Contos de Tormenta - Dogmas - Parte II

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Era um mercado aberto e improvisado. Devido à quantidade de elfos que chegavam a Tapista, o reino dos minotauros, agora não se usavam mais somente os mercados oficiais. Negociações prévias eram realizadas fora da capital e das grandes cidades para que nada ficasse saturado. Dahlis sabia que era hora de fugir. Não haveria outra chance tão cedo.

Os escravos estavam acorrentados a grandes pinos fincados no chão. Poucos deles estavam soltos. Alguns mais dóceis haviam se entregado cedo e um deles até conseguira uma boa posição como servo ao entregar um plano de escapada. Isso rendera a Dahlis cicatrizes de chibatadas nas costas. Agora chegava a pensar se preferia ficar para matar o desgraçado delator vagarosamente ou fugir.

Negou o pensamento de assassinato. O ódio que fervia dentro dele ainda podia ser controlado. Coçou o nariz e olhou para os minotauros passando para verificar a mercadoria. Mexeram em cada elfo, dando uma atenção especial para as marcas no rosto. Quando mais limpo melhor. Dahlis vomitou quando uma mão peluda o fez abrir a boca e mostrar os dentes. O comprador deu dois passos para trás, horrorizado com os cascos sujos.

- Elfo maldito – berrou o minotauro vendedor, batendo com força e repetidas vezes, até Dahlis mergulhar na benção da inconsciência, único modo em que se sentia livre daqueles problemas.

Acordou sabendo que havia apanhado por sujar um cliente e por não ser mais uma boa venda. Seu preço baixaria por causa daquilo e suas chances de fugir também. Agora estava acorrentado sozinho dentro da caixa escura onde ficavam os mais indóceis dos elfos. Aqueles que ainda precisavam aprender sobre a humildade da escravidão.

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- Impossível – disse um, virando e esse mesmo percebeu que ao mesmo tempo que não conseguia acreditar na defesa do golpe, não achava que as orelhas cortadas de Aetis fossem tanta loucura. De costas, deu alguns passos na direção do elfo que sangrava. Sacou sua adaga e jogou no chão.

- Magia! – gritou Aetis.

- Milagre – respondeu Remeneh.

- É a escolha certa – falou um dos guerreiros com olhos sedentos por mais um milagre.

O que apareceu em seguida poderia até ser um sinal, mas na verdade era parte de toda uma preparação. Um elfo saiu do meio das árvores e atrás deles vinham seis figuras enormes, cujos chifres davam voltas; os machados e espadas brilhavam em suas mãos. O elfo carregava símbolos sagrados no peito e uma coleira no pescoço.

- Somos servos e como servos vocês também serão bem-vindos – disse o sacerdote de Glórienn.

Boa parte dos guerreiros estava surpresa, mas Remeneh, cuja decisão era mais do que ferrenha, adiantou-se para o sacerdote e os minotauros.

- Segue-se um deus por dogmas e pelo exemplo. Poucos podem servir como nós servimos – falou, ajoelhando-se. Diante de todos os elfos, um dos minotauros se adiantou. Sacou uma coleira de metal com símbolos de Tauron e Glórienn. Foi com cuidado que colocou-a em volta do pescoço de Remeneh. O elfo se levantou com um rosto sério. – Cumpram seus votos e me sigam.

De pé, agora tinha a espada na mão e ela brilhava com a luz que se apagara nas lâminas de todos os Nitfahglorienn há algumas décadas. Os outros começaram a andar em direção as coleiras. Aetis observava perplexo.

- Isso é um embuste. Não é um milagre – gritou.

Remeneh não respondeu. Só deu dois passos de lado para que o próximo elfo recebesse a coleira. Alguns deles ganharam grilhões com pequenos pedaços de correntes. Somente sete ficaram parados, incapazes de concordar com o pecado de se entregar a própria liberdade. Não havia deus que valesse aquilo.

- Vão recusar? – perguntou Remeneh. Os outros fizeram que sim. – Então usem suas adagas e provem suas dignidades.

