O SAPO

          Desde a mofa de Ramiro sobre o meu medo de sapo, fiquei matutando sobre o assunto, dia após dia, até que abracei a crença de coragem interior e, numa nova visita ao Engenho Mundo Novo, fui, pela manhã, sozinho, ao banheiro do açude. Destravanquei a porta entrelaçada de cipós e varas, corri-a de volta e me sentei no estrado, junto à escada de acesso à água.
          Aos poucos fui me acostumando com as sombras do cercado, até conseguir divisá-los. Havia uns quatro sapos ao meu redor. Quase que achatados, parecendo parte da taboa em que dormitavam a frigidez da manhã de pouco sol. As jias e rãs, essas de quando em vez elevavam os coaxos acima dos cricris finos e persistentes dos grilos a engatinharem nos paus limosos que vedavam da vista dos homens o banhado tranqüilo e demorado das bangüeiras. Eram muitas as rãs! Mais de vinte, contei. Variegadas e luzidias, apesar da pouca claridade, ágeis no lançar a língua enorme sobre moscas e formigas, trazendo-as presas ao próprio visgo e as engolindo com a mesma rapidez do lançamento:

De verde-oliva, jias, pererecas,
parecem bailarinas, marionetes,
finas figuras, sílfides ninfetes,
miniaturas vivas de bonecas.

          Vigiando-as e totalmente envolvido com suas idas e vindas, esqueci-me dos sapos. Os sapos! Voltei-me para eles. Dois já haviam acordado, tomando a posição prévia de pulo. Um era enorme, cinzento, o couro das costas encarquilhado, com protuberâncias calosas, o papo branco e tremente assemelhado a um fole em miniatura, os dois olhos enormes fixos em mim. Tremi nas bases, mas continuei acocorado à sua frente. Será que ele estava pensando que eu tentava imita-lo?

Sapo gigante, verrugoso sapo
chato, deitado, e, se sentado, chato,
olhar que vê no escuro, olhar de gato,
a boca imensa, imensidão de papo.

Sapo que anda aos pulos, no sopapo,
de pés e mãos aparentando um pato,
língua de fita que, na finta, a jato,
fisga besouro, mosca, qualquer trapo.

Sapo que geme, chora, canta e dança,
que não guarda nenhuma semelhança
com os demais seres vivos, eu receio

ao vê-lo verruguento, a enorme pança,
que fez somente o mal, quando criança,
por isso assim cresceu, visguento e feio.

