Contos de Tormenta - Sobre as Bençãos e as Blasfêmias V

Hora da batalha entre os sacerdotes hereges e aqueles fiéis à ordem.

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Uma das principais vilas de Ternach crescera em volta de uma fortificação pequena, mas bem posicionada perto de duas colinas cobertas por pedras grandes, tão altas que eram chamadas de Seios da Mãe Terra. Ninguém sabia quem dera o nome esdrúxulo ao local, mas um nobre decidira construir um pequeno forte em meio às pedras e usá-las como uma das principais proteções contra quem quer que ousasse marchar em Yuden. Sem guerra ou perspectiva de uma, a base gerou uma vila próspera em meio às estradas locais. Ali Drumius passara boa parte da vida noturna de sua juventude, quando o tempo livre lhe permitia procurar prostitutas e aliados enquanto Lenius buscava por um amor e Dencar planejava casamentos.

Ali Drumius assassinou seu primeiro inimigo e ocupou sua posição. Lenius se apaixonou e cortejou a filha do lorde por longos anos. Dencar firmou os primeiros tratados que o levariam a trair os amigos. Foi perto da estrada por qual passavam, diante da pedra lascada, que ajudara Lenius a vomitar após uma bebedeira homérica fruto de uma decepção. Dencar acabara de lhe contar que sua amada estava sendo cortejada por um nobre poderoso e que se casaria quase com certeza, com ou sem amor. Teria perdido a noiva se Drumius não houvesse desafiado o homem para um duelo após uma provocação na taverna e o esfaqueado até que as tripas saltassem pelos buracos.

- E se ela não vier? – perguntou Lenius.

- Ela virá. Yudenianas respeitam a força e você a usará hoje. Além disso, você tem o coração dela como ela tem o seu. O que vai resgatar agora é só o corpo.

Foi com essa certeza que cavalgaram para a vila e trouxeram a amada de Lenius. Era uma mulher bonita por quem valia a pena morrer em qualquer dia, fosse com espada, machado ou arma de fogo na mão. Lenius a beijou com franqueza e prometeu-lhe o amor. Ela respondeu com apenas uma pergunta:

- Quando vamos voltar a Yuden?

Estava claro que ele não sabia. Olhou para Drumius quando cavalgavam para fora da cidade. amanhecia e os raios pálidos tornavam os olhos rubros do guerreiro sacerdote belos, ainda que com um tom de ameaça. Ele sorriu.

- Quando quisermos, pois eles vão nos chamar – disse, encarando-o e depois voltando-se para a estrada adiante com um sorriso ainda mais largo.

Lenius e a mulher não sorriram quando viram a poeira adiante. Ele sacou a espada e ela pegou uma lança com a qual treinara desde criança. Deram as mãos.

- Vamos morrer lutando – disse ele. Sorriram e se beijaram, aproximando mais os cavalos.

- Idiotas – disse Drumius, arrancando uma corneta da cintura e tocando com toda a força que tinha. Bateu as esporas no cavalo e disparou para fora da estrada, entrando em campo aberto. O casal o seguiu surpreso.

- Eu não vou fugir – gritou Lenius. – Não vou fugir.

- Cale a boca! – gritou de volta o guerreiro sacerdote, avançando com o animal e forçando o pequeno exército da Ordem Sacrossanta a segui-los. Mandaram cavaleiros na frente, mas eles se decepcionaram rapidamente, quando viram a Companhia do Sangue e do Fogo se destacar no horizonte e se posicionar.

A tropa era formada por vinte cavaleiros sacrossantos com o porte tradicional de armas. Sob a bandeira da Morte Rubra, eles vestiam suas armaduras vermelhas e mantinham lanças longas em riste, espadas na cintura e, agora, diferente de seus antigos irmãos, mosquetes e pistolas. Diante deles, soldados caminhavam com armamento parecido, mas com mais munição ainda. Preparavam-na para os primeiros tiros, espalhando o cheiro acre de pólvora. Drumius podia sentir o gosto do salitre na boca quando parou o cavalo diante da companhia. Sorriu para os soldados e apontou a espada para os guerreiros que se aproximavam. Dava para ver o estandarte da ordem tremulante sob o vento da amanhã. Junto dele, o brasão prateado de Dencar mostrava que o recém-eleito Mestre de Justiça vinha para caçar os exilados que ousavam roubar donzelas yudenianas.

