A gravata

A gravata

Era quase natal. Ele passou a mão no bolso e certificou-se mais uma vez que não tinha absolutamente nada. Não tinha sequer uma moeda.

O que fazer? Era quase natal e ele não tinha nada para levar para sua família no interior. Na verdade não tinha nem como ir para o interior.

Que adiantara passar um ano inteiro na capital? Passara fome, dormira sobre marquises, na plataforma da rodoviária, entrara em cinema que ficam abertos durante vinte e quatro horas somente para dormir nas poltronas almofadadas. Deixara sua cidadezinha do interior com a conviccão de que iria vencer. Mas encontrou tantas dificuldades que se deixara abater pela má sorte, pela falta de oportunidade, pela falta de emprego. Quisera tanto encontrar um emprego onde pudesse provar para o patrão ou quem que seja que o contrasse de que era um homem bom, honesto e trabalhador.

Só arrumara bicos pequenos, trocados miúdos, suficientes para matar a fome do dia e pousar em alguma espelunca com cama cheia de pulgas.

O ano fora muito difícil! O pior é que prometera a sua família, ao deixar o interior, de que voltaria e lhes proporcionaria o natal mais agradavel de suas vidas. Nas vezes em que ligara no vizinho, pedindo que chamasse sua mãe, para que pudesse conversar com a mesma, houvera lhe dito que arrumara um emprego e a convencara de que as coisas iam indo todas muito bem. Depois ficara sabendo que sua màe havia contado á sua tia de seu sucesso na capital. O pessoal da vizinhanca estava deveras alvoracado, aguardando a sua chegada, porque sua tia havia comentado com muitas pessoas que ele estava vivendo muito bem na capital. Alguém dissera que numa ida rápida a capital, vira alguém muito parecido com ele dirigindo um carro lindo. A cidadezinha estava em polvorosa aguardando. Ah meu Deus!

Se soubessem que ele não tinha dinheiro algum, e que já estava há dois dias sem comer. Sentou-se no banco da praca e tirou do bolso o bilhete . Estava com vontade de rasgar aquela passagem. Fazer o que em sua cidade natal? Todos com uma expectativa enorme em relacao ao seu sucesso e ele não tinha sequer um mísero centavo para comprar um simples sanduíche de mortadela. Que droga! Merda de vida! Tivesse conseguido o emprego que tanto sonhara, que tanto procurara, poderia ao menos levar algumas lembrancas para alguns conhecidos e bancar o almoco de natal na casa de sua

Vestiria uma camisa bonita, um par de sapatos novos, uma calca de marca e quem sabe usaria até uma gravata. Sim sempre quisera Ter uma gravata. Parecia que a gravata dava um ar grave ás pessoas. Um ar de importância respeitável. Certamene o trataria até por senhor! Ao apear do ônibus com sua gravata, todos o veriam de uma forma diferente. A gravata era um símbolo de sucesso, da bem-aventuranca.

O boato a boca miúda se espalharia na cidadezinha e todos dariam um jeitinho de passar pela ruazinha onde sua mãe morava para certificarem-e de sua vinda . Eles iriam admirá-lo. A todo momento passaria alguém para tomar um cafezinho ou com outra desculpa qualquer somente para ve-lo.

Até durante o dia usaria gravata na casa de sua mãe. Qualquer hora que chegassem poderiam apreciar sua gravata. Por causa de sua gravata, os parentes, os vizinhos, os conhecidos da rua, talvez até o chamassem de doutor.

A bem da verdade já tinha, inclusive, decorado algumas palavras difícieis, justamente para aqueles momentos em que viessem ve-lo.

Já houvera estudado exaustivamente algumas poses, palavras engatilhadas, e treinara no espelho aquele ar de quem não liga nenhum pouco para dinheiro. Mas tudo fora em vão . Não arrumara o bendito emprego, gastou todo dinheiro que havia levado e agora, naquele exato instante, sentado num banco da praca era a própria imagem do fracasso e do arrependimento de Ter nascido pobre. Foi quando lhe veio a idéia. Se alguém lhe perguntasse não saberia dizer de onde ela veio. Ela veio como essas pessoas que chegam de surpresa, como aquelas notícias que não esperamos, como um tropeco que a gente dá no meio fio. Parecia Ter surgido do nada. Absolutamente sem sentido para aqueles que o conheceram a vida inteira. Estava en total desacordo com tudo aquilo que sempre fora. Mas o certo é que aquele temível pensamento o invadiu por completo. Talvez pudesse ser explicado pela vontade de rever sua mãe e poder ostentar ao menos um pouco de prosperidade. O desejo de que sua mãe ficasse orgulhosa do filho que fora para a cidade grande e vencera. Era muito arriscado, mas certamente na situacão em que se encontrava ele não via outra saída a não ser essa.

Iria precisar de muita sorte e muito sangue frio para por aquele plano em execucão. Dando certo ganharia uma grana legal para passar o natal, quem sabe até com sapatos novos, calca de marca, uma boa camisa e é claro com uma bela gravata, palavras difícieis e gestos estudados, mesa farta e lembrancas para os conhecidos.

