O Retrato

Encantei-me com aquele retrato desde a primeira vez que o vi. Quanto tempo fazia? Muito tempo. Eu era só uma criança, talvez tivesse seis ou sete anos. Mas como não se apaixonar por uma figura tão distinta? A figura vinha a ser um antepassado meu. Era um homem, na casa dos trinta anos, com um belo bigode e vastos cabelos castanhos. Um rosto másculo. Lembro das horas perdidas em que ficava a admirá-lo, nos meus sonhos infantis, enquanto a tarde se descortinava lá fora e meus primos e irmãos - já cansados de me chamarem - gritavam e se divertiam com suas brincadeiras de quase quarenta anos atrás. Eu imaginava mil coisas. Qual seria a mulher que teria casado com ele? Alguma prima distante? Ou uma tia? Depois que cresci e cheguei na adolescência, costumava fantasiar que eu que havia casado com ele em outra reencarnação. Então, quando menos esperasse, o meu amante do retrato apareceria do nada, para entrar na minha vida e nunca mais sair. Fui ficando mais velha, mas minhas fantasias com ele não se foram. As fantasias se aperfeiçoaram um pouco, mas eram basicamente as mesmas. Ele me salvaria do marasmo que minha vida estava se tornando. Quem sabe em uma longa viagem eu topasse com ele em alguma esquina? Ou se sentaria ao meu lado no ônibus? Ou bateria na minha porta, vendendo enciclopédias? Não, enciclopédias não é algo muito romântico.

Certo dia recebi a notícia que minha avó havia morrido. Fiquei em alerta. Ela era a dona do retrato! Foi na casa dela que o conheci. Céus, aquele retrato era meu por afinidade. Durante o velório, enquanto minha família velava a velha, entrei sorrateiramente na casa e peguei o quadro para mim. Se era roubo, não sei. Mas era meu. Ele era meu. E se o quisessem, também teriam que me matar. Deixei o quadro na minha casa, seguro no meu quarto e voltei a tempo para o enterro. Fiquei esperando, nos dias seguintes e enquanto namorava meu amado, que algum parente emitisse algum sinal, reclamando do desaparecimento do quadro. Mas não aconteceu nada... para minha felicidade. Assim, por uns dois ou três meses, fiquei namorando meu amado, preso naquela moldura antiga, pendurado ele que estava na parede do meu quarto. Sentia os olhos dele me velando enquanto dormia e me desvendando quando me despia, todas as noites. Não eram raras as vezes em que sonhava que ele saía da prisão que era o quadro e se deitava na minha cama, ao meu lado. Quase podia sentir seus braços me enlaçando e muitas vezes acordei beijando meu travesseiro. Lógico que nunca contei destas particularidades para ninguém. Afinal, quem iria entender? Chamariam-me de louca, eu sei, só porque era apaixonada há mais de três décadas por uma pintura. Mas e daí?

Um dia recebi a visita da minha irmã mais velha. Visita normal, ela só queria uma peça de roupa emprestada para ir a um casamento. Mas aconteceu de eu ter que ir ao banheiro e quando voltei, encontrei-a no meu quarto. Ela admirava o quadro, com um sorriso maroto nos lábios. Meu coração disparou. Ameaçei que não emprestaria roupa alguma se ela abrisse a boca e revelasse onde o quadro da vovó estivera todo o tempo. Confessei, também, que eu não poderia viver sem aquele quadro e que a única coisa que me deixava feliz naqueles tempos era aquela figura. Declarei, ainda, que era uma honra saber que um antepassado meu havia sido um homem tão encantador. Minha irmã, felizmente, não emitiu maiores comentários. Mas me contou algo que me arrasou. Ele, o cara do quadro, nunca fôra antepassado nosso, nem de ninguém. Aliás, ele era um ninguém. Ele nunca existiu. Vovó havia dito que ele era nosso antepassado, mas na verdade, fôra ela que pintara o quadro e a testemunha era nossa própria mãe, que poderia confirmar tudo. Segundo minha irmã, vovó falara que ele teria sido nosso ancestral para deixar a história da nossa família mais bonita. Minha irmã sabia disto há um tempão. Eu, a bobalhona, era a última a saber. Por isto ninguém reclamara do quadro. Ele só tinha valor para mim.

Minha irmã, sem saber do tamanho da minha tristeza, foi embora, deixando-me eu e ele. Eu e o ninguém. Ele continuava lá, fitando-me, com aquela mesma expressão no olhar. Expressão, aliás, que eu jamais havia encontrado em homem algum. Senti vontade de chorar, mas me segurei. Mas a frustração, a raiva - de mim e da falecida vovó - e até um sentimento de rejeição, eram tão fortes que pensei que nunca iria superá-las. Por um centésimo de segundo, pensei em atirar o quadro pela janela. Mas... ruim com ele, pior sem ele. Afinal de contas, quem mais iria me olhar daquele modo? Ninguém. Por isto, decidi ficar com o "ninguém" pendurado no mesmo lugar.

Dia seguinte era sábado. Saí de manhã para comprar pão em uma padaria que havia aberto semana anterior, pertinho de casa. Estava pagando no caixa, quando percebi que alguém havia parado perto de mim. Com o canto do olho, vi que ele vestia uma camisa vermelha, de um time de futebol aqui da cidade. Já não gostei, porque torço para o time que veste a camisa azul. Pensei em ignorar totalmente aquele torcedor do time rival, mas uma vontade quase incontrolável de olhar para seu rosto, fez com que eu voltasse minha cabeça para seu lado.

Era "ele". De alguma forma, "ele" saíra da moldura e do século XIX e voara diretamente para os anos 00, trajando uma linda camisa vermelha, com seus belos cabelos castanhos presos em um rabo de cavalo, uma barba mal feita e um piercing na sobrancelha. Estava comprando pão. E a aquela expressão no olhar... Achei-o tão jovem que me compadeci. Vai que ele precisa de uma mulher mais velha que o proteja?

Bem, hoje vivemos juntos. Eu, meu amor e meu quadro. Meu amorzinho garante que o quadro e ele "não tem nada a ver.". São muito diferentes. Por mim, tudo bem. Eu vou sempre amar os dois.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 23/12/2005
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