          Voltei-me para o outro: era bem menor e bem diferente. O seu dorso era azul. Um sapo azul! De olhos meio achinesados, firmando-se nas quatro patas, o papo fino de pouca tremura, a me olhar de baixo para cima como querendo identificar que bicho eu era. Enquanto o outro continuava sentado, imóvel como uma estátua, o sapo azul começou a caminhar para mais perto de mim. E estranho é que dele eu não estava com medo! Chegou-se mais perto, sempre a me olhar de baixo para cima e de cima para baixo, avaliando-me a cada novo passo e já ao alcance da minha mão. Sem tirar os olhos de mim, esticou as patas dianteiras e se sentou da mesma forma como sentado eu estava. Vagarosamente e sem um tico de medo, estendi o braço em sua direção e toquei-o de leve. Ele sequer pestanejou. Pode ter sido impressão minha, mas pareceu-me sorrir. Desse sorriso calado, que apenas a boca muda de formato e se torna suavemente engraçada. Repeti o toque. Ele não se mexeu. Corri os dedos pelas suas costas azuladas e crespas. Ele voltou a se firmar nas quatro patas, dando mais dois passos para mais perto de mim, sentando-se novamente. Voltei a alisar-lhe as costas. Ele voltou a me sorrir, encorajando-me. Cuidadosamente, tomei-o nas mãos. Ele distendeu os braços e as pernas, como quem se entrega a um novo destino sem nenhum receio do que há de vir.
            De repente me veio a compreensão de tudo. Eu havia feito um novo amigo e ele me considerava como tal. Um amigo sapo azul que agora assentado em minha mão, olhando-me nos olhos, parecia me transmitir coisas de um mundo por mim desconhecido, costumes e formas de vida que eu ainda não atentara existisse, ou vontade de mudança de espaços mais condizentes com as andanças de um sapo azul.
          Na volta à casa grande ninguém o notou sob a minha camisa. Tio Cunha foi quem se admirou com a folha de jenipapo presa ao calção, usada para encobri-lo.
          - Oxente, Liminha, pra que essa folha?
          - Dor de veado, tio. Dona Dulce disse que passava.
          - Aquela negra é maluca, menino! Dor de veado passa com capim-vassoura ou melão do mato! – e abriu na risada que ainda era ouvida do quarto onde eu agasalhava Frederico I, o meu sapo azul, numa lata vazia de cera Parquetina, escondendo-a sob a cama.
          À tardinha voltamos para João Pessoa. Antes de subir na camionete, Dona Arminda ainda chegou a me perguntar:
          - Que é que tu levas nessa lata com tanto cuidado, Liminha?
          - Ovo de capoeira, tia, que catei nas moitas de capim-santo – e, com medo que ela pedisse os ovos de volta – Ovo e puxa-puxa que fiz de manhã, junto do bangüê.
          Quando chegamos a João Pessoa, Dona Anginha, minha mãe, entretida estando com os garajaus de rapadura, os sacos de milho verde, de farinha de mandioca e as cestas de ovos e de frutas - nem notou quando entrei em casa com a lata de cera sob o braço, o coração batendo acelerado, e os planos futuros sobre Frederico I fervilhando na cabeça.
          Na segurança do quarto, abri a lata, vagarosamente, temendo um pulo seu pela janela aberta, junto à cama. Parecia dormir. À luz velada refletia-se-lhe no corpo achatado, matizando cores tirantes do azul. Os olhos estavam cerrados A língua, em forma de fita, sobressaia em um dos cantos da boca. Cutuquei-o. Mal se mexia. Estaria com fome? Com sede? Tirei-o da lata, coloquei-o, cuidadosamente, debaixo do travesseiro, escondi a lata debaixo da cama, e fui à cata de comida para o rei.
          Na sala de jantar, a mesa estava farta. Milho assado, manga, banana amadurecida no pé, sapoti, graviola, pé-de-moleque, puxa-puxa, rapadura batida, ovos fritos e cozidos, cuscuz com leite de gado, a turma toda em volta, no belisco, e Dona Anginha:
         - Tás doente, meu filho? – e ao meu sinal que não – Chegou, correu pro quarto, não me pediu bênção...
          - É só dor de cabeça, mãe. É a poeira da viagem. Bênção?
         Beijei-lhe as mãos que corriam meus cabelos, enquanto eu pregava os olhos no chão à procura de um besouro, de um grilo, de uma barata...
          - Mãe, onde é que tem barata?
          - Lá no engenho deve ter. Aqui, não! Você agora ta brincando com barata?
          - Não, mãe. Eu quero pegar para levar pro engenho. Os sapos do açude é só o que comem. E alguns são tão magrinhos!
          Riram todos enquanto eu, compenetradíssimo, continuava a procura pelos cantos da cozinha, ouvindo, sem querer, a voz risonha de Dona Anginha:
          - Era só o que faltava Liminha inventar! Dar de comida a sapo!
