As Bênçãos De Xangô
Hoje é tudo muito difícil. Mas de primeiro, doutor, aqui em cima as coisas funcionavam diferente. Quando nosso prezado Xangô andava por essas bandas, coisa ruim não se criava sem a devida paga.
Xangô era homem de pouco falar e muito de agir. Vestia sempre um paletó branco curtido de sol e sapato riscado no tempo. Diziam que por dentro carregava o machado,não o de ferro, mas o da justiça. Não era de polícia nem de tribunal: era da rua.Era do povo.Da verdade que se aprende apanhando da vida.
Naquele tempo, qualquer moço que quisesse crescer na maldade precisava ter mais que pistola ou pose. Precisava encarar Xangô nos olhos. E quase nenhum o encarava. Porque quando ele aparecia no beco,na birosca,no campinho ou na feira, bastava dele um gesto,um olhar atravessado e pronto: o silêncio reinava e o respeito voltava ao lugar.
Não precisava matar. A força dele vinha de outro lugar. Era lei que não vinha de código,mas de exemplo. Moleque que roubava sacola de senhora levava sermão de fazer tremer o osso. Dono de boca sumia por uns dias quando ouvia que Xangô tava no morro. E ninguém perguntava como,só aceitava. Porque justiça, naquele tempo, era coisa que se sentia, não que se explicava.
Mas Xangô sumiu.Partiu sem despedida. Uns dizem que virou santo, outros, que cansou. E aí ficou a brecha e eles vieram. Os que mandam com fuzil. Os que decretam toque de recolher com a ponta do cano.Os que invadem casa como se deles fosse e fazem uma lei enviesada,torta,que não é lei coisa nenhuma,doutor.
O Estado também nunca subiu de verdade, doutor.Quem sobe é o medo vestido de Estado e de farda.E o medo, quando aprende o caminho,não desce mais.
Agora,os meninos aprendem a se abaixar antes de correr,e correr antes que uma bala os ache.Mãe aprende a enterrar filho sem fazer escândalo.Pai,a baixar
a cabeça pra moleque.
Festa tem, mas com patrocínio de conveniência, com vigia e olheiro. E tudo tem que correr na disciplina.Mulher se vacila,perde o cabelo.Homem,a dignidade na surra ou a vida mesmo.
Escola, se não for incendiada, vira esconderijo de munição.
O comércio abre e fecha ao sabor das circunstâncias.E o campinho onde Xangô botava ordem e bancava o sonho da garotada virou pasto de cachorro e promessa de boleiro esquecida.
De vez em quando, me pego olhando pro alto da caixa d’água,doutor,lá onde ele costumava subir feito uma entidade cismando às vezes por horas,esperando ver a silhueta dele. Mas não vem. Porque Xangô, se é que ainda respira, deve ter ido pra onde homem não precisa gritar pra ser escutado.E aqui, doutor, não tem mais lugar pra justiça que ecoa do peito. Aqui só vale a que vem no tambor da arma.
O tempo de Xangô passou. E o que ficou foi essa saudade muda, que não se confessa. Porque até saudade aqui em cima virou coisa perigosa.
E nós, que ficamos, vamos fingindo que não sentimos falta. Mas sentimos. Toda vez que o céu ameaça chover sem nuvem(porque chuva de bala não desce do céu),é como se Xangô passasse outra vez por nós, mudo, dizendo com o silêncio: “Já chega.”
Só que ninguém mais escuta.
Mas veja bem, doutor, não vá pensar que Xangô era só o temor dos maus. O povo amava aquele homem. No fundo, sabiam que ele fazia por todos o que ninguém mais fazia.Era justiça com braço forte, mas coração inteiro.
Lembro bem.Foi ele quem mandou cimentar a escadaria da viela do Seu Tião, quando a velhinha lá caiu pela terceira vez na chuva.
“Se o governo não vem, nós é que vamos”, disse ele, e em dois dias, sem pedir um centavo, chamou os pedreiros, botou o cimento, e ainda mandou pintar flor de jasmim no muro e tudo.Tinha que ver,doutor,que beleza ficou o beco.E quando o barraco da Dona Jurema pegou fogo, quem apareceu primeiro não foi bombeiro, nem medalha. Foi Xangô. Quebrou janela com o ombro, tirou as crianças no braço, jogou água no balde enquanto os vizinhos gritavam feito rebanho. Depois, organizou vaquinha, conseguiu telha, madeira e até botou rede nova no canto da sala, de presente.
Os medalhas — assim que chamo os homens da farda, com estrela no peito e vista curta — nunca gostaram de Xangô. Achavam ele insolente. Diziam que “concorria com o Estado”. Estado esse que só aparecia depois do estrago feito,só pra aparecer mesmo.Só quando dava imprensa que se mexiam,aí tinha mutirão,vinha médico,assistência social,gari.E político garantindo melhoria,pavimentação,
moradia digna.Mas assim que repórter esfriava a notícia,os olhos do Estado se fechavam de novo.
Uma vez quase botaram o morro abaixo pra pegar Xangô. Veio viatura, veio helicóptero,veio tudo.E o povo? O povo se trancou, não por medo de Xangô, mas receio de perder ele. Esconderam-no num quartinho de alvenaria ainda sem janela. De lá, ele ouviu o barulho dos coturnos pisando o chão e ficou encolhido, como como fera acuada.Os medalhas reviraram tudo e não acharam nada. No dia seguinte, Xangô passou distribuindo pão com manteiga na praça da quadra. “Pra ninguém esquecer que fome também é crime”, ele dizia.
Era assim, doutor. Um homem só, mas com peso de multidão.
E mesmo com fama de bravo, de mão pesada com vagabundo, era Xangô quem carregava feira pros velhos, quem botava ligação d’água clandestina pras casas que viviam esquecidas pela companhia. Dizia que luz e água não são luxo,são dignidade. E pronto: tava feito.
Era amado por quem precisava. Era temido por quem se aproveitava da nossa vulnerabilidade.E odiado por quem usava farda pra fingir poder.
Mas os tempos mudaram, como já disse. Hoje, um homem como Xangô não teria vez. Seria chamado de milícia, de fora da lei,de bandido,o diabo.Não entenderiam que ele tinha outro tipo de força,que não se mede em calibre de arma nem em nota de dinheiro. Era força de presença, de exemplo.
E aí, doutor, quando a gente vê que o certo virou suspeito e o errado veste uniforme,e nem o uniforme serve mais pra distinguir um do outro, entende que o mundo desaprendeu o que era justiça.
Hoje, doutor, quem manda aqui em cima são outros. Gente que aperta o gatilho com a mesma frieza que conta dinheiro.
Que vende o ouro branco e preto que os de baixo fingem lutar contra,mas são os que lucram de verdade com ele.
E o povo... ah,o povo se apequena, se esconde, se cala. A ausência de Xangô virou buraco fundo, que nem o tempo tapa.
Às vezes, escuto o batuque longe, vindo não sei de onde. Um atabaque perdido na noite, como se chamasse alguém. Me pego pensando se não é Xangô que ainda ronda, invisível, protegendo os seus de um jeito que a gente não entende mais.
Porque, mesmo sumido, a verdade é que ele tem lugar aqui onde já não mora.E deixou seu legado.Num gesto justo, num silêncio respeitoso, numa recusa a se vender.
São tudo bênçãos de Xangô, doutor. Pequenas, miúdas, às vezes escondidas bem no fundo do peito, despercebidas até. Mas são.
E quem já recebeu uma delas, não esquece nunca.
Não esquece não,doutor.