Kenji Harima, o Peregrino II

Kenji Harima, o Peregrino

2 – Onde

Já se faz noite quando atinjo os limites do bosque onde acordei. Afora o cervo no córrego, nenhum outro animal cruza o meu caminho, mas posso ouvir pássaros distantes. Minhas pernas já não tremem, ou não as percebo vacilar na pior hipótese. À minha frente, uma frondosa planície azulada graças ao luar se estende, com minúsculos focos de luz alaranjados ainda mais adiante. Parece um vilarejo de camponeses.

“Mais alguns metros não irão me matar”, balbucio, recuperando o ritmo das passadas. Invado a plantação sem cerimônias, afinal não tenho energia para empregar fazendo uma volta pelas trilhas. Ansiosos minutos depois chego a um conjunto de acanhadas casas erguido ao redor de uma praça, entrecortadas por um córrego. Talvez seja o mesmo fio d’água do cervo na mata. Mais uma vez o cervo adentra em meus pensamentos. Creio que em algum recôndito de minha consciência eu esteja me lamentando por não tê-lo caçado quando a oportunidade se fez. Com certeza meu estômago não suplicaria tanto agora.

Minhas pernas voltam a fraquejar, num lembrete do estado deplorável no qual me encontro. Uma das casas mais próximas fervilha atividade e eu logo me direciono a ela. Tropeço em seu primeiro degrau de madeira polida, indo ao chão como um peso morto e golpeando a porta com minha cabeça. Giro o corpo e, de bruços, me ponho a ver o telhado oscilando. A porta se abre, mas meus olhos não possuem força para fitar quem a havia aberto. Ouço apenas um grito, seguido por um baque adjacente. No limiar da inconsciência, distingo uma voz feminina me questionar. “Quem é você?”, pergunta em um idioma díspar do que estou habituado, embora possa entendê-lo.

Se outra fosse a indagação, eu não poderia nem mesmo rascunhar uma resposta. Mas aquela específica eu podia dar-lhe uma informação, ainda que rasteira. “Kenji Ha... Harima,” respondi gaguejando. E mais uma vez as trevas me fizeram uma visita.

***

Regresso aos meus sentidos depois de um breve sono sem devaneios. Estou aparentemente dentro da casa a qual bati elegantemente à porta com a cabeça. A porta, por acaso, jaz fechada à minha esquerda. Fui acolhido com facilidade, ao contrário das minhas expectativas.

“Vejo que acordou, Harima-san,” articula minha anfitriã. Desta vez, consigo observá-la: uma jovem moça, envolvida em uma roupa longa amarelo-dourado adornada com imagens de flores. Uma fita branca enlaça sua túnica na altura da cintura, mas é seu perfume que me atiça a encará-la um pouco mais. Fragrância simples e envolvente, que inunda minhas narinas com familiaridade. Sua bela face – ainda que me seja desconhecida – me traz uma intimidade incógnita, com seus acanhados olhos puxados. “Harima Kenji, foi o que disse, não?”

“Kenji,” rebati, me lembrando que em algum lugar deste mundo o sobrenome é dito anterior ao próprio nome. “Isso, este é o meu nome. Onde...”

“Se acalme, Harima-san,” ela me interrompeu. “Meus filhos estão preparando um chá bastante reanimador para o senhor. Deve ter passado por um mal bocado para acabar desse jeito! Se é que me permite...”

“Eu não lembro,” admiti rapidamente. Minha esperança de que ela me reconhecesse de alguma forma fora infundada. Mas ao menos eu estava em boas mãos.

“Não se mova,” disse ela, cuidadosa. Levantou-se graciosamente e deu alguns passos para dentro da casa.

“Mas quem... qual é o seu nome?” Ao passo que indagava, senti minha boca secar avidamente.

Ela virou-se sorrindo. “Ino. Harima Ino,” foi o que replicou, baixando seu corpo em uma reverência. Sua resposta me surpreendeu de tal forma que nem notei quando se retirou. Estava ela ligada a mim, afinal. Bastava agora descobrir qual era o elo entre nós.

Apesar de imerso em pensamentos, pude ouvir quando Ino provavelmente repreendeu seus filhos. Ressabiei-me em poder ouvir tão claramente seu murmúrio. “Fiquem aqui! Não sabemos se ele é um samurai, ronin ou até mesmo outra coisa! Que o Dragão Amarelo nos ampare e ele seja realmente um samurai da casa.” Mais uma vez minhas esperanças sofreram um duro golpe; ela definitivamente não me conhecia. Talvez essa seja uma família grande, ou ela tenha recebido o nome após o casamento. Ou então um de nós está mentindo, mesmo que no meu caso não seja essa a intenção.