Contos de Tormenta - Sobre as Bençãos e as Blasfêmias II

Segunda parte do conto sobre os guerreiros e sacerdotes a serviço do Deus da Guerra. Agora a companhia de Drumius volta para a bae da Ordem Sacrossanta para relatar os anos de campanha e sobre sua novidade.

======

A Companhia da Guerra marchou de volta para casa. Voltou diferente. Não eram mais os lanceiros e cavaleiros brutos que haviam partido para cumprir o contrato mercenário. Voltavam agora guerreiros e sacerdotes selecionados, com ares de vitória no rosto e corpos de amigos nas carroças. Drumius fizera questão de mandar salgar todos para a marcha de retorno. Queria os enterrar em Yuden e não em um reino porco distante, onde a guerra era uma palavra feia que assustava as crianças durante a noite e a força nada mais do que um cão preso em correntes chamadas leis.

Partiram cento e quinze deles, voltavam setenta e oito após dois anos de marcha, luta e sangramento. E eles se divertiram. Cantaram e dançaram em volta de fogueiras. Beberam e contaram histórias em terras distantes. Repetiram o mesmo em meio aos corpos do campo de batalha e fizeram fama.

Agora davam passo após passo em silêncio. Os corações armados para a festa foram desfeitos para se erguerem as torres da disciplina. Foi em silêncio que alcançaram Ternach, o castelo da Ordem Sacrossanta da Guerra e da Conquista. Drumius adorava o nome pomposo. Vestir o manto branco e rubro preenchia seu coração com orgulho, ainda mais quando via o símbolo das três lanças bordadas sobre o ombro esquerdo. A memória do dia em que fora sagrado cavaleiro sacrossanto de Keenn era tão vívida em sua mente que podia evocá-la e sonhar acordado com os momentos de êxtase.

A marcha parou diante das portas do castelo. Cavaleiros paralisaram os animais. Homens se ajeitaram nas fileiras. Os muros de Ternach impunham a renovação da disciplina. Antes apenas a morada de um nobre poderoso, passara a ser uma mistura da sede do ducado de Ternach com a base de uma das ordens emergentes de Yuden. Contando com a companhia de Drumius, os cavaleiros sacrossantos poderiam reunir até mil homens armados e treinados para uma batalha. Bastava-lhes ter tempo. Obviamente, nem todos estavam agora atrás dos muros negros ou escondidos nas seis torres do castelo. Eles se espalhavam por Yuden e reinos alinhados para formar pequenas comendas, bases de recrutamento para uma guerra com que todos sonhavam.

- A Companhia do Sangue e do Fogo se apresenta – gritou diante dos portões.

Coçou o queixo com a barba por fazer enquanto as portas se abriam. O rangido não perturbava seus pensamentos. Estava absorto nas novas idéias, aflito em mostrar as preciosidades sanguinolentas que encontrara. Sorria quando o interior do castelo finalmente se revelou e o sorriso não desapareceu mesmo quando encontrou apenas dois velhos amigos à espera. Nenhum dos dignitários da ordem, muito menos o Duque de Ternach. Mas ele era apenas Drumius e precisara dar a si mesmo o título de Algoz Rubro, quando até isso lhe fora negado.

A aparência de Dencar e de Lenius mantinha a firmeza dos guerreiros tradicionais de Yuden. A única mudança que chamou a atenção de Drumius, fora uma ou outra cicatriz no rosto, foram as peles de lobo branco que agora vestiam. Indicavam a posição de poder que os dois haviam adquirido através da luta, algo que o líder da Companhia do Sangue e do Fogo ainda batalhava para ter. Talvez nunca tivesse, dado o modo como galgara as primeiras posições como guerreiro sacrossanto.

