Contos de Tormenta - Dogmas - Parte III

Dahlis nunca poderia ter sido vendido para um dos ricos minotauros da capital. Seu futuro era servir bem longe dali, fazendo nada mais do que se humilhar para um dos duros senhores do campo. Compartilhava seu trabalho com mais seis elfos, sete humanos e dois halflings. Desses, somente os elfos faziam o trabalho com felicidade nos olhos. Os outros exerciam as tarefas do dia a dia com afinco para não desagradar os mestres. Faziam um trabalho bem feito e minucioso sem se entregar à felicidade da servidão.

Seu senhor era um minotauro de pêlo amarelado, com o focinho já esbranquiçado pela velhice. Os chifres eram grandes e retorcidos, um deles lascado por batalhas antigas. Enriquecera em aventuras e agora vivia para vender os frutos de suas terras. O casarão abrigava dezesseis escravos, mas lá fora, nas plantações, havia muitos outros exercendo o trabalho sob o chicote dos minotauros.

Os dias eram uma tortura só menor do que o momento do culto, quando o sacerdote de Tauron fazia os rituais de submissão. Todos se ajoelhavam diante da estatura do Deus Touro, minotauros ou escravos. Depois que os senhores se levantavam, cada servo passava diante deles e se ajoelhava, demonstrando a submissão.

- Malditos desgraçados – falava Dahlis antes de se ajoelhar. Um dia cuspiu nos cascos de um dos minotauros e gritou ofensas. Perdeu dois dentes e ganhou mais algumas cicatrizes de chibatadas. Infelizmente não lhe concederam o prazer da morte. Continuaria a ser escravo, para provar algo ainda pior.

- Ela chegou! Ela chegou! – falou um dos elfos. Era o pior deles. Saíra correndo da vila élfica de Valkaria tão logo soubera da proteção dos minotauros. Entregara-se e agora era o chefe dos escravos dentre do casarão, coordenando e avaliando enquanto passava os dedos pela coleira de ouro.

Dahlis pensou que fosse mais alguma escrava, talvez uma amante do elfo. Foi pior do que isso. Todos os elfos foram para um pequeno quarto e lá estava uma estátua de Glórienn feita em mármore. Tinha as mãos acorrentadas estendidas ao pescoço. Os dedos tocavam uma coleira com o símbolo de Tauron. O sorriso agradecido no rosto dava nojo.

- Vamos orar – falou o chefe dos escravos.

Dahlis encostou-se à parede, zonzo com a visão. Era um choque forte demais que fizera até outros elfos entregarem as últimas esperanças e se ajoelharem. Ele chorou diante da visão e também caiu ao chão. Dedos passaram em seus cabelos e falaram com carinho para que se erguesse para orar. Levantou os olhos, viu os elfos e depois olhou para a porta. Um humano e um halfling estavam lá. Foi o ápice da humilhação ver o olhar de desprezo na face daquelas raças inferiores.

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A noite havia chegado há muito, mas Aetis não podia afirmar quanto tempo se passara desde o pôr-do-sol. Passar tanto tempo andando sob a terra o deixara desconectado com o ciclo do mundo. Ainda havia o pensamento pesado de que estava pecando ao andar na companhia dos shimay. Os outros guerreiros seguiam falando pouco, seguindo-os pela mata, subindo o morro tentando não deixar os ombros caídos e a cabeça baixa. Pelo menos dois deles haviam tentado falar com os elfos negros, mas apenas Khessarel e um outro estavam abertos a conversação. A sacerdotisa Kelena mantinha-se mais afastada com os Bryr´Niantharen, andando como sombras do grupo. Às vezes Aetis não conseguia enxergar nenhum deles nas sombras.

O elfo que andava junto com Khessarel era Rhyer´Dyh Profanador da Guerra. Era um jovem com as marcas negras dos shimay, mas com pequenas cicatrizes de queimadura no rosto e nas mãos. Carregava consigo estranhas armas na cintura e nas costas. Claro que deveria empunhar lâminas, mas o que estava exposto eram os canos estranhos, dois curtos presos nos cintos e um longo nas costas.