Foi até as imediacões da rodoviária, num ponto bastante suspeito e ali propos a um sujeito mal encarado trocar um bilhete por uma faca. Argumentou que o bilhete estava sem data, podendo portanto ser vendido facilmente para alguém que fosse para aquelas bandas. O tal sujeito olhou-o bastante desconfiado, pediu a passagem para certificar-se de que não estava sendo enganado. Se afastaram e num canto onde ninguém podia ver, fizeram a troca.

Com a faca na cintura partiu para o centro da cidade para dar prosseguimento ao plano que bolara, ou melhor que o desespero bolara para ele. Agora era Ter tranquilidade e esperar anoitecer. Ficou vadiando nos arredores da praca. No rosto um sorriso, uma alegria ingênua, uma felicidade ao pensar que no outro dia estaria indo para sua cidade natal, com uma quantia razoável de dinheiro no bolso. Por fim anoitecera. Executaria agora o restante do plano. Parou próximo a um caixa eletrônico e ficou disfarcadamente cuidando as pessoas que chegavam. Um senhor muito jovem não o interessava; este outro também não; esta não parecia Ter muito dinheiro; uma mulher que se aproximava parecia ser a ideal, porém ela não estava sozinha; bem era melhor dar uma volta pois o homem que chegara por último o olhara bastante desconfiado. Depois de uns trinta minutos ele decidiu voltar as proximidades do caixa eletrônico. Estava de novo no local onde planejara realizar o assalto. Ainda havia muita gente na rua, mas era preciso fazer algo urgentemente. Já estava chateado, quase nervoso com a falta de sorte. Até para assaltar ele não tinha sorte. Já ia maldizer seu destino, quando viu um velhinho vir se aproximando. Deixou que o velhinho fizesse o saque no caixa.

O velho tinha ar de gente gra-fina. Esperou que o velhinho saísse; e então como quem não quer nada, como quem anda distraidamente ele se emparelhou ao lado e em voz baixa anunciou o assalto, advertindo ao abordado que não reagisse ou levaria chumbo. O dedo colocado dentro do bolso da jaqueta dava um ar de perigo. Parecia levar uma arma ali.

Bem na verdade ele não estava desarmado, pois tinha a faca atravessada na cintura. Se houvesse luta corporal ele poderia mostrar para intimidar o oponente. Foram juntos ao interior do caixa, onde fez o velhinho sacar um bom dinheiro. O dinheiro foi passado as suas mãos. Aquela quantia já daria pra ver sua mãe e aparentar uma certa riqueza. Não poderia esquecer de comprar a gravata. Já saiam do caixa eletrônico quando o velhinho cambaleou aparentando passar mau. Estaria o velhinho tendo um ataque do coracão? O que fazer? Apavorado olhou para um lado e para o outro pensando em pedir ajuda. Se lembrou que já estava com o dinheiro e portanto era melhor cair fora. Largou o braco do velhinho e comecou a andar rapidamente pela calcada. Quando já tinha caminhado cerca de trinta metros, resolveu olhar para trás e ver o que estava acontecendo.

Quase não acreditou no que estava vendo, pois o velhinho havia acabado de sacar um revólver e estava fazendo pontaria em sua direcão.

Não deu tempo de esbocar nenhum gesto de defesa. Ouviu três estampidos e simultaneamente viu pequenos clarões coloridos brotando do cano da arma e vindo em sua direcao. O impacto dos t iros jogou-o levemente para a frente, enquanto que uma sensacao de espeto em brasa parecia atravessar seu corpo. Pensou em sair correndo, porém suas pernas não o obedeceu. Aturdido ainda conseguiu trocar alguns passos tropegos, vindo a cair a poucos metros adiante. Um gosto de sangue tomou conta de sua boca. Sua respiracao foi ficando pesada. Inspirar e expirar era um grande sacrificio. Olhou para o próprio peito esburacado pelas balas e o sangue que jorrava pelos buracos, caprichosamente parecia desenhar uma gravata. A gravata que tanto desejara estava estampada para quem quisesse ver e admirar. Feita de um vermelho vivo. Foi lentamente sendo cercado de curiosos. Com muita dificuldade escutava os comentarios que eles emitiam: “ __é um ladrão!

“”___Esse aí já era, cara!” “___Coitado parece ser tão moco!” “___Bem feito, nunca mais rouba ninguém!”.

Alguém se lembrou de chamar a ambulancia. Ele mesmo teve a terrível certeza de que era tarde demais. Tudo foi ficando longe, muito longe demais.

Um sono foi tomando conta de seu corpo e parecia que uma névoa fina ia se apossando de tudo. Com muito esforco quis mais uma vez ver sua gravata. Ela crescera de tamanho assombrosamente e ia se espraiando vagarosamente pela calcada e tomando a direcao do meio fio.