          Fiquei com medo. E se fossem ao meu quarto? E se encontrassem Frederico sob o travesseiro? Apressei-me. À luz fraca do terraço que dava para o quintal, consegui, finalmente, encontrar o que procurava: um formigão, alguns besouros, e uma mariposa de asas felpudas que se debatia no batente cimentado. Pequei-os com a camisa, arrodeei pelo beco, pulei a janela do quarto, passei o ferrolho na porta, coloquei o formigão, os besouros e a mariposa na lata, e tratei de acordar Frederico I. Levantei o travesseiro e ele nem se mexeu. Passei os dedos sobre o seu dorso, agora de um azul-escuro. Estava mais frio do que de costume. O travesseiro não fora suficiente para esquentá-lo. Levantei-o. As mãos e as pernas penderam, balouçantes, no espaço vazio. Chamei-o pelo nome. Nada. Tentei lhe abrir os olhos que pareceram não me ver. Sacudi-o. Abri-lhe a boca desdentada, soprei-lhe o que pude da esperança de vida havida em meu peito mas nada adiantou. Frederico I, o meu sapo-rei azul, estava morto!
          Com o meu grito acorreram todos à porta, que não resistiu ao primeiro tranco de Marcos. Encontraram-me sentado ao chão, sob a lâmpada, pranteando, copiosamente, o pequeno corpo de Frederico I em meu colo.
          - O que foi que....Ó, meu filho, o que é isso?
          - É...é Frederico I, mãe, um... rei... meu amigo que eu trouxe do engenho... – minha voz saia cortada, aos pedaços, parceira de meus soluços – Eu abri a lata, mãe..., coloquei ele na cama....fui buscar comida para ele...e ele morreu, mãe!
          Dona Anginha me abraçou, sentou-se na cama e me agasalhou em seus braços e colo de maternais carinhos, enquanto eu escutava, parecendo vir de muito longe, as vozes de Marcos, de Geraldo, de Gilza, de Maria e de Terezinha. E as vozes se ajuntavam num só murmúrio e às vezes se uniam num silêncio só.
          - Onde está a lata, meu filho?
          - Debaixo....da....cama...
          Alguém a retirou, abriu e a soltou, de repente, no chão de cimento, num barulhão medonho, enquanto os besouros e a mariposa voluteavam em torno da lâmpada, e o formigão escapava da morte pela porta escancarada.
          - Foi você que prendeu esses bichinhos na lata, filho? – Como era doce e suave a voz de Dona Anginha! Até mesmo no instante da reprimenda, no momento da censura, o tom era o mesmo: acariciante e disciplinador, sorridente e circunspeto.
          - Era... a...comida...de...Frederico, mãe!
          Seguiu-se um cochichado, de que participaram todos - menos eu, agora sozinho na cama com Frederico ao colo. Marcos foi quem representou a família, sentando-se ao meu lado:
          - Bem, Liminha, Frederico morreu, não é verdade?
          Balancei a cabeça que sim.
          - Agora é tratar do enterro, não é verdade?
          Voltei a acenar que sim.
          - Vamos enterrá-lo agora?
          - Pode ser na lata, Marcos?
          - Uma ótima idéia! A lata vai ser o caixão de Frederico.
          - Frederico I, Marcos. Ele era rei. Era um sapo-rei-azul!
          Levantei-me, apanhei do chão a lata de cera Parquetina, forrando-a com guardanapos de papel. Dona Anginha trouxe flores de resedá, cobrindo, com elas, o corpo achatado de Frederico I. Rezei, baixinho, um pai-nosso, pus a tampa e seguimos, em fila indiana, para os fundos do quintal, com Marcos à frente, de lanterna na mão. Entre o coqueiro e o muro, na parte mais arenosa, escavaquei um buraco de bom tamanho, baixei nele o féretro de Frederico I, o sapo-rei-azul, tapando-o com terra e pedregulhos, rebatidos, logo após, por vigorosas botadas de meu irmão:
          - Para que o corpo de Frederico descanse em paz.
          Ainda me aventurei:
          - Posso colocar uma cruz, mãe?
          - Não filho, a cruz é o símbolo dos cristãos.
          - Mas Frederico I era cristão, mãe!
          - Ele ia à missa?
          - Não, mãe.
          - Ele se confessava e comungava?
          - Não, mãe.
          - Então nada de cruz.
          Voltamos para dentro de casa na mesma fila indiana, Marcos iluminando o caminho. Pedi a bênção, mais uma vez, a Dona Anginha, que me exigiu tomasse banho antes de deitar. Obedeci-a, mas sem deixar de levar comigo papel e lápis.
          Cedo da manhã seguinte, antes de apanhar os jornais para distribuição na rua, voltei ao túmulo de Frederico I, enterrando, bem ao centro, a cruz de um dos terços de Dona Anginha, e colando no muro em frente o soneto que a ele dediquei:


HOMENAGEM PÓSTUMA A DOM FREDERICO I


Frederico Primeiro, aqui descansa
o seu sonho de plena liberdade
ao sair de um engenho pra cidade
cheio de planos, pleno de esperança.

Frederico Primeiro, inda criança,
foi meu amigo, amigo de verdade.
E quando amigo vira eternidade
passa a ser imortal numa lembrança.

Quis de meu fardo o acaso ser destino
nas graças de um sorriso pequenino
vindo d’águas brejeiras do paul

para marcar meu peito de menino,
com a morte de um rei, de um deus Faustino
Dom Frederico, o Sapo-Rei-Azul!


Odir, de passagem