Foi com os dois que conversou e foi a Dencar que se apresentou para reportar toda a campanha mercenária. Falou das lutas, dos novos contatos, dos tesouros adquiridos e das baixas. Terminou convidando-o para sentarem-se à noite na taverna para conversarem. Assim, quando já retirara a armadura e preparava-se apenas para lutas políticas, fincou a faca em uma mesa já muito furada e pediu por cerveja, observando como a taverna não mudara nada. Ainda era a mesma construção de pedra e madeira, com armas enfeitando as paredes e somente três janelas para fazerem o ar circular. Guerreiros sacrossantos de manto branco e sargentos de mantos cinzentos caminhavam e conversavam. Um bardo cantava sobre as mais recentes batalhas de Arton.

Ninguém temia as armas nas paredes. Outras tavernas em Arton com certeza evitariam deixar instrumentos como aqueles tão expostos para clientes com excesso de álcool na cabeça e uma carga muito pesada de problemas. Não era o caso de Ternach. Os homens viviam cansados demais com os treinamentos para perderem tempo brigando nas tavernas. E as disputas dentro dos testes diários serviam para resolver as complicações internas, exceto na área da política.

As conspirações e redes de manipulação era um campo de espadas comum em Ternach. Desde que o duque fundador da ordem declarara que o título de dono das terras seria conferido por meritocracia e não por herança, os jogos políticos começaram a ser travados com golpes cada vez mais contundentes. A maioria deles acabava sendo mortal para a fama, a honra ou o corpo dos conspiradores. A clemência era uma palavra zombeteira para os guerreiros sacrossantos. Foi contando com ela que os primeiros tombaram e foi zombando dela que os últimos sobreviveram.

Drumius sorveu toda a cerveja em um gole só. Queria conter parte da ansiedade. Precisava de notícias e os amigos não chegavam. Bebeu outro caneco antes que Lenius passasse pela porta. Tinha os cabelos raspados também, mas deixara crescer um cavanhaque que escondia o final de uma cicatriz que descia pela bochecha. Mal sentou-se na cadeira, já haviam lhe jogado um caneco de cerveja. Inclinou-se e fitou bem os olhos de Drumius:

- Vermelhos? – perguntou, fitando enquanto bebia.

- Sim. Os clérigos dizem que é por causa da pancada.

- Você é um clérigo.

- Mas não sou tão covarde a ponto de inventar uma mentira tão deslavada.

Lenius olhou em volta e se encostou. Balançou a cabeça de leve e olhou para a porta.

- Dois anos mudam muita coisa, Drum – disse.

- Você mudou? – perguntou o líder da Companhia do Sangue e do Fogo.

- Mudei. Descobri coisas que podem apaziguar esse ódio que alimentamos no dia a dia.

- Por que alguém iria querer descobrir isso? – perguntou Drumius. Parecia que o amigo estava pedindo clemência para a vida que Keenn lhe dera.

- Para não ter que dormir com uma faca debaixo do travesseiro.

- Você não é tão estúpido até esse ponto – zombou.

- Não, mas ao menos agora eu sonho com isso. Estou noivo, Drum, e estou apaixonado. Guerreiros têm permissão para se apaixonarem, não é?

- Desde que saibam que é bem provável que criarão uma guerra em que as paixões deles serão estupradas e escravizadas e não vejam problemas nisso – falou rindo.

- Dá mais força ter pelo que lutar. Eu morreria tanto por ela quanto por nossa amizade.

- E sua fé?

- Há espaço para amigos, para amantes e para meu deus aqui dentro – disse Lenius, batendo forte no peito.

Bateram as canecas no ar. Voou cerveja por toda a mesa e ambos riram enquanto bebiam. Valia a pena lutar e amar. Valia a pena ter pelo que comemorar e pelo que gritar enquanto se levantava a espada.

- Quero conhecer sua esposa e quero carregar a espada pela qual jurarão morrerem juntos.

- Estava pensando em você para celebrar o casamento...

- Não, eu estarei pensando em partir vocês ao meio ao invés de casá-los. Odeio esses pares de pombinhos apaixonados.

- Pombos não, lobos.

