Reunião de Família

Dex Destreza

Reunião de família

Aquela era uma bela noite em Delmér, uma graúda cidade portuária. A lua, vista através da tenra neblina que cobria a cidade, flutuava imponente sobre o mar. Parecia enorme. Os que não temem o Deus-Sol ousariam dizer que ela estava ainda mais brilhante e majestosa que o astro dono do dia. Toda a cidade, no entanto, parecia temer a fúria de Lantaris naquela noite. Contam os ensinamentos ancestrais que a lua resplandece com o humor da deusa do crepúsculo; e a cheia representaria seus piores sentimentos. Assim, a urbe vivenciava um raro momento: estava silenciosa, tranqüila, nenhuma viva alma povoava suas ruas e praças.

Até mesmo o porto, onde os mandriões se reuniam em tavernas para se embriagarem, estava um pouco abandonado neste dia. Não sabiam eles que pacto Lantaris possuía com Atlan, mas tinham ciência que o humor da deusa influenciava o comportamento dos mares. Logo, até mesmo o mais ardoroso capitão ou o mais intrépido espadachim tinha receio de ofender a noite. Pelo menos enquanto sóbrios.

À janela do andar superior da Taverna do Caranguejo Manco, um felítrius observava esse mesmo luar que instilava admiração e medo no povo. Seus pensamentos, entretanto, não pairavam sobre lua ou mar. Sua amada estava distante, seus amigos também. E o pior: ela estava enfurecida. Nada podia ser pior do que a fúria daquela mulher!

— Às vezes me pergunto por que não faço mais amigos. – diz ele, aparentemente dialogando com seu copo parcialmente preenchido com vinho. Sorvendo o que restava da bebida, ele sorri ao perceber que não sentia mais o típico sabor alcoólico dos vinhos baratos vendidos pelos anões. – Que imbecil... Depois de vivenciar guerras de deuses e profecias apocalípticas, acabo conversando sozinho!

Chutando uma dúzia de garrafas vazias de vinho semelhantes à que jazia na mesa, ele vira-se para observar quem mais freqüentava aquela espelunca além dele. Forçando os olhos numa careta cômica, ele perscruta todo o salão do andar superior. Um mendigo bêbado estava desmaiado com seu corpo pendurado no corrimão da escada, um jovem fanfarrão cortejava uma mulher desinteressada no canto leste e um grupo composto apenas por espadachins femininas discutiam algum assunto que consideravam importante numa mesa próxima à escada.

— Um bando de vagabundas e dois idiotas. – resmunga, com impertinência transbordando por sua boca. Ele coça a mão direita por debaixo da luva, enquanto pensa no que fazer da própria vida. Luva esta que parecia ser a única peça de sua vestimenta que valesse um ou dois trocados.

“Acho que vou voltar para Wen-Ha. Já faz uma semana que brigamos e eu já viajei o bastante para acalmar a sensação de sufoco que aquele reino me dá. Malditos orientais cheios de regras e não-me-toques!”, pensa o felítrius enquanto põe as mãos discretamente por baixo da mesa. Um instante de concentração e um brilho abafado antecedem o surgimento de um saco de moedas entre suas mãos. “Gostei desse presentinho! Posso carregar o que quiser sem nenhum peso e sem chamar atenção. Então é assim que aqueles magos sempre parecem estar preparados para tudo!”, pondera contando as moedas do pagamento. É quando ele ouve parte de uma conversa no andar inferior.

— Dex? – indaga uma voz masculina que o felítrius reconhece como pertencente ao taverneiro, Fábio. – ‘Tá no andar de cima, moça. Ele não parece muito bem hoje, mas se quiser tentar pode subir.

— Mas que maldito! – pragueja Dex em voz alta. Ignorando os olhares breves dos outros clientes da taverna, ele continua a falar sozinho. – Eu bem que disse que não queria ser perturbado.