Eles eram cem, dos quais pelo menos quarenta eram cavaleiros pesadamente armados. Tinham pelo menos vinte arqueiros e o restante soldados a pé, peões que avançariam sem medo para os mosquetes de Drumius.

- Quero os arqueiros primeiro – gritou Drumius, batendo as esporas do cavalo e adiantando-se o suficiente para que Dencar pudesse ouvi-lo. Chegou tão perto da tropa inimiga que uma flecha assustou seu cavalo. O animal empinou. – Dencar! Eu o desafio em nome de Keenn.

Ele viu o antigo amigo, com a armadura prateada e o manto branco, espremer as rédeas nas mãos. Debaixo do elmo, Dencar estaria estreitando os olhos, pensando nas armadilhas preparadas pelo oponente. Os dois se conheciam como serpente e águia, sabendo do veneno e das garras que esperavam um ao outro ao menor deslize. Eram olhos fendidos e língua bifurcada analisando os olhos aguçados e as asas abertas.

Drumius voltou para perto da Companhia do Sangue e do Fogo e observou. O adversário preparava suas tropas, posicionando arqueiros, lanceiros, cavaleiros... Drumius tinha tudo aquilo e ainda mais. Nem se importou quando os cavalos de Dencar começaram a se deslocar pela planície, esmagando a grama verde para flanquear a companhia pela esquerda.

- Drumius, vamos lutar contra nossa própria ordem? – perguntou Lenius, olhando preocupado para os homens adiante.

- Você não hesitará em parti-los ao meio, hesitará?

- Quem?

- Nossos amigos, aqueles ao lado de quem lutamos – disse, sabendo que reconhecia pelo menos duas pessoas que já haviam protegido-o numa parede de escudos.

- Não hesitarei... – respondeu sob uma reflexão profunda seguida de um suspiro de quem lamenta decisões quase óbvias da vida de guerreiro. – Mas não vou usar essas armas de fogo.

- Não pedi isso...

- Não se sente mal matando amigos? Barok está lá.

Barok era o ex-cunhado de Drumius, que se tornara quase um irmão até a noiva do guerreiro sacrossanto morrer, uma morte que o marcara tanto com um desejo de vingança quanto com uma impiedade incomum até entre os devotos de Keenn.

- Eu te partiria ao meio aqui mesmo se você houvesse respondido que hesitaria.

Lenius arregalou os olhos e abriu a boca, mas parou o que quer que fosse dizer, talvez por bom senso ou por reconhecer mais alguém nas fileiras inimigas.

- Mas eu lamento...

- Lamente sobre o sangue deles, mas não deixe que eles pisem sobre o seu. Há um momento para ser mal, Lenius, e esse é ele. Mate como eu te peço e viva como sua noiva te pede e assim você saberá o que é benção e o que é amar, tanto a espada, quanto sua mulher.

Os lanceiros inimigos começaram a marchar. Avançavam devagar enquanto os cavaleiros agitavam seus cavalos. Drumius observou com atenção. Sua tropa era menor, mas os números não o atormentavam. O que eriçava os cabelos em sua nuca era o veneno de Dencar. Ainda não o sentira e precisava de uma dose dele para se imunizar.

- Invoque suas benções, vai começar – disse Lenius, começando a orar.

Drumius permaneceu calado até levantar a espada.