A conversa amena acabou quando Dencar surgiu. Os cabelos do guerreiro normalmente chegariam até o ombro, mas agora estavam amarrados com tiras de couro, formando uma trança curta. Foi com um par de íris azuladas escondidas sob uma testa franzida que fincou o olhar em Drumius.

- O que aconteceu com seus olhos? – perguntou.

Lenius se remexeu na cadeira e olhou brevemente para o amigo. O guerreiro de olhos vermelhos não deu nenhuma atenção a isso. Encarou Dencar sem medo.

- Acho que Keenn preferiu mudá-los de cor. Combinam mais com a mensagem do nosso deus.

- Uma pancada na cabeça gerou isso. É só uma cicatriz de batalha como todos nós temos – afirmou Dencar, batendo a mão na mesa e olhando em volta. Outros sacrossantos, sargentos e soldados desviaram os olhares para os três, depois voltaram aos próprios assuntos.

- Com ou sem seu showzinho, eu continuo com meus olhos vermelhos. A Morte é rubra e enxerga através de mim – disse, apontando os olhos com o indicador e o dedo médio. Sorriu ironicamente e bebeu mais um pouco.

- Drumius, sua insensatez não vai ajudá-lo. Sua petição não passará. E ninguém está satisfeito com o que gastou todo o dinheiro!

- Passa sim. Com você e Lenius tendo palavra no conselho, tenho certeza de que passará. É a vontade de Keenn. O mundo tem que mudar.

- Armas de fogo não serão aceitas na ordem. A cavalaria não será corrompida pela covardia intrínseca a esses instrumentos.

Dencar sempre adorava falar bonito. Às vezes usava frases pomposas, principalmente quando queria ameaçar ou diante dos superiores. Drumius se divertia com isso, mas percebeu que aquele não era momento de rir do amigo.

- Seu mau humor vai azedar minha cerveja – falou, tomando o restante da bebida de uma vez. – Com licença.

Saiu seguido de Lenius e viu que outros oficiais entravam e tomavam seu lugar. Começavam uma conversa tórrida com Dencar, às vezes soltando olhares nervosos na direção da dupla. Foi só fora da taverna que os amigos conversaram de novo.

- Cuidado. Dencar não é mais o nosso amigo de antes – disse. – Drumius, ele fez alianças. Casou-se e você sabe com quem se casou. Isso lhe rendeu favores e deveres. Ele pisará em você se incomodá-lo. Não somos a mesma parede de escudos mais.

- Paredes de escudo serão um fracasso em breve, Lenius. Escute-me. A Nova Guerra vem e o que não muda nela é apenas a cor do sangue que vai escorrer. O modo como vamos fazê-lo banhar a terra é será bem diferente.

- Não sei se essa é a melhor idéia, Drum. Dencar vai se opor. Eu estarei do seu lado, mas Dencar vai se opor.

- Não vai. Ele só precisa ser espalhafatoso para mostrar serviço, Lenius. Eu o conheço. A petição vai passar. A Companhia do Sangue e do Fogo usará armas de fogo.

- Cuidado com essas mudanças, amigo. Você já mudou coisas na ordem que não causaram nenhuma felicidade. Somos geridos por velhos que não morreram em lutas e cujos braços não são como os nossos na espada. O poder que eles têm está nessas tradições. Você já mudou uma e causou prejuízos a alguns. Não mude outras.

Separaram-se após essa última frase. Drumius seguiu para os dormitórios separados para os oficiais, finalmente liberados para ele após dois anos de campanhas de sucesso. No início, ninguém queria admitir que ele conseguira. Falaram que perdera soldados demais, que não montara nenhuma comenda, mas Lenius interferiu e tinha certeza de que Dencar também ajudara. Agora estava entre os oficiais de carreira e em breve teria sua pele de lobo.

Shaftiel
Enviado por Shaftiel em 12/09/2008
Reeditado em 12/09/2008
Código do texto: T1174926
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.