Segurando firmemente o saco de moedas com a mão direita, o felítrius o faz desaparecer num piscar de olhos graças ao feitiço na luva. Sorrateiramente, ele foge pela janela e equilibra-se nas telhas, um pouco aturdido pelo súbito levantar depois de horas sentado em bebedeira. Quando sua visão volta ao normal, ele lembra-se de suas palavras ao taverneiro: “A não ser que seja uma moça wenhajin, não quero ser visitado”. Voltando à janela, mas mantendo-se escondido, Dex observa quem o procurava. Afinal, ela podia ter saído à sua busca, embora ele não depositasse um pingo de esperança que ela o fizesse.

Uma mulher sobe a escadaria tranqüilamente. Porém, ela não era uma wenhajin e sim uma felítrius. Formosa até, sua altura mediana ajustada perfeitamente às suas curvas. Suas roupas leves de couro e acessórios dependurados indicavam que se tratava de uma aventureira. “Aventureiro... bem que eu queria voltar a essa vida, mas ela quer ter um filho. Podíamos esperar um pouco mais para isso. Ei, que diabos Fábio pensa que é um wenhajin?” Imerso em seus pensamentos, ele não nota uma segunda sombra atrás de si. Os sensuais olhos da felítrius, valorizados por seu cabelo curto, analisam o segundo piso da taverna. Percebendo o amontoado de garrafas próximas à janela, ela se dirige a mesma.

Decepcionado, Dex se prepara para partir silenciosamente. Quando dá um passo para trás, contudo, ele se bate com algo. Um frio na espinha o avisa do perigo, mas já era tarde. Girando nas pontas de seus pés, numa tentativa de esquiva, ele consegue ver apenas um sorriso brilhando ao luar antes de ser atingido e o mundo inteiro rodar. Seu corpo é arremessado através da parede de madeira taverna adentro, derrubando uma mesa e pousando com força próximo à escada.

— Eu sabia que você ia exagerar quando comprou aquela poção “punhos de gigante”, Bit. – comenta a felítrius que estava a averiguar a janela.

— Opa! Acho que foi um pouco demais. – responde Bit, a agressora. Ela também era uma felítrius, escandalosamente idêntica à outra, com exceção ao cabelo que usava em longas tranças. Ela entra no estabelecimento pelo rombo causado por seu ataque. O grupo de espadachins interrompe sua discussão e passa a acompanhar os fatos em silêncio. O jovem se escondia debaixo da mesa enquanto a garota a quem cortejava maldizia o dia em que ela aceitara seu convite para um jantar a sós. – Ei, Fan, será que é ele mesmo?

— Espero que não! – retruca Fan, repreendendo sua descomedida companheira. – Você o pegou de jeito, e de surpresa! Capaz de ter matado...

— Não se gabem tanto, vadias. – Dex interrompe o diálogo, ainda caído no chão. Ele se levanta e depois de uma breve cambaleada limpa a sujeira em sua roupa. Suas costelas incomodam, mas nada que o faça perder a pose. – Foi um golpe de sorte.

— Você é realmente Dex? Dex Destreza? – indagam simultaneamente as duas felítri. Suas vozes sobrepostas em uníssono soam engraçadas para Dex, parcialmente afetado pelo álcool.

— Não vejo uma reunião de felítri assim desde que passei por Lyon, há alguns anos. É “felítri” o plural, né? Nunca descobri porque é diferente. – explana desconversando em amenidades.

— Responda a pergunta! – descontinua Fan, energética.

— Bater primeiro, perguntar depois. – responde. – Vocês já começaram com a pancadaria e eu estou entediado. Saquem suas armas!

O felítrius se aproxima do grupo de espadachins que o observava curiosamente. Com um rugido contrariado, ele estende ambas as mãos para uma das moças que portava duas espadas.

— Me empreste suas armas. – pede, com uma falsa delicadeza contrastando com seu rugido anterior. Os olhos da mulher brilham, para sua surpresa, e ela entrega seu florete e adaga main-gauche de imediato.