- Não usem – gritou Aetis, arrancando a espada do chão e se adiantando na frente dos outros. O sangue escorria das orelhas para o pescoço, manchando roupa e armadura.

- A lei dita que quem não morre pela própria adaga, morre pelo arco ou pela espada – falou Remeneh.

As palavras serviram de ordem para que os outros sacassem lâminas e flechas. Os minotauros observavam decepcionados. Eram oito escravos que perderiam por causa da estupidez élfica.

Aetis sabia que iriam morrer, mas caminhou para frente com a espada na mão com a certeza de que era mais justo morrer por sua liberdade do que ser escravizado por causa de uma deusa. Viu os outros elfos de coleira e os minotauros de braços cruzados. Não havia como vencer, só havia como morrer livre e com honra.

- Vamos morrer livres, irmãos – bradou Aetis.

- Mesmo? E para onde vão depois da morte? Ficar aprisionados no inferno de Ragnar? Entregar-se à Tormenta? – perguntou Remeneh, olhando de soslaio para o sacerdote ao lado.

As mãos de Aetis tremeram como nunca ocorrera em sua vida de guerreiro. Não havia mais a certeza da recompensa após a morte. Fechou os olhos e pensou. Os minotauros moveram as bocas bovinas com o que parecia um sorriso. O lucro aumentaria. Os elfos revoltados se entregariam.

- Escravidão aqui e na pós-vida? Melhor sofrer pelas mãos de Ragnar, assim pelo menos eu sei que estarei sofrendo por um bom motivo – falou Aetis. Então ele tomou uma atitude que nenhum Espada de Glórienn tomaria, nenhum elfo de fé. Ele levantou a espada para os antigos companheiros de luta e correu para bater sua lâmina opaca contra o metal brilhante dos outros. Mais elfos gritaram atrás dele e avançaram. Os outros se posicionaram para lutar... mas tudo ficou escuro e tudo que ouviram foram três estampidos, dois gritos de dor de elfos e um de um minotauro. Corpos foram ao chão e os elfos pararam.

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Aetis piscou uma, duas, três vezes. Tentou raciocinar e conter o medo de esmagava o coração. Respirou profundamente o ar gelado que tomou o lugar da brisa. Trevas. Aquilo eram as mais puras trevas.

- Fechar círculo. Preparar espadas e milagres – gritou para os companheiros. Assim eles sentiram as costas um dos outros se tocarem. No meio, um dos guerreiros sacou um bastão de luz. Os raios brancos lutaram contra as trevas, transformando a redoma de escuridão em uma penumbra maldita em que os gritos de dor e o sangue de elfos preenchia o espaço.

- Shimay? – perguntou inseguro um dos elfos. Era jovem e ainda sem marcas das lutas. Nunca vira um elfo negro na vida, mas as histórias de como matavam os guerreiros sagrados de Glórienn o deixavam arrepiado.

A primeira sombra surgiu da terra. Um buraco se abriu e a criatura saltou em um rodopio mágico para o meio dos minotauros. Outro deles surgiu do alto das trevas, sobre os chifres de um dos monstros. Adagas partiram das mãos dos dois, acertando pescoço e olhos, arrancando sangue e visão. Nem bem tocaram o chão, correram como demônios, ainda arremessando as armas. As lâminas acertaram dois elfos com golpes precisos antes que Remeneh conseguissem juntá-los. Nem bem formaram o círculo de defesa, uma arma ainda mais mortal se juntou à chacina. Mais estampidos, pequenas explosões na penumbra. Ninguém viu os projéteis, mas eles voaram partindo o ar, interrompendo a luz. Tocaram um elfo na testa e arrebentaram osso e cérebro, derrubando-o antes que sentisse de onde vinha a ameaça.

Aetis não sabia quem atacar. Esperava pelos shimay, mas nenhum dos elfos negros tomava uma atitude em relação a ele, não até um deles parar a seu lado. Os cabelos negros e a face pálida só não assustaram mais que os olhos de trevas que o fitaram. Deu um sorriso leve, com aquele sinal de angústia que era tão característico quanto as cores pretas.