- Carga! – gritou, juntando seu cavalo ao dos outros e rumando para os lanceiros inimigos. As patas do animal bateram violentamente no solo e os trinta cavaleiros seguiram armados em vermelho, prata, cinza e negro, gritando sobre a morte rubra que se abateria sobre os sacrossantos. Avançavam para quebrar os lanceiros, destruindo a parede de escudos que agora começava a se formar no meio do vale. Eram dezenas deles, enfileirados como um muro com espinhos de aço e tijolos de carne e metal. Drumius os enganava travando os dentes e suando enquanto viam os cavalos em carga. Olhos de uns poucos enxergavam as flechas voando, passando sobre suas cabeças. As sombras das setas percorreram as planícies até as hastes mortais se juntarem a elas nos corpos de homens e animais. Aquela fora a primeira remessa mortal e apenas um homem caíra. Drumius sentiu uma flecha bater na armadura. Ficou ali fincada no ombro, enquanto ele avançava, com a espada em uma mão e agora com uma trombeta na outra. Tocou com toda a força e a carga se abriu. Viu Lenius se afastar para a esquerda, enquanto ele ia para a direita.

Os cavaleiros inimigos não haviam se mantido parados. Moviam-se para enfrentar os peões desprotegidos da Companhia do Sangue e do Fogo, para então cercar os cavaleiros. Quase pararam surpresos quando viram os homens de Drumius virarem-se e de fato seus cavalos travaram as patas no chão quando um trovão explodiu sobre a terra e o relâmpago negro que o provocara se adiantou sobre a planície, ainda mais mortífero do que as setas. Circular, duro como aço, negro como o destino dos mortos, chocou-se contra o primeiro cavalo. Bateu contra o peito do animal, esmagando os ossos e os músculos em desrespeito à força daqueles órgãos. Continuou sua projeção levando um pedaço da perda no cavaleiro e esmagando petulantemente outra montaria, agora jogando o cavaleiro no chão para que a terra cuidasse de quebrar seu pescoço com o choque inevitável de pedra e osso. O sangue voou naquele canto do campo de batalha em uma afronta a códigos de guerra e a sonhos de jovens soldados. Mas eles não foram os únicos a terem os ossos despedaçados e as esperanças de glória apagadas.

Na verdade dois trovões haviam soado juntos e o segundo relâmpago negro atravessou rente à grama para uma parede de escudos surpresa. A primeira vítima viu de relance a morte vindo quase negra, mas vermelha devido a um calor intenso e interno. Drumius viu o escudo da vítima se partindo, o braço voando pelo espaço em mil pedaços enquanto o corpo se abria em órgãos desfeitos e ossos moídos. Não parou para sorrir como os vilões dos bardos, nem para lamentar como os heróis torturados das baladas. Somente puxou as rédeas e trocou trombeta por pistola enquanto seus homens passavam rente ao que sobrava da parede de escudos. Os homens dividiam os olhares entre a onda de morte e os inimigos. Os que se voltaram para a Companhia do Sangue e do Fogo viram pistolas apontadas e batalhas voando indiscretas no meio da fumaça negra. Alguns sentiram o cheiro acre antes de sentirem os corpos perfurados. E assim se foi a parede de escudos. O restante foi chamado de massacre.

- Sangue na espada e corpos no chão – berrava Drumius e seus homens respondiam com atos e brados.

Drumius começou a juntar os seus para acabar com os arqueiros inimigos. Mudou de idéia quando sentiu o veneno de Dencar. Não só os cavaleiros continuavam rumo aos peões, mas mais deles vinham da retaguarda. Haviam dado a volta na planície e agora seguiam em carga. Sacou a trombeta de novo e soprou duas vezes. Parou um momento e seguiu com mais dois sopros. Acabou o segundo e sentiu as pernas do cavalo bambearem. Tombou desatento e viu as pernas do animal agitadas e o sangue espirrando. Levantou-se depressa e matou o primeiro homem que viu, depois se virou para entender o que ocorria. Os homens de Dencar avançavam.

- A Morte é Rubra!