Aetis esteve curioso para perguntar o que era aquilo, mas o assunto se enveredou por outros caminhos, na maioria das vezes discussões sobre as batalhas contra a Tormenta e como o mundo estava mudando. Pararam de falar somente quando chegaram ao alto do morro. Enxergaram o acampamento dos escravistas logo abaixo, ao lado de um rio curto e calmo.

- Nosso objetivo é libertar quem quiser ser libertado. Não desperdicem sua fúria matando os minotauros nem argumentando. Soltem os grilhões e ajudem quem se mover. Matem quem os impedir.

- Não pretendo matar outros elfos a não ser que sejamos agredidos – disse Aetis, olhando para os outros. Somente dois dos guerreiros não assentiram com a mesma determinação. Um deles era o jovem. Nelup... Finalmente se lembrara do nome.

Khessarel deu um suspiro e se voltou aos outros shimay. Conversaram em sussurros e abraçaram-se. Kelena beijou um por um na testa e desejou que as trevas os ocultassem dos males provocados pelos ímpios e moribundos. Os Bryr´Niantharen bateram forte com os punhos fechados contra o peito. Rhyer´Dyh os acompanhou no gesto, mas ao contrário de pegar em lâminas, sacou o cano maior das costas e tratou de limpá-lo. Colocou alguma coisa na entrada, próximo à empunhadura e ali remexeu.

O mago se aproximou mais uma vez de Aetis. Mexeu em alguns bolsos no meio dos mantos e emitiu um sorriso frouxo. A sacerdotisa estava ao lado dele.

- As noites são sempre mais belas quando anunciamos que vamos matar em nome de Niantharen – falou Kelena. Os shimay sempre usavam o nome antigo de Tenebra, deusa das trevas. A Senhora Obscura dos Condenados, Mãe Negra, Protetora dos Pecadores eram nomes para a senhora da escuridão tão antigos e esquecidos quanto os motivos de os elfos terem pisado no continente.

- Eu não pretendo louvar essa deusa das trevas. Nem pense que vou homenageá-la com minha fé – falou Aetis.

O sorriso continuou no rosto do mago.

- Nem deveria. Nós também não louvamos Tenebra, Aetis. Alguns de nós até que aceitaram a fé dela, mas o que enxergamos em Tenebra é uma protetora, não uma deusa. Temos um pacto com ela; sua proteção por nossas ações. Já fizemos muito pela Mãe Negra. Já sujamos de tanto sangue nossas mãos que o que corre em nossas veias hoje deve ser tão negro quanto nossos olhos. Mas ao menos nós vivemos e não choramos dia após dia.

Aetis começou a pensar naquilo, mas sacou as espadas e chamou os outros para cercá-lo. Era o momento do plano. Khessarel já havia discutido a situação com eles. Seria uma entrada rápida para confundir os minotauros. Sob a magia do mago, os antigos Espadas de Glórienn começaram a marchar. Correram pelo campo rumo aos inimigos. Estavam agora sob o céu noturno, sem árvores para ocultá-los. Somente a magia impedia que mais de trinta minotauros saltassem sobre eles com machados e espadas.

A maioria dos inimigos estava sob as tendas brancas. Cerca de dez deles vigiavam do lado de fora, alguns conversando em volta das fogueiras, outros fazendo um círculo em volta do acampamento, ao lado de grandes tochas. Esses últimos ficavam eretos com lanças firmes nas mãos peludas. Avaliavam o ambiente despreocupados, mas cientes de seu dever. Aetis levou seus elfos até a dupla mais afastada do rio.

Todos estavam nervosos, não só pelo poderio do inimigo, mas pela ação que tomavam. Espadas de Glórienn não eram assassinos. Treinavam para combater o inimigo frente a frente, vencer com honra e glória, sem subterfúgios. Quando Nelup se aproximou o suficiente do primeiro minotauro, Aetis deu o sinal. O jovem elfo adiantou-se com a espada. A magia de ocultamento se quebrou com a agressividade do ataque e então um minotauro surpreso enxergou a morte como um vulto e só pode ter certeza do que enfrentava quando a lâmina já despedaçava seus intestinos. Estava para gritar quando outro elfo atravessou sua garganta com uma flecha.