- Não salvamos ninguém que não queira ser salvo. Tome uma atitude – falou o elfo negro, envolto em mantos escuros. A voz dele era um sussurro, mas caía sobre os ouvidos como martelo. Cortava como alabarda.

- Senhor? – perguntou aquele elfo jovem, nervoso e com as mãos suadas.

- A escolha é de cada um de vocês. Não temos mais deusa.

Eles levantaram as armas e então lâmina élfica derrubou sangue élfico na terra já manchada de lágrimas e morte. Os gritos torturados de vítimas e algozes não vinham só da pele rompida pelo aço frio, mas pelo rompimento de um acordo de fé. Eles se mataram até a luz começar a reaparecer. As trevas cediam para que o sol mostrasse a vergonha de irmãos se matando.

- Fujam – gritou um dos elfos negros, saltando para a terra e desaparecendo como se atravessasse lama.

Os outros, ensangüentados, feridos no corpo, na alma ou em ambos, hesitaram. Aetis saltou para a terra, sem pensar se encontraria terreno tão sólido quanto as conseqüências de suas decisões. Mas tudo se abriu para que ele e os companheiros passassem.

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O calor e a umidade foram as primeiras sensações que teve, depois foi o sangue que escorria pelo cabo de sua espada. Caiu de joelhos com ombros e cabeça baixa. Estava escuro demais para que visse a arma. Diante dele, o aço molhado em sangue era uma acusação. Ao lado, os companheiros tentavam reaver a respiração.

- Aquele foi um milagre de Glórienn? – perguntou um deles.

- Que a morte deles tenha sido breve e eterna para que nenhum deus nos acuse de falta de nobreza – sussurrou um, apegando-se a um antigo ditado élfico em um momento em que se alma começava a se desprender dos costumes antigos.

Aetis não conseguiu enxergá-los no escuro. Tateou o chão sentido pedra e terra. Perguntou-se se era seu destino agora viver na escuridão. Teve medo de que a luz surgisse do nada para que todos vissem que seus cabelos e olhos haviam se tornado negros como o dos outros shimay. Teria a marca dos renegados, renegados que, por fim, estavam certos? Assustou-se quando uma luz leve transformou as trevas em penumbra. Os elfos negros os cercavam.

Eram seis deles, observando de braços cruzados, sem armas a vista. Pôde reconhecer três deles com armaduras leves. Os cabelos longos e as marcas no rosto demonstravam que eram a elite guerreira, Garras de Tenebra. Chamavam a si mesmos de Bryr´Niantharen como descobrira. Termos antigos que a sociedade élfica abandonara quase quando pisara pela primeira vez no continente.

- Teremos que nos tornar shimay? – perguntou um dos companheiros.

Aetis o observou. Era o mais jovem. Tentou buscar pelo nome dele na mente, mas esquivava-se a cada busca na memória. Juntara-se ao grupo não havia nem duas semanas e já era obrigado a enfrentar uma situação que só se comparava com a queda do reino élfico.

- Não. Não forçamos ninguém, garoto – disse o elfo de mantos negros, adiantando-se. Coçou o queixo e respirou profundamente, observando a situação lamentável dos outros. Fez sinal para uma elfa com duas lâminas circulares penduradas na cintura. Tinha um broche prateado em forma de um arco quebrado prendendo a capa. Marcas de uma expressão raivosa estavam nítidas no rosto. Ela se adiantou e verificou ferimentos, curando quem precisasse.

- Vocês nos salvaram por que renegamos a escravidão? Não significa que por causa disso vamos louvar Tenebra. Não vamos orar para ela! Eu não vou – falou um dos guerreiros. – Somos renegados, mas não somos como vocês. Os votos que quebramos não são como os que vocês fizeram...

