O Nascimento de Emily a Boneca de Trapos

O Nascimento de Emily a Boneca de Trapos

Tive muitas amigas com quem dividir os momentos de lazer entre bonecas e chás que preparávamos. Mas as coisas mudaram de figura quando aprendi a ler e descobri o mundo maravilhoso criado por Monteiro Lobato. Começo a escapar das outras meninas , mesmo o jogo de bolinha de gude , quando os guris da zona permitem, complacentes , que participe, e que tanto me atraía , larguei pela segunda vida e a segunda identidade que criei debaixo da enorme parreira do quintal de meus avós. Ali, entre os livros ,sento na imensa mesa de pedra debaixo da parreira e acompanhada pela boneca de louça americana com cachos louros , vivo um mundo imaginário e fantasioso secreto. Monteiro Lobato dizia que a verdade é uma mentira disfarçada, e me disfarcei de Narizinho(personagem de Monteiro Lobato) .

O meu avô que sempre andava as voltas pelo quintal recolhendo os ovos das galinhas serve, sem saber , devido aos óculos e a postura empertigada para Visconde de Sabugosa. O pai também desconhecendo o fato , é o próprio Monteiro Lobato com quem converso ou troco idéias.

Um dia no serão familiar, olho a figura de Emily(a boneca de trapos que falava do Sítio do Pica Pau Amarelo,de Monteiro Lobato), comparo com a boneca americana e desanimo.

- Os americanos estão construindo uma geringonça para ir à lua. Esta gente fala como se fosse possível chegar lá Leopoldo ,dizia a avó, Outra máquina deles já está a caminho é a tal da televisão. Não duvido que passem um filme chegando na Lua para nos mentir que conseguiram. Até minha morte não vou acreditar.

- São os tempos modernos Anita ,tens que acostumar ,fala o avô Sabugosa, puxando os óculos , largando o jornal e tomando um trago das cachaças que fabrica todos os anos.

"Teus tachos de compotas de laranja e pêssego vão queimar "- continua o Visconde aludindo aos doces que , cheirosos ,cozinham em enormes tachos no fogão a lenha. Minha avó levanta resmungando que mal começa a fazer e já Leopoldo a apressa . Pega a colher de madeira e dá uma misturada nas frutas aproveitando para provar a calda . O colheirão se aproxima para minha lambida. Adoçada me sirvo do momento sereno entre o Sabugosa e a Anita ,como do assunto que conversam e pergunto:

- Avó, porque Deus não me fez com um nariz como o da menina do Monteiro Lobato?

- Deixa de bobagem teu nariz é muito mais bonito que o dela! Deve nem poder respirar de tão pequeno que é o nariz desta menina por isto este Monteiro Lobato aí que tu falas tanto, lhe pôs esse apelido.Aliás, vou dizer para tua mãe que estes livros te atrapalham. Nada mais te satisfaz, nem a boneca americana que teu avô te deu, gostas. Sabe Leopoldo ? Dias desses peguei nossa neta falando para a boneca que é feia. Bonita é a bruxa de trapos,a Emília, da Narizinho. E tem mais, quando passas no quintal a escuto te chamar de Sabugosa . Aquela espiga de milho horrorosa!

Os dois acabam às gargalhadas. Sinto me pega em flagrante e, preocupada com a ameaça de minha avó logo me alegro, pensando que Monteiro Lobato(meu pai) não vai deixar minha mãe confiscar os meus livros. Preservo meu mundo enfrente aos risos do avô e falo timidamente :

- Visconde , neste Natal pede para minha avó me fazer uma boneca de pano que nem a da menina , com a cara da Emília , pede? Sai mais barato avô,que um presente americano!

- Narizinho ,- disse o Visconde assumindo um ar sério e contendo o riso- eu sou contra a imitação. Então vou te dar esta boneca com a cara da Emília ,mas tens que colocar um nome diferente, o teu nome , porque ela vai vir do estrangeiro .

- Combinado , avô , a minha se chama então Emily , com y em vez do i.