A outra sentinela também não teve tempo de dar o sinal de alerta. As flechas fincaram-se no pescoço largo, abaixo dos chifres grandes, em um dos olhos. Aetis encerrou a vida da criatura com a espada enfiada no coração. Precisou de toda sua força para impedir que o corpo do minotauro caísse em um baque só. Mesmo assim, alguém deve ter ouvido algum barulho. Logo três outros haviam saído de uma das tendas com machados nas mãos. As flechas élficas zuniram na noite para despedaçar mais do couro e vazar o sangue dos guerreiros de Tauron. Os cortes das espadas os detiveram, mas já era tarde demais. Os minotauros começavam a ficar alerta.

- Avancem – ordenou Aetis. Fez sinal para dois dos guerreiros cobrirem a rota de fuga. Viu o elfo negro Rhyer´Dyh na borda do acampamento. Apontava o cano longo na direção dos elfos. Então, apertou algo na empunhadura da arma estranha. Aetis queria ver a magia que sairia dali, mas não viu a bala rodopiar no ar, passando por cada um de seus guerreiros. Juraria mais tarde que sentira o ar esfriar quando o projétil passou por ele. Ao olhar para frente, já havia um buraco na testa de um dos minotauros que avançavam para o meio dos elfos.

- Matem! Matem! – gritou Aetis com ódio. Queria saber por que estava odiando tanto, mas não havia tempo para filosofia no meio da luta.

Evadiu-se de um machado e o viu fincar-se na terra. O minotauro usou o escudo para defender a lâmina élfica. Levantou a arma pesada de novo, levando pedaços de terra e grama. Empurrou o elfo com o escudo, ganhando espaço para um novo golpe. Aetis esquivou-se pela segunda vez, agora se dobrando e girando o tronco. Estendeu o braço para enfiar a espada entre as placas da armadura do inimigo.

O inimigo não se abalou com a dor. O sangramento era nítido, entretanto a criatura mantinha os cascos firmes no solo e voltava a atacar. Desceu a arma em mais um arco mortal. Qualquer tentativa de aparar o golpe quebraria os braços de Aetis, mas o elfo fora treinado para usar velocidade e acabar com oponentes mais fortes. Tanto fazia se era goblinóide ou minotauro. Mesmo que os últimos estivessem longe da barbárie dos primeiros, eram monstros, nem mais nem menos. Eram aberrações que pretendiam dominar a glória dos elfos. E Aetis saltou rodopiando e evitando a arma mais uma vez. Contra-atacou com uma investida. Fintou, escapando da proteção do escudo, evitou que o minotauro acertasse seu rosto com o cabo do machado e então subiu a espada, atravessando a jugular. A criatura mugiu de um modo tão patético que Aetis se lembrou dos abatedouros que visitara na infância. Teria rido da cena se não estivesse acostumado a enxergar a morte com frieza e não com prazer.

Nem bem o minotauro tombou, sentiu o sangue espirrar em seu rosto. Não era sangue inimigo. Era de um dos companheiros. Viu o elfo ainda caindo, jogado a um metro de distância com o rosto deformado pelo impacto de uma maça. Aetis olhou para o monstro que o matara. Era um minotauro de pêlos pretos usando maça e espada.

- Matem com glória! – gritou o minotauro. Não queria escravos. Queria apenas se livrar da peste que os atacava. Aos pés dele, um outro elfo jazia. Os outros tentavam se reorganizar quando Rhyer´Dyh avançou.

