nossa casa ficava mesmo era na cidade. Nunca gostei do apartamento da praia. Tinha um cheiro diferente, era desconfortável e poucas coisas do meu gosto infantil.
Minha mãe voltou para a janela. Foi quando cochilei. Ao acordar, ainda noite, notei que mamãe saíra do quarto. Encontrei-a na varanda, sentada em uma cadeira a contemplar a orla e, como sempre, o negrume do mar. Ao lado, em cima da mesa, uma taça com vinho. Ela fumava.
– Mamãe...
– Que foi, querido? Não consegue dormir?
– Onde está meu pai?
– Seu pai está resolvendo coisas de adulto, Abzala. Eu já disse, não insista.
Esta última frase fora pronunciada com mais rigidez. Voltei-me para o quarto e dormi.
Mais algumas horas, quando o sol despontava no horizonte, acordei com os soluços de minha mãe. Chorava. Um frio intenso percorreu a minha espinha de uma ponta a outra. Fui tomado por uma sensação estranha e enormemente pesada. Fiquei entre consolá-la e manter-me quieto, ignorante à causa. Ela nunca ia me dizer a razão das lágrimas, inventaria uma mentira. Eu era criança, mas tinha consciência disso e, por vezes, preferia ouvir as mentiras a provável e dura verdade que se escondia por trás delas. Era isso, aos poucos eu me conscientizava que o melhor era permanecer ignorante às “coisas de adulto”, parecia-me um mundo muito complicado. Cheio de mistérios.
Ao entrar no banheiro para a higiene matinal, fiz questão de anunciar que havia acordado, ao bater a porta. Aquele interstício de tempo, entre o banho e o café, era o necessário para que minha mãe se recompusesse. Antes mesmo de eu sair do banheiro ela já estava no quarto, sentada na cama. O olhar era cadavérico. Tomado de susto, estanquei entre o banheiro e o cômodo:
– Que houve, mamãe?
Tinha os olhos vermelhos de fogo e olheiras muito profundas. Ao recompor o rosto, disse-me:
– Se ajeite, Abzala. Tome seu café e vamos para casa. Saímos em meia hora.
Notei que ela queria me dizer algo, mas estava engasgado. Ao notar a abertura, tornei a perguntar:
– Está tudo bem, mamãe?
– Sim, tudo bem, filho. Já sabe...
Ela se levantou resoluta e antes de deixar o quarto em direção à sala. Ainda de costas, virou um pouco o rosto e disse:
– Seu pai teve que viajar e nós passaremos alguns dias sem vê-lo.
Eu já tinha visto outras ocorrências daquela na minha curta vida de filho, mas nunca mamãe em estado tão sofrido. Como sempre, recolhi-me a minha insignificância de criança e aceitei sem questionamentos as razões de uma viagem paterna tão repentina.