Transtorno do Transtorno Bipolar

Transtorno do Transtorno Bipolar

A vida segue normalmente com a medicação. Procuro viver como se a doença não existisse. E é maravilhoso. Após acertar quais medicamentos são os ideais, a vida voltou ao normal. Graças a uma boa médica atenciosa. Sinto-me livre e capaz de tudo. Não tenho medo do futuro e permanece em mim a plena confiança em Deus.

Eu posso, eu faço e eu sou. Quase um mantra arrogante, sim, não nego. Mas na verdade é um mantra de uma alegria que retornou após alguns anos. Anos. O que é um dia após alguns anos de espera? Espero um dia, dois, semanas e meses. O tempo tem um valor interessante quando você depende dele. É como ser idoso ainda em juventude, por quanto tempo ficará suspensa a tempestade que destruiu até o que nem era meu? É similar a estar a um passo da morte. Sofre tanto quem está ao redor. Sofre quem está no centro. Sofre apenas quem se importa. Sofre como tantos que passaram por essa vida já sofreram e se foram. Ao menos não parece ser tão próxima a hora da tormenta, isso o idoso já não possui, a vida dele é um fino fio de seda. A minha uma corda com sabe-se quantos fios. Ao menos por ora.

Brisa que se tornou em segundos um tornado, esse que foi levando embora tudo que estava em sua volta. Acaba-se a ventania, restam os escombros. Pouco a pouco são retirados os entulhos e o terreno é limpo. Anos. Um palavrão não dito!!! Recomeçar. As habilidades que antes tinha para ganhar meu sustento simplesmente sumiram em um piscar de olhos. Planos que foram feitos, agora, abandonados. Recomeço. Aos poucos novas habilidades em meio a um caos sobre o que fazer, nova profissão. Decepções, medicações. Uma cobaia de si mesmo e, o que é pior, necessário ser assim. Aos poucos um novo eu. Paciência e alguma outra palavra que resuma a frase: “aceite o que não pode mudar agora, talvez o futuro seja melhor”.

O passado? Não conseguir pronunciar uma frase com três palavras em sequência sem ter que fazer pausas para pensar - Maldita seja ... essa doença! – Gritou minha alma mais de uma vez. Alma gaga. Hoje volta a alegria que antes era apatia. Francisco de Assis, bendita seja sua mansidão. Aos poucos a melhora. De passo em passo o novo eu cresceu e ficou autônomo, um eu dopado e meio burro, claro, mas capaz de sobreviver em certa paz.

E após anos de separação o antigo eu aparece. Agora com novos conhecimentos, outra forma de ver a vida. Com frases mais completas, sem requintes por nunca ter gostado, porém minhas e com quantas palavras eu desejar. “Ósculos sob o arrebol...” deixa disso, “lama de carne, ossos, músculos e nervos” meditaria Marco Aurélio.

Esse encontro de “eus” é pacifico. Não é arrogante, o mantra é quase, mas também não é. E quando a vida segue seus rumos, tranquila e revigorada vem aquele momento. O momento em que a realidade que criei - sou e posso - aquilo que vivo e pratico de domingo a domingo, toda minha força firmemente ancorada na tranquilidade da mansidão, chega o momento de parar em frente a um espelho, não de vidro, mas de quatro paredes. Essas pintadas com um tom verde claro, com uma médica ou médico, normalmente médica, sentada atrás de uma escrivaninha a me fazer perguntas. E a realidade como ela é aparece.

Eu permito naquele único momento que ela apareça e apenas por interesse próprio. São pedidos exames que nada de ruim acusam, porém um dia acusarão. Perguntas que recebem não, mas um dia receberão um sim. O reflexo da realidade dura algumas horas e na primeira oportunidade, recrio meu mundo. Nada daquilo existe! O que existe é um alarme de manhã e um a noite que me manda tomar a quantidade certa de medicamento. Fora isso, tudo é o que minha vontade lutar para realizar.

Pois a razão nos separa dos animais e se ela percebe que algo deve ser feito e se for feito trará um resultado melhor, esse algo deve ser feito, pois é de seu próprio interesse ir de encontro ao melhor, mesmo que isso signifique por amor a razão ignorar a carniça sob os nossos pés, fingindo ser esse caminho um lindo bosque florido, com um cheiro desagradável. Não olhe para o chão que o cheiro acostuma.

Escrevo isso com pesares apenas porque amanhã terei que ir ao espelho e me deixei levar por pensamentos sobre a realidade. Nós vacilamos e isso é natural. Foi ótimo ver como tudo melhorou. Não desista se caminha com fardo semelhante. Amanhã perderei uma manhã de trabalho, afinal há apenas um pequeno transtorno no caminho, um pequeno transtorno no campo florido.