O shimay tinha agora uma das armas de cano curto. Mais tarde Aetis aprenderia a chamar aquilo de pistola e veria que era incomum que tivessem cristais negros na empunhadura e uma grande lâmina abaixo no cano. Na outra mão, o elfo carregava uma espada curta. Saltou para o meio dos minotauros, defendendo um golpe de espada, esquivando-se de um segundo. O terceiro golpe foi conduzido pela pistola. A lâmina encaixou-se na espada de um dos inimigos e começou a desenhar um arco diante do rosto do minotauro. No meio do caminho, Rhyer´Dyh apertou o gatilho. Não fez nenhum barulho, só emitiu um cheiro de enxofre e fagulhas amareladas quando a bala de cristal foi impulsionada pelo cano, cortou o ar, atravessou o crânio do minotauro e foi desaparecer no céu.

Rhyer´Dyh abaixou-se, escapando de outro ataque, depois saltou para trás para evitar um dos dois minotauros que o cercavam. Passou por cima do inimigo que acabara de matar e disparou o gatilho mais uma vez. Essa bala passou pelo olho do monstro. Bateu os pés no chão e avançou contra o último. Era o minotauro com a maça e a espada.

Aetis não quis ficar parado. Saltou junto com o shimay contra aquele monstro negro. Obrigou-o a defender um golpe. O oponente precisou de toda sua habilidade para usar a maça para aparar a espada de Rhyer´Dyh, mas já não havia braços para impedir que a baioneta fosse enfiada entre suas costelas. Aetis finalizou e olhou em volta para avaliar o cenário.

- Onde estão os outros shimay? – perguntou agressivamente ao ver que eram agora só cinco elfos e os minotauros continuavam chegando. Sentia o cheiro de traição.

- Estão libertando os outros. Deve haver minotauros lá também – respondeu Rhyer´Dyh, colocando a pistola da cintura e sacando a segunda. Apontou para um minotauro e o derrubou com um tiro preciso.

- Mas o que é isso?

- É a profanação de todas as honrarias da guerra. Vamos continuar matando ou acha que os chifrudos vão ficar só mugindo pra gente?

Agora os minotauros eram muitos. Aetis via apenas que seria suicídio ao enfrentar oponentes como aqueles. Outro de seus companheiros caiu trespassado por uma lança. Agora eram cinco elfos e um shimay cujas armas ele não conhecia e não participaria de nenhum ataque coordenado. Não daria certo.

- Vamos recuar. – Apontou para dois dos elfos com um comando especial. Os dois recuaram. Rhyer´Dyh foi junto com eles, o que deixou Aetis de olhos arregalados e com mais certeza de que morreria, talvez antes que pudesse começar a executar seu plano. – Nelup e Maiec, defender e recuar.

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Khessarel entrou na tenda levantando devagar o tecido que barrava a entrada. Olhou para quase cinqüenta elfos acorrentados. Era o maior número que encontraram até agora e talvez finalmente pudessem cumprir seu intento.

Havia somente cinco minotauros vigiando, todos com olhares cobiçosos para fortuna que seu chefe conseguiria com todos aqueles escravos. As armas brilharam sob os lampiões e os elfos se remexeram.

- Salvem-nos – gritou um, mas o cabo de uma lança batendo no rosto o silenciou. Outro se levantou depressa, tentando atacar, mas as correntes o prenderam. Mais uma vez a lança atacou.

- Mais escravos – disse um dos minotauros, notando a sacerdotisa Kelana logo atrás do mago.

- Acho que nem precisaremos dos outros aqui – disse Khessarel. Pegou duas adagas negras debaixo dos mantos e lançou para os elfos.

Os minotauros olharam atrapalhados para o gesto, parando por um segundo. Um deles observou os olhares espantados dos prisioneiros para o chão. Andou até ali e bateu com a pata no local. Não sentiu nada além da grama batida sob o casco.

- Existem duas liberdades que vocês podem conseguir. Uma é para essas correntes e a outra para o vazio de ser abandonado por uma mãe de espírito quebrado. Só se consegue as duas opções com o sangue de quem não quer nenhum das duas.

Um dos minotauros deu um grito de guerra e avançou durante as palavras de Khessarel. Kelana agiu sem a necessidade de ordens. Tinha nas mãos uma espada e uma lâmina circular. Abaixou-se sob o machado voador de um minotauro, estendendo a espada para cortar o tendão do oponente. Em meio ao sangue e à dor, a criatura começou a tombar. Kelana movia-se em ritmo de morte, com as figuras a matar lentas diante de seus olhos. A arma circular, o aji, rasgou o pescoço do minotauro.

