VIC, A CACHORRA

O Sanguinários F.C. tinha conquistado o sétimo lugar no Citadino, campeonato entre os times da zona leste da cidade, com sete concorrentes. Nenhum dos atletas sabia explicar muito bem o que havia acontecido. Mas os torcedores conheciam o motivo... Festas. Noitadas. Muita cerveja. Zero de futebol. David Beckam.

O craque do time era o David Beckam, um negro forte de quase 1,90 cm de altura. O apelido tinha a ver com sua noiva, a Victória, mais conhecida como Vic, que assistia a todos os jogos de salto alto, chapinha e roupas de grife, chamando tanto a atenção que muitos torcedores preferiam ficar olhando para a arquibancada a conferir onze pernas de pau, destruindo a bola. Não foi preciso dizer que as mulheres dos outros jogadores do time tinham verdadeiro ódio da Vic. Pior foi quando o presidente do clube a escolheu como madrinha da equipe. O Beckam ficou todo orgulhoso e os outros arrumaram problema em casa. Só que isto foi no início do Citadino, antes de o Sanguinários Futebol Clube começar a chafurdar na lama das últimas posições. À medida que as bolas não entravam, que o goleiro se engasgava com frangos e que o Beckam tinha esquecido o caminho do gol, a Vic foi se desgostando. Uma mulher do seu porte não podia suportar uma coisa daquelas. Imagine, madrinha de um time perdedor, noiva de um boleiro que tinha perdido a intimidade com a bola, colega de arquibancada de uma porção de histéricas invejosas. Não, não e não. E a sua dignidade, onde que ficava? E, antes que alguma daquelas mentecaptas a chamasse de pé frio, Vic desapareceu das arquibancadas e da vida do Beckam.

O mundo caiu para David Beckam. Naquela tarde de outono, quando ele entrou em campo e não enxergou a Vic nas arquibancadas, sentiu que algo estava estranho. Aliás, já tinha notado que a noiva andava meio esquisita, quieta, arisca. Achou que fosse TPM e nem deu bola. Já bastava o mau rendimento dos Sanguinários para lhe atormentar. Mas não, deduziu ele, sentindo uma solidão incrível, enquanto o jogo transcorria e nada da Vic aparecer. Vic, aquela cachorra, tinha saído da sua vida logo quando ele mais precisava de um cafuné. Naquele jogo, Beckam não acertou um passe que fosse e saiu antes do primeiro tempo terminar, vaiado até pelos quero-queros.

Dali para frente, tudo foi de mal a pior. Quando o motivo não eram as saídas noturnas para explicar o mau rendimento do time, era o Beckam que, sofrendo de amor por sua Vic, não repetia o seu ótimo desempenho da temporada anterior, onde a equipe tinha conquistado o bi-campeonato do Citadino. Alegres mesmo estavam as mulheres dos jogadores, já que a Vic tinha tomado um chá de sumiço e nunca mais dado as caras – e os peitos - por lá.

Na festa de entrega dos prêmios aos melhores do Citadino, no CTG Gauchão de Ouro, o Sanguinários Futebol Clube estava lá, para defender sua honra. Haviam sido convidados e para não ficar feio, resolveram todos ir, os jogadores e suas mulheres. O David Beckam também foi, acompanhado da Carol, cujo conhecimento de futebol não ía além de que o referido esporte é jogado com os pés. O par até que formava um casal bonito, cochichando no ouvido um do outro, dando risadinhas e trocando olhares cheios de promessas.

Então, de repente, cessou o burburinho no Gauchão de Ouro. Todos estavam olhando para a porta. David Beckam – que pedia sempre para ser chamado pelo seu verdadeiro nome, Roberval – também fez o mesmo. O fenômeno do Citadino estava chegando. Ele, o artilheiro da competição, o Rodolfinho, garoto talentoso, marrento, cheio de estilo, que chegava ao CTG. Em seguida, atrás dele, vinha uma mulher. Morena, microssaia, um decote profundo e sandálias de salto agulha. Beckam soube quem era assim que reparou no tamanho do salto.

Era ela. Vic, a cachorra.

Vic, a cachorra, entrou no CTG de mãos dadas com o Rodolfinho, sentindo-se a rainha. E de fato, era isto que ela era. A Rainha. Todas as mulheres do salão ficaram mudas e boquiabertas, cada uma desejando o fígado da Vic. Beckam sentiu a boca seca. Carol não entendeu porque seu novo namorado estava com uma cara tão estranha. Ele contou até dez para não se avançar no pescoço da desgraçada e daquele guri imbecil.

Beckam ainda não havia chegado ao cinqüenta, quando de repente, Vic, passando pela mesa dos Sanguinários, olhou para ele, parando bem no meio do salão. Ela o fuzilou com os olhos e depois abriu a boca para soltar uma sonora gargalhada. O Rodolfinho olhou espantado para Vic e resolveu rir junto, até porque tudo o que a sua namorada fazia era engraçado e inteligente. E logo, com exceção da mesa onde eles estavam, todos ficaram rindo da cara do David Beckam. A maioria nem sabia o motivo.

Era muita humilhação, pensou ele, lívido. E sem dizer nada, Beckam levantou-se e saiu salão afora, atordoado, ouvindo as gargalhadas atrás de si. Desapareceu na noite e nunca mais foi visto por aquelas bandas. O Sanguinários F. C., no ano seguinte, acabou sendo novamente campeão do Citadino, graças ao investimento do Motel Love Hole, que ajudou a adquirir o passe do Rodolfinho para defender as cores do clube. Vic, a cachorra, passou a freqüentar as arquibancadas ao lado das outras despeitadas. Mas agora ela não era mais madrinha de time nenhum. Na sua mão esquerda brilhava uma linda aliança, presente do Rodolfinho. Vic, a cachorra, era uma mulher casada. E de respeito.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 26/02/2008
Reeditado em 25/05/2013
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