A MENINA DA BICA

Hoje é, certamente, um dia bem comum, como qualquer outro para todos. Cedo, quando levantei, vi através do lusco-fusco o alvorecer de um dia de céu azulado. Porém, ao sair, ele já estava cinzento. E seguiu assim, alternando cinza e azul durante toda a manhã. Sei que para muitos este é um dia deprimente. Para mim, porém, não é. Tráta-se simplesmente de um dia comum, pois amo o romantismo dos dias cinzentos, assim como vejo românticos os dia primaveris.

Na semana passada entrou em minha loja um homem de quarenta que me lembrou da rua onde morei quando menino, entre dez e dezessete anos. Não o reconheci, mas ele me ajudou a recordar nossa infância. Gastei um tempo com ele, relembrando alguns amigos e amores, como uma moça de dezessete anos pela qual me apaixonei aos quatorze, e muita gente que emoldura a parede da saudade. Lembramos a pena onde pegávamos água, a qual servia toda a vizinhança de uma quadra. Ali ficávamos horas aguardando a vez e cuidando uma fila interminável de baldes dos vizinhos. Lembrei de uma menina de uns nove anos. Ela era meu sonho, o que não me lembro de tê-la dito. Por causa dela eu não me incomodava de perder horas no beco, escorado na pena, aguardando sua lentidão eterna, vendo a menina correr e pular, plantar bananeiras, o que mais gostava, e propagar seu sorriso musical. Sua peraltice me encantava.

Quando o vizinho de infância se foi, voltei ao presente, recordando que se passaram trinta e quatro anos. Desde que se distribuiu água encanada para a vizinhança não houve mais razão de ir ao beco, mesmo porque a pena d’água de lá foi tirada. Eu tinha uns doze anos e desde então não mais vi a menina da pena. Perdi-a de vista. Sequer soube seu paradeiro.

Quando adolescente, algumas vezes fui ao beco, por um pretexto ou outro, ver se a via. Tímido, porém, pensava que teria arranjado namorado, pelo que minhas chances restariam esgotadas.

Depois que o amigo da infância se foi, pensei: “Nunca mais verei a menina da pena d’água!”.

Uma mulher em minha loja perguntou hoje se eu não sou filho do seu fulano. Respondi-lhe que sou filho de um seu fulano sim. “O seu fulano”, disse ela, “o que trabalha com tal e tal”. Diante de sua assertiva, não mais pude me esquivar. Por isto respondi que sim, já esboçando um ar de curiosidade. Ela sorriu aliviada e satisfeita, acrescentando que me achara parecido. Perguntei-lhe se me identificara pela semelhança com meu pai ou por ter me conhecido no lugar onde ele ainda mora. Ela respondeu que fora por ter me conhecido quando eu era pequeno e lá morava. Perguntei-lhe se ainda mora lá. Respondeu-me que sim. Perguntei-lhe se ainda mora no beco. Respondeu-me que jamais de lá saiu. Perguntei-lhe se eu a teria conhecido. Respondeu-me que talvez nem me lembrasse, mas a conhecera. Pensei em perguntar-lhe se era a menina da pena d’água. Perguntei-lhe, porém, o nome. Ela respondeu simplesmente: “Sou a menina da pena d’água”.

Pensava eu que jamais me reconheceria. Eu é que não a reconheci. Disfarçando a emoção, contei-lhe que há uma semana nela falara. Quase lhe disse que fora meu sonho nos tempos de infância. Porém, não disse e percebi que, mesmo sem dizer-lhe, a pus desconcertada frente a moça que a acompanhava. Pensei que ao dizer-lhe que nela falara na semana anterior pareci a remendar-me, haja vista que ela me reconheceu e eu não a reconheci. Ao mesmo tempo, achei que ficou flagrante minha atenção especial à lembrança dela. Todavia, isto é que era a verdade, pois a recordara mesmo ha uma semana.

Pareceu-me tão linda quanto a menina da pena d’água, porém, agora passando dos quarenta anos, e tão irrequieta também.

Procurando comedir-me mais, disse-lhe que fora uma satisfação tê-la visto novamente; que achara que jamais a veria de novo. Ela não disse nada a respeito, apenas despediu-se e, com sorriso mais irônico do que maroto, comentou ao sair: “Sempre um dia chega a hora”.