Os elfos negros continuaram ouvindo a ladainha. Aetis ficou quieto, deixando que o elfo falasse e os outros o acompanhassem às vezes. Precisavam extravasar seus pensamentos, falar sobre as difíceis escolhas que haviam tomado. A necessidade de se justificarem os corroeria se não o fizessem. Os shimay devem ter compreendido, pois apenas observaram. A elfa sacerdotisa continuou os curando calada, só olhando mais nervosa diante de alguns comentários mais ofensivos.

Quando os elfos esgotaram as forças e a boca secou, Aetis manteve silêncio. Não queria se justificar aos elfos negros, mas agora os entendia um pouco e queria saber mais sobre a condição que enfrentavam. Será que eles ainda seriam renegados? Párias? Quem teria esse título agora que a deusa se entregara à escravidão e seus sacerdotes gritavam exasperados presos em seus sonhos. Acordavam com recordações de almas sofrendo em nome da covardia de Glórienn e não encontravam justificativas para o comportamento da Mãe Única e Eterna.

- O sacerdote que entregou as coleiras tem feito o mesmo nas últimas semanas. Foi ele quem espalhou a idéia dos conselhos para decidirem se os elfos se entregariam à escravidão ou não – falou o elfo de manto.

Aetis notou as tatuagens negras no rosto dele. Símbolos arcanos marcavam os cantos da face, começando pelo queixo, estendendo em forma de serpentes pela mandíbula, subindo como runas élficas pelas têmporas até se juntarem na testa, onde terminavam com um círculo negro. Continuou o olhando até que a revelação finalmente foi processada. Um sacerdote de Glórienn estava entregando os elfos à escravidão.

- Mentira – foi a primeira palavra que disse desde que chegaram. Dois dos Bryr´Nyantharen se olharam como gêmeos de guerra. A sacerdotisa fitou o mago e balançou a cabeça. – Você pode ter salvado nossas vidas, mas isso não significa que vamos acreditar em tudo o que diz. Nem seus nomes sabemos.

- Khessarel – apresentou-se o mago. Nenhum dos outros se deu ao trabalho de dizer nada. – Não estou aqui para mentir para vocês. Não tenho razão para uma mentira. Se há algo que você pode ter certeza é de que nenhum elfo negro mente sobre a vergonha de seu passado muito menos para trazer outros para o difícil caminho que percorremos.

- Então por que está aqui? – falou Aetis, agora se levantando. Só depois de tanto tempo percebera que ainda estava de joelhos. Aquela não era uma posição para conversar. Os outros o imitaram. Sacou um lenço da cintura e um odre da cintura. Molhou o tecido e limpou o sangue já coagulado nas mãos.

- A situação mudou. Tudo o que prevíamos aconteceu. A Mãe Moribunda fracassou e agora leva muitos dos nossos para o fracasso. Na escravidão não existe salvação, guerreiro. Estamos tentando salvar muitos dos seus, mas existem muitos mais almas moribundas do que elfos despertos que possam ajudar na libertação. E nem sempre vocês querem nos ouvir.

- Quer nossa ajuda para evitarmos a captura dos outros? – perguntou Aetis. Os outros se animaram com a proposta.

- Sim – respondeu Khessarel.

- Pretende levar todos para as trevas?

- Não. Apenas quem quiser nos acompanhará.

- Mas continuaremos sendo inimigos. Vocês odeiam quem não os seguem.

- Não é o caso de odiar. Muitos de nós odeiam sim, como é o caso de Kelena, aqui ao meu lado, mas o sentimento mais comum é o de pena e todo elfo negro sabe que criaturas dignas de pena não são dignas de viver, são menos que a terra em que pisamos. A entrega da Mãe Moribunda ao Deus Touro também nos afetou, guerreiro. Tivemos que fazer escolhas e nossos planos já começaram. Se quiserem nos acompanhar, serão bem vindos.

Aetis estendeu a mão para o mago. Sentiu o aperto forte da mão tatuada do outro.

- Meu nome é Aetis nih Sarntir.

Shaftiel
Enviado por Shaftiel em 06/01/2009
Código do texto: T1371309
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