Vozes da alma

Hoje servi o almoço para meu filho. Peguei os processos pus numa sacola, eram seis, pesava muito, ajeitei os papéis que precisaria e saí para o Fórum Central de São Paulo. Ía entregar tudo com um certo atraso, mas precisava ir. Cada dia desta semana ensaiei devolvê-los aos respectivos cartórios, mas sempre apareceu algum empecilho. Eram clientes pedindo-me, em cima da hora, para resolver problemas, era minha mulher pedindo-me para eu não sair, pois traria uma surpresa, era meu filho que não queria me acompanhar, pois estava chovendo muito. Hoje estava decidido, tinha que sair de qualquer jeito. Meu filho reclamou de uma dor de cabeça, dei algumas gotas de um analgésico, sossegou. Preocupado, despedi-me dele e saí de casa com o sol de verão a pino, mais de 30 graus, eram umas quinze horas. Da rua liguei para casa, ele estava jogando bola com os amigos, respondeu a mãe, que tinha chegado do trabalho.

Para não perder tempo fui direto ao Fórum, almoçaria na volta. Entreguei os processos, protocolizei petições, resolvi tudo o que tinha para este dia. Quase duas horas depois estava de volta. Peguei o metrô, desci na estação, que também é um shopping, o Santa Cruz, “almojantei”, isto é, às dezoito horas, almocei e jantei ao mesmo tempo.

Para livrar-me do rush no trânsito desta hora, resolvi ficar no shopping. Visitei livrarias, vi lojas, pensei tomar um sorvete, peguei umas moedas que foi o troco do almoço..., então me lembrei das horas, passava das vinte horas. Pensei: “Vou ver se o ônibus está no ponto, se não, volto e tomo meu sorvete, 'musse de limão”. Lá estava ele, entrei na fila, moedas na mão, tinha R$ 2.80. A fila andando... foi quando escutei:

-- Moço! Por favor me dê quarenta centavos para completar minha passagem de ônibus, se não vou ter de ficar por aqui. Na realidade preciso de R$ 1.00, mas se o senhor me der R$ 0,40, fico feliz.

Olhei-o de alto a baixo, era um rapaz de mais ou menos 30 anos, boa aparência, não estava tão desarrumado, nem maltrapilho, falava baixinho, como se quisesse que apenas eu e ele escutássemos. Em primeira impressão pareceu-me um pobre coitado. Peguei as moedas e dei exatamente o valor da passagem, R$ 2.30. Na mesma tonalidade de voz que ele me pediu ajuda, me agradeceu, senti uma certa indiferença em sua voz. Para quem pediu quarenta centavos e recebeu a passagem inteira, ele não demonstrou aquela alegria que prometera. A fila andava e, tomei meu rumo para dentro do ônibus. De repente escuto o pedido:

-- Moça! Por favor me dê quarenta centavos para completar minha passagem de ônibus, se não vou ter de ficar por aqui. Na realidade preciso de R$ 1.00, mas se a senhora me der R$ 0,40, fico feliz.

Olhei para trás, querendo encará-lo, olho no olho, ele fingiu que não me conhecia. Pediu a mais duas senhoras:

-- Moça! Por favor me dê quarenta centavos para completar minha passagem de ônibus, se não vou ter de ficar por aqui. Na realidade preciso de R$ 1.00, mas se a senhora me der R$ 0,40, fico feliz.

Não sei porque, as três mulheres não atenderam o pedido do rapaz. Foi quando ele olhou para mim e, apenas pude esboçar um meio sorriso de volta para ele, baixou a cabeça. Sentei-me na primeira cadeira, mas ele não pegou aquele ônibus. Eu estava diante de um pedinte profissional, ele aplicava o golpe de “apenas querer completar a passagem de ônibus”.

Várias vozes passaram a digladiar-se em meu subconsciente, me questionando, me incitando, me xingando, me elogiando e, aquele pobre coitado também. O pedido como vi era falso, mas a finalidade, o motivo que o impulsionava a pedir dinheiro podia ter um fim nobre... e se não fosse? Uma voz queria que eu pegasse o rapaz pelo colarinho e fizesse devolver minhas moedas, acho que era a voz do nordestino que sou. Outra ponderou-me calmamente sobre a possibilidade de aquele rapaz está agindo daquela forma por necessidade, quem sabe, algumas crianças podiam estar esperando o pão e o leite, única refeição do dia, acho que era a voz do cristão que sou. Outra voz lembrou-me, através de uma sentença condenativa, impositiva, como toda sentença deve ser: “Ele engana a boa fé do cidadão deve ser denunciado, cadê a polícia neste momento!” Acho que era voz do advogado que sou. Tinha outras vozes que queriam xingar, “armar um barraco”, como sou retraído, contive-me.

Por fim, creio que as vozes chegaram a um consenso, um meio termo, deixaram-me em paz, sosseguei. Não mostrei raiva, não esbocei nenhuma reação de desagrado, ante ser trapaceado, estranhamente não me senti desconfortável. Fiquei pensando quem ganhou e quem perdeu com aquela pilantragem. Tinha a sensação de que eu não perdi nada, o dinheiro era meu, pois não roubei, não enganei, não trapaciei para ter aquele dinheiro. Era pouco, mas era meu. De livre e espontânea vontade fiz a gentileza de atender um pedido. Não sei por qual razão, uma das vozes teimava em convencer-me que eu ganhei alguma coisa com aquele negócio.

De repente senti um gosto na boca do sorvete que deixei de tomar. Fazia calor, e estava chegando em casa. Fui recebido alegremente pelo meu filho. Foi quando percebi que eu tinha um lar para onde voltar, eu tinha uma família que me aguardava, tinha uma casa que podia dizer que era minha. Beijei meu filho, beijei minha esposa, aqueles beijos eram mais gostosos do que muitos sorvetes de "musse de limão" que poderia tomar. Creio que ganhei e muito, gritou a voz do meu coração.