O CASAL SMITH
Os Smith apareciam regularmente. Simpatizei-me com eles desde o primeiro contato. Eram notáveis e incríveis a semelhança e o contraste entre os dois. E na minha opinião nasceram um para o outro.
A figura frágil e miúda da sra. Smith parecia flutuar ao passar por mim, silenciosa e tímida ao lado do sr. Smith. Homem forte, alto, robusto, de passos firmes, largos, pesados. Saudava-me com sua voz grossa e então deixava o riso pipocar. Sua alegria era autêntica. Seu humor contagiante.
Sempre foi prazeroso ouvir o sr. Smith falar de coisas corriqueiras cada vez que o atendi. Tinha um talento fora do comum para a arte de falar. Falava o tempo todo sem se incomodar com seus termos já em desuso, nem com a falha de dente que as vezes dificultava a pronúncia de determinadas palavras.
Enquanto eu registrava os ítens de suas compras, a sra. Smith ficava folheando as revistas. As vezes se demorava olhando determinada página e parecia sonhar por um interminável minuto. Depois flutuava até o carrossel para retirar as sacolas e pagar a conta. As mãos pequenas de dedos finos vasculhavam a bolsa que varava anos de uso em busca do volume de cédulas que carregava dentro de um desses saquinhos plásticos para sanduíches. Molhava a ponta do dedo na língua e com toda a calma contava o dinheiro. Por timidez, mantinha a cabeça baixa. Ao me entregar o valor exato, me olhava rapidamente, sempre com aquele jeitinho risonho, não de bobice, mas de paciência. Dificilmente falava e quando era preciso, usava monossílabos. Falar, falar mesmo, era lá com o marido. Entretanto, não escapulia à minha atenção o jeito carinhoso e suave que se comunicava com ele através de seus gestos silenciosos.
Pouco a pouco fui sabendo deles captando as informações colocadas nos entremeios de um e outro assunto que o sr. Smith sempre trazia na linguagem simples e fiel a sua origem. Nenhuma escola poderia ter me ensinado o tudo que aprendi naquelas conversas informais. Percebi uma diferença enorme no meu inglês tanto no vocabulário quanto na fluência.
Admiravelmente, o casamento dos dois já durava quarenta e três anos. Sem brigas. Sem filhos. Bem que quiseram ter muitos. Pelo menos seis. Nunca os tiveram. Adotaram quatro cães e seis gatos, os quais enchiam de alegria a vidinha simples levada no trailer que estava caindo aos pedaços quando compraram. Mas ah, o sr. Smith ‘garrou’ com vontade na reforma e fez dele uma tremenda moradia. Tinham uma varanda muito bonita, um quintal bem cuidado com as plantas da sra. Smith e o sossego de quem não tem pressa para envelhecer.
Estava eu lá, certo dia, curiosa para saber que fim tinham levado, pois havia muito que não os via, com a imagem da sra. Smith flutuando na minha retina, dentro de uma calça jeans desbotada, encolhida e do casaquinho verde de tricô, desse tipo bate-não-quara, por cima da camiseta que foi branca um dia, correndo a mão pelos cabelos volumosos, sem brilho, como o céu cinzento de inverno, ajeitando-os para trás. Sua figura opaca, por razões que desconheço, me enchia de compaixão, tocava fundo a minha sensibilidade, quando então, ouvi o riso pipocado do sr. Smith. Enchi-me de alegria ao virar para o lado e vê-los caminhando para a fila do meu caixa. Notei em seu carrinho de compras, desta vez, não somente a comida enlatada para seus animais de estimação, mas também uma variedade de filmes em DVD.
Não demorou muito, vim a saber que tinham trocado o velho aparelho de vídeo cassete por um aparelho de DVD. O sr. Smith me contou que havia mudado de emprego e o horário de trabalho era outro. Passaram a fazer as compras pela manhã. Naquele dia ele estava de folga e queriam ver alguns filmes.
Nessa ocasião, a sra. Smith olhou-me demorado nos olhos, só para me contar o quanto estava tocada pelo filme do Mel Gibson que eles foram assistir no cinema: A paixão de Cristo. Jamais esquecerei seus olhinhos embaçados pelas lágrimas olhando diretamente nos meus, nem a sua voz sumida atravessando os dentes pontudos saindo para fora da boca a me dizer: “É um bom filme. Você precisa assistir. Eu chorei do começo ao fim. Eles torturam severamente a Jesus. É triste, muito triste.”
Passaram muitos clientes pelo meu caixa todos os dias, porém, nem todos tiveram a capacidade de me cativar como o casal Smith me cativou. Impossível esquecê-lo.