Contos de Tormenta - Sobre as Bençãos e as Blasfêmias I

Primeira parte de um conto baseado no mundo de Tormenta, criado por Marcelo Cassaro, Rogério Saladino e J. M. Trevisan.

=============

O sangue respingou em enormes gotas, escapando de uma ferida brutalmente aberta. Um grito torturado acompanhava a chuva vermelha. A batalha prosseguia, sem dar atenção a mais um amputado que girava e berrava reclamando o braço perdido. Uma lança pesada atravessou o peito do homem, mais por causa do desespero dos guerreiros em matar o que estivesse de pé do que por considerá-lo uma preocupação. Gritos de guerra em homenagem ao Deus da Guerra ressoavam como frases tão brutas quanto o massacre daquela tarde.

- Minha espada é minha prece! Sua morte é meu milagre! – gritava o líder dos guerreiros de armadura vermelha.

Acabara de arrancar o braço de um homem e continuava caminhando confiante, sem olhar para seus subalternos finalizando seu trabalho. Drumius somente avançava pelo campo, erguendo a espada, ceifando membros, colhendo sangue e pintando o verde da grama com o vermelho da vida. O peso de um martelo de guerra caiu sobre o escudo do guerreiro sacerdote. Foi um impacto tão forte que o fez recuar passos para trás. O inimigo esboçou um sorriso debaixo do elmo, julgando-se com sorte ao enfrentar o líder da Companhia da Guerra.

O rosto de Drumius avermelhou-se e o cenho franziu. Jogou o escudo fora. Arrancou uma maça de espinhos da cintura e esperou o próximo ataque. Foi tão rápido que ele mal conseguiu se esquivar. O golpe pegou de raspão no elmo e a força monstruosa foi o suficiente para descobrir a cabeça do clérigo. Deixou à mostra os cabelos raspados curtos e os olhos negros com sede de vingança. Ele queria matar naquele dia e tanto melhor se a presa oferecesse resistência.

- A Morte é rubra! A guerra é sagrada! – clamou com as orações de palavras curtas e atos sangrentos.

O próximo golpe foi evitado com movimento de ombro que desviou o braço esquerdo do ataque fatal do martelo e liberou a maça. A arma girou começando por trás e fazendo o arco na diagonal. Encerrou o golpe no rosto do adversário. Os espinhos invadiram a boca atravessando a bochecha e rachando os dentes antes que a mandíbula fosse deslocada e pendesse diante da face. O sangue espirrou em Drumius, mas o sacerdote não descansou. A espada fez uma visita breve nas entranhas do inimigo antes. Jogou o corpo no chão e prosseguiu.

- A Morte é rubra! – gritou.

Um trovão o respondeu. De repente, o caos se abriu e ferro e chamas tomaram o campo de batalha. Uma onda de ar e chamas passou pelo sacerdote. Lascas de metal voaram cortando-lhe o rosto. Tombou surdo, impressionado com o caos transformado em ordem e silêncio. Abriu os olhos depressa e viu um dos lanceiros caído com um pedaço de ferro cravado no rosto. Mais uma carta para uma família que choraria um segundo filho morto lutando por Keenn.

Ficou de pé ainda aturdido. Os ouvidos zuniam, nocauteados pelo trovão. Os olhos procuravam, querendo encontrar um alvo e ainda entender aquele terror maldito que deixara tantos dos seus caídos. Precisou olhar alguns segundos em volta para notar a incompreensão difundida nos rostos de seus soldados. Mais ainda que ele, os homens precisam entender qual era aquele novo terror que vinha despedaçar seus corpos e roubar suas almas.

Drumius fixou o olhar à frente e viu o monstro. Era aço, somente aço cercado de humanos desesperados que pretendiam fazer o rugido, o ferro e o fogo espalharem sangue e carne pelo campo de batalha. Uma sereia não deixaria um marinheiro tão inspirado. Foi uma visão e uma paixão que causou delírios rubros e lacrimejantes nos pensamentos do servo do Deus da Guerra. Agora ele lutaria por aquilo. Que se danassem o dinheiro, os inocentes e as causas nobres.