No Natal aparece Emily com seus incrédulos olhos azuis arregalados.Chegou nos braços do Visconde e foi considerada um terror pelo meu pai ou Monteiro Lobato. Deixei passar, chamei o de invejoso. Emily tomou o lugar de todas as bonecas que tive mesmo as modernas que depois vieram . Sobreviveu comigo. Atravessou junto comigo todas as minhas crises vitais, até que , anos mais tarde , veio parar na nossa praia

O que Nicole nunca soube foi que esta boneca tinha vida própria e o hábito de ler ao lado dela.

Uma lágrima escorre dos olhos espantados de Emily, e mancha o pano do nariz naquele momento mágico em que as coisas possuem vida , quando os humanos adormecem no sonho. Começa a folhear o diário até o dia do nascimento de Nicole. Emily gosta de ler e adora a passagem em que vence a boneca loura americana, mas se chateia com a descrição, "boneca de pano de olhos arregalados".

"- Isto em absoluto é verdade - pensa, já de frente para o espelho - não passa de uma mentira disfarçada . Muito menos uma boneca espantada , ora bolas! Entendo perfeitamente a Nicole.Sei que escreve para se defender de uma vida injusta e que tem medo que as mesmas injustiças do passado se repitam novamente. Mas acreditar que necessariamente o futuro ou presente vão ser como o passado isto não aceito ,isto sim, me deixa pasmada nesta humana. Acho mesmo que este é um problema daqueles chamados de

“pessoais” por” humanos” - reflete , pois que se dedica a analisar , curiosa , as maneiras e atitudes de gentes.

Em absoluto quer que os bonecos pensem que é contra os escritores , muito pelo contrário, pois ela mesmo é o resultado de um grande escritor e todos os bonecos do mundo sabem , todas as crianças e adultos a conhecem . Anda um pouco esquecida atualmente,é verdade , mas vive no coração dos que lêem.Isto Nicole mesmo lhe disse para a consolar em um de seus momentos de desvalorização e auto piedade quando não quis mais ser boneca. O que deseja ,isto sim ,é que a pobre da Nicole se refaça e supere as decepções profissionais e amorosas do passado que sofreu depois que se transformou em mulher. Saia desta concha, permita que a descubram. "Pelo menos que edite seus livros" - pensa Emily, a contemplar os vários manuscritos empilhados no chão. Folheia o diário.

Lê o titulo, e imediatamente reconhece o personagem principal como o homem a quem Nicole amou,e depois o que lhe dava presentes ,e mais adiante o poeta de quem gostou e que não a escutou.

Absorta ,na escuridão da noite , quando os bonecos vivem o alerta para qualquer sinal de humanos (pois que têm o triste hábito de acordar à madrugada e atrapalhar a vida dos inanimados), continua a leitura serenamente na hora em que as pessoas ficam mudas e os objetos que parecem casuais vivem.Mesmo as samambaias sussurram entre elas.

Ninguém detém a boneca à procura da verdade sobre Nicole e assim foi que ela soube que sua dona fora torturada e quase morta,estava no Diário.

Neste momento deu “graças á Deus” por ser considerada inanimada,uma boneca apenas .

Sua dona havia sido torturada no passado em uma revolução,e o diário continha em pormenores toda a tortura.Emily entendeu Nicole e nunca mais a questionou em pensamento, porque não casara ou vivia enclausurada ou não editava seus livros.

Amanheceu e todo o inanimado voltou a perder a vida.No sofá restava uma boneca inexpressiva com os panos das bochechas molhados ,como se houvesse chorado ou descoberto,o que é mais provável,o que é a dor,a violência , a morte, e que bonecos,como ela,não morrem.

Nos últimos dias da vida de Nicole ,Emily,agora maltrapilha e caolha,ainda estava preservada e conservada,pois ela continha todos os livros e segredos do Monteiro Lobato.

Suzana Heemann

Suzana da Cunha Heemann
Enviado por Suzana da Cunha Heemann em 19/05/2008
Reeditado em 28/06/2008
Código do texto: T995674
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