Esqueceu-se do restante da tropa. Que eles morressem ou soubessem lidar com a nova ameaça. Queria matar e foi o que fez, derramando o sangue dos inimigos. Teve certeza de que viu Barok no meio da chacina, fosse como inimigo ou apenas um corpo que saltou para alcançar uma nova vítima. Matou e matou, seguindo de guerreiros confiáveis que o protegiam. Alguns deles caíram, mas a pequena força de elite continuou, pois naquele jogo de ambições, agora não valia estratégia, mas a força para eliminar um alvo que fora mente, mas agora era só coração. Drumius adorava tais vicissitudes da batalha, quando estratégias viraram pó e apenas força e emoções importavam.

Dencar apareceu no meio de fumaça e sangue como uma visão concedida pelos deuses. O machado dele brilhava, abençoado por Keenn. Não tinha uma gota de sangue o sujando, apesar das vítimas que o cercavam.

- Dencar! Aqui! – gritou, seguindo em carga. Tinha só uma espada e viu o inimigo avançando com machado e escudo. O primeiro golpe do adversário resvalou por sua armadura. O contra-ataque foi aparado e os próximos golpes deram clara vantagem a Dencar. Drumius lançava o olhar vermelho contra o inimigo e ouvia outros sons de trovão. Sentia mais fumaça subindo pelo campo.

- Quem é o abençoado, Drumius? – gritava Dencar. – Quem é? Use seus milagres!

O outro não respondia. Somente lutava, defendendo e contra-atacando quando podia. A força bruta de Dencar o fez recuar passos e mais passos. Quase escorregou no corpo de Patre, irmão mais velho de um de seus soldados. Pisou nos cabelos longos e ensangüentados de um moribundo que não reconheceu.

- Keenn está do lado de quem? – gritava Dencar. – Do lado de quem?

Os homens lutavam ao lado, mas os moribundos e os exaustos demais, caídos ao serem abandonados pelos músculos, observavam a luta.

Drumius deixou que o oponente viesse com gana. A vontade de matar de Dencar o cegou com a Morte Rubra, a fúria assassina de quem quer se provar. E foi assim que o guerreiro rubro se desviou do machado e acertou o ombro contra o escudo, empurrando o inimigo. Girou o corpo, levando a espada com as duas mãos. A lâmina bateu contra o escudo e acabou com o equilíbrio de Dencar. Estava prestes a cair quando a espada de Drumius arrancou o machado e decepou dois dedos. A serpente tombou diante da águia e as asas agora faziam sombra sobre o réptil ferido.

- Não fale sobre Keenn. Não fale sobre os deuses quando nós devemos decidir sobre isso. Se Keenn realmente não quer a guerra como é o futuro dela, eu cuspo nele como cuspo em você! – E a águia cuspiu, arrancando o orgulho e o substituindo por fúria bruta. Dencar pegou de volta o machado e levantou-se. – Isso tem que acabar como tinha que acabar! É um final previsto!

E assim foi. Um grito, um machado levantando e as pernas levando um homem enfurecido para a morte. Drumius baixou a espada e sacou uma pistola negra desenhada com ouro vermelho. Pressionou o gatilho e sentiu o calor da explosão. Sabia que agora a bala viajava pelo cano, rodopiante. O ar se expandia da saída daquele túnel negro, espalhando o barulho ensurdecedor. E o pequeno projétil viajou poucos metros, sem ver batalha, sem ver sentimentos ou se preocupar com espadas e armaduras. Encontrou somente pele, um detalhe tão fútil quanto um homem aos olhos dos deuses. Passou por ossos, barreira tão tênue quanto madeira para o sopro do dragão. Atravessou mente e memórias, destruindo o crânio de um guerreiro e declarando que pólvora e espadas era o futuro. As espadas dentro daquela cabeça desapareciam junto com as lembranças no corpo do cadáver que caía.

Shaftiel
Enviado por Shaftiel em 06/10/2008
Reeditado em 14/11/2008
Código do texto: T1214795
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