— Você... empatou com o Capitão Selakos? – questiona a duelista. Ela recebe uma breve piscadela como resposta e interpreta como um “sim”. Enquanto Dex observa a qualidade de suas lâminas, Fan e Bit se entreolham. – Dizem que no torneio deste ano você e o Capitão Hardman vão duelar para saber quem é o melhor.

— Então é você mesmo. – era Bit que falava neste momento. – Pode devolver as armas, nós não viemos para...

A fala de Bit, porém, é interrompida por uma súbita investida de Dex. Em dois passos quase instantâneos, ele percorre a distância de sete metros que o separavam de seu alvo. Seu braço, todavia, é agarrado por Fan também com velocidade espantosa. Ela finca suas garras em seu antebraço e força-o a recuar.

— Dex, nós somos suas... – Fan tenta racionalizar, mas é novamente interrompida pelo aborrecido felítrius.

— Cala a boca! – rebate. – Acham que vou acreditar em qualquer baboseira? Quem mandou vocês aqui?

— Ninguém! – Fan leva a mão à cabeça, percebendo a situação burlesca que haviam criado. – Somos suas irmãs!

— Ha, muito engraçado! Eu não tenho irmãs! – brada Dex, investindo em um novo ataque. Desta vez, ele ziguezagueia saltando em duas mesas antes do derradeiro golpe, numa tentativa de finta.

A defesa de Fan é superada pelo ardil do adversário, mas ela não era o alvo. Bit sente uma leve estocada em seu ombro esquerdo, mas consegue aparar a lâmina com suas braçadeiras metálicas. O ranger do atrito metálico ecoa pelo salão, enquanto Dex força a defesa da adversária, arrastando-a de encontro à parede. Tamanha força não transparecia pelo seu porte físico esguio, fazendo com que o grupo de mulheres que assistia a luta se levantasse de sobressalto.

— Nós... estamos... falando sério! – clama Bit, pondo-se de lado e deixando que a espada de seu antagonista encontre a madeira.

Após a esquiva, ela aplica um soco no peito aberto de Dex com sua energia ampliada magicamente, fazendo-o perder o equilíbrio. Fan, que a essa altura já estava detrás dele, apõe uma rasteira. Para não cair mais uma vez, Dex salta para trás em quatro cambalhotas ágeis. Ele respira fundo, tentando afastar os efeitos que o álcool já infligia em sua mente e corpo.

Um tenso momento de silêncio toma lugar no impasse. Ambos os lados na peleja permaneciam em posição de combate. Dex focaliza as faces daquelas duas felítri que se diziam suas irmãs, buscando em alguma memória algo que confirmasse a história delas. Suas expressões transpareciam total sinceridade.

Foi então que houve um fugaz estalo em suas memórias mais profundas. Ele reconheceu aqueles rostos. Pareciam com o da sua mãe, antes que o seu maldito pai viesse clamá-lo para si. Nessa memória quase perdida, ela protege algo em seus braços: suas irmãs caçulas. Gêmeas.

— Eu não me lembro direito de minha infância... – balbucia Dex, acabando com o silêncio aos poucos.

— Nós também. – suspira aliviada Fan, afrouxando um pouco a mão que estava cerrada. – Éramos todos muito pequenos, mas nosso pai adotivo nos contou algumas coisas.

— Irmãs... – Dex estava completamente atordoado. Nunca havia tido uma família em sua vida, exceto por muito recentemente, quando se casou. Interrogava-se o porquê de ter se lembrado tão tardiamente. – Porque me procuraram só agora?

— Bem... – Bit faz menção de esclarecer seus motivos, mas é interrompida por outra indagação de seu irmão.

— E porque diabos me bateram?

Fan olha de soslaio para sua irmã, repreendendo-a mais uma vez. As espadachins suspiram decepcionadas e retornam vagarosamente às suas prévias discussões. Aquela seria uma longa noite.

***

Esse conto usa um personagem antigo meu, Dex Destreza. Ele é ambientado no cenário de fantasia medieval de nome Meliny. Para quem quiser conhecer um pouco mais sobre o cenário, é só acessar o endereço http://www.inominattus.com/?page_id=146.