Eu nasci pelado mesmo

Eu nasci pelado mesmo

Fernando, Manuela e os dois filhos ritualizavam a reunião dos domingos ou feriados. - Família que conversa unida, permanece unida -, lembrava Fernando, em troca de “reza” por “conversa”. Além do mais, havia o vinho e a cerveja em doses bondosas a apoiar os espíritos, a deixar a fala mais fluente.

Quase sempre, surgiam agregados. Como o quarentão Ronaldo, exímio contador de histórias. Davam-lhe, quase sempre, a palavra. Não se fazia de rogado. Acabava por se tornar o único ator em cena, em monólogo de Molière brasileiro, recheado de fatos de sua própria existência.

Atiçado pela curiosidade presente nos olhos faiscantes das crianças, animou-se, a relatar, pela primeira vez, febre de excitação, sua vida difícil de goiano mal-nascido. In vino veritas. Em cerveja, idem.

Lá pelos cinco, seis anos, seu sonho maior de criança pobre e faminta: um saco de 50 quilos de arroz. O pai, trabalhador de salário mínimo, e oito filhos para criar, apareceu, certo dia, com o tal saco gigantesco.

- Minha emoção foi tanta que eu e meu irmão dormimos a noite todinha esparramados em cima do baita saco. Cheguei a sonhar que estava no céu.

Gargalhadas gerais, inclusive do narrador. “Sonho besta”, pensou Manuela, alheia ao significado da fome, em sua vida confortável. Ronaldo continuou: a comida da casa de um só cômodo restringia-se ao angu pela manhã, para encher logo a pança da família. Incertos de ter outra refeição, literalmente tratavam de se entupir, enquanto agüentassem sem vomitar. Qual camelo antes de atravessar o deserto.

Neste ponto trágico da história, o contador desandou a rir sacudido, movimentando o corpo, dos ombros à barriga um pouco protuberante. Ele e o irmão vendiam latas de óleo a um cego, fabricante de vassouras. Atolaram-se, uma noite, num feijão de “matar um” e, no dia seguinte, a caminho da morada tosca do cego, explodiram: o caldo quente lhes escorreu devagarinho pelas pernas, panturrilhas, até os pés descalços e ao chão de terra batida.

- O pobre do cego não sabia se recebia as latas ou se trancava as narinas, de tanto cheiro podre. Ainda mais cego, que sente cheiro mais do que a gente.

Mais gargalhadas espocaram: reação esperada quando se fala de apertos diarréicos. Os meninos, então, queriam mais e instigavam o ator:

- Conta mais! Como você se sentia? E sua mãe, como ficava com a pouca comida? Ela chorava, se queixava? E seu pai?

As respostas vinham entre meio-sorrisos orgulhosos, a cada episódio revivido. O garoto, então com dez, onze anos, punha em ação mil artifícios para ganhar uma grana. O que lhe rendeu uma multiplicidade de habilidades, de fazer inveja a Fernando, em sua preguiça pachorrenta de quem pode, encastelado em sua profissão única, desastrado para serviços manuais.

E lá vinha a multiplicidade de ofícios: auxiliar de sapateiro, operário auxiliar de fábrica de sapatos, de bolsas... eletricista, bombeiro hidráulico, pintor de parede... Ronaldo encarava o que viesse. E ganhava o dele. Virava-se.

Sem ter assistido o filme iraniano, em que a arte imita, com maestria, a vida dura de duas crianças pobres, a se revezavam no único par de sapatos para irem à escola, a história de Ronaldo e do irmão um pouco mais novo, para adaptar-se ao Brasil, bastaria sofrer uma pequena mudança: de sapato para bermuda. Iran e Brasil, irmanados nas carências sociais.

- Como é que você conseguiu se tornar enfermeiro?- perguntou Manuela, adivinhando-lhe a dificuldade.

- Ué, Manuela, eu estudava à hora que o trabalho deixava. Por isso não fiz Medicina, como queria. Era muito puxado o curso.

Biscates apareciam e lá ficavam os livros a um canto, esperando a oportunidade da instrução formal. A cada passo dado, no entanto, o rapaz dominava um pouco do conhecimento da vida prática. Resultou, sem querer, num adulto de saber informal invejável.

- Conte aos meninos você no exército -, pediu o dono da casa, acostumado a ouvir o amigo sem se cansar.

E veio a narrativa, cheia de gesticulação, subidas e descidas de voz, nuances de dramaticidade teatral. Caminhada a pé, obrigatória aos soldados rasos, bofes pela boca, um, dois, um, dois, desde a cidade do Rio de Janeiro até Campos, lá no norte fluminense. Ufa!!! Tempos do Tiro - serviço militar do qual a classe popular não escapava, nem por pé literalmente chato. Treinos intermináveis de corridas, com ou sem obstáculos; caminhadas desmesuradas, em ritmo compassado de desfile do Dia da Pátria; montagem e desmontagem de armas; tiros bem e mal mirados ao alvo; rastejar no chão... Rapazes em “defesa da pátria”, ameaçada por uma guerra invisível, mas inexorável. “Nós somos da pátria amada/ fiéis soldados por ela amados...

- Mas quando você veio para o Rio, sua vida melhorou, não foi?, perguntou Manuela, um tanto cansada de ouvir e rir.

- Bem, logo logo, não. Fomos morar na Favela do Sapo, em Senador Camará, depois da Penha. Sabe onde é? É lá, onde vocês nunca pisaram. Só quando terminei o segundo grau é que fiz concurso público de bombeiro. De apagar fogo, sim senhor. É danado, minha gente!

Muito depois, cursou enfermagem. Sempre gostara de ajudar os outros. Como efetivamente o fez ao “adotar”, em sua casa, para desespero da mulher, uma senhora, coberta de erisipela, que não conseguia andar. Ou a menina deprimida, sem ter onde cair morta, abandonada pelos pais no hospital onde trabalha até hoje..

Subiu muito na vida, chegou a Chefe de Enfermagem em um grande hospital público, divide o orçamento familiar com a mulher, e suas duas filhas mocinhas nunca souberam dos tropeços passados pelo pai. A verdade é que transformar vicissitudes em historietas de humor requer desapego e pendor artístico. E na própria família, a graça se esvai.

O gargalhar contínuo iniciou sua carreira descendente. Rir cansa. De repente, Ronaldo aquietou-se de vez.. O casal e os filhos estranharam-lhe a mudez. Por que a seriedade consternada tomando a cena ao humor? O dono da casa fez a pergunta:

- Quê que há, cara? Você ficou diferente, sem mais aquela. Está tão sisudo.

O rapaz, expressão facial típica de pensamento ruim, suspirou bem fundo e desabafou.

- Pensando bem, passar fome não é mole, não.

Havia dias em que a mãe de Ronaldo punha meninos e meninas na cama bem cedo porque não havia jantar. Tinham que esquecer a barriga vazia, pois o dinheiro do pai não cobria as contas da padaria e da mercearia. Nem fiado conseguia.

Um fechar solidário substituiu as bocas escancaradas de galhofa. A pouco e pouco, frio de fome no ambiente. Estranha sensação de vazio, não apenas no estômago, mas nas entranhas todas.

Freara-se a sessão humorística. Caíra a grande cortina do palco desolado. Uma ponta de rouquidão na voz de Ronaldo sinalizava tristeza não admitida.

- É, gente. Eu nasci pelado mesmo.

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Maria Lindgren
Enviado por Maria Lindgren em 06/12/2005
Código do texto: T81646