- Obrigado, Kelana. Odeio ser interrompido – disse o mago, com um chifre do minotauro quase tocando seus pés. Seu próximo gesto foi retirar carne e seda negra dos bolsos. Com o material na palma esquerda, mexeu com os dedos diante do rosto enquanto apontava a mão direita aberta para um inimigo. Fechou os dedos depressa. Um minotauro paralisou-se, colocou a mão no peito. Os olhos ficaram vazios e um filete de sangue escorreu pelo focinho. A morte o encontrou com o peito aberto e o coração feito fatias.

Outro minotauro caiu sob o aji e a espada de Kelana. Dos dois que sobraram, um não precisou daqueles dois shimay para morrer. Um elfo se jogou sob seus pés durante a carga. Caído, sentiu dezenas de mãos o segurando e socando. Era forte e foi a socos e coices que começou a sair do meio das criaturas. O peito ardia pela humilhação de ter sido tocado por escravos. Gritou impropérios e fez juras de guerra e aí a chama de fúria desapareceu com a primeira pontada fria nas costas. Não conseguiu compreender. Outras vezes o frio entrou em seu corpo. Os joelhos bateram no chão. Alguém enfiou um dedo em seu olho, arrancando metade da órbita. Outro enfiou a lança em sua virilha. Tombou cheio de furos.

O último minotauro se viu cercado de elfos com as mais variadas reações. Mexia-se como cão acuado diante de criaturas que até o momento eram suas vítimas.

- Vamos deixá-lo vivo e talvez eles nos perdoem. Eles disseram que eram misericordiosos – falou uma elfa de cabelos dourados.

- Cale-se, sua vadia! Cale-se! Foi culpa sua eu ter ido lá, culpa sua! – falou uma outra elfa muito parecida, mas com um semblante de juventude que somente outros elfos podiam notar. Ela tinha uma das adagas escuras na mão. No meio de toda a gritaria, ela atacou. A arma foi enfiada três vezes na carne tenra e o sangue brotou da pele branca com vontade súbita de escapar para o ambiente. A elfa loira olhou incrédula para a outra, mais ainda quando viu as algemas abrindo-se como milagre.

Khessarel bateu palmas. Tanto os elfos quanto os minotauros o observavam.

- São as escolhas mais árduas que definem quem somos e ninguém é livre nesses tempos sem que as mãos fiquem calejadas por torcer o próprio destino – falou. – Os minotauros entrarão em breve aqui. Temos pouco tempo. Quem quiser abrir os grilhões do corpo e da alma, que use as adagas. Quem quiser só romper as correntes do corpo, procurem a chave nesse minotauro ainda vivo.

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Maiec retirou o arco das costas e correu para trás. Nelup e Aetis deram passos mais curtos e começaram a defender-se dos primeiros golpes, até as flechas do outro elfo voarem. Os minotauros começaram a preparar os escudos e finalmente acionaram sua defesa típica. A parede de escudos se formara. O ataque rápido dos elfos e a confiança de que ninguém investiria contra um acampamento de pelo menos trinta deles havia os deixado pouco preparados para uma defesa conjunta.

Nelup passou correndo por Maiec retirando o arco das costas e preparando uma flecha. Agora apenas Aetis portava a espada. Uma flecha passou por ele quando corria. Era Nelup que provavelmente atingira apenas os escudos dos minotauros. A cada momento um elfo parava e disparava, cobrindo a retirada. Os minotauros avançaram um pouco mais lentamente, até começarem a preparar uma carga. Foi o momento preciso em que os outros dois elfos e Rhyer´Dyh atacaram pelos flancos. Flechas e balas perfuraram as laterais e as costas dos inimigos. Protestaram contra o subterfúgio com ofensas e berros indignados e pelo menos um ajoelhou-se ferido demais.

A parede de escudos transformou-se em um triângulo, mas já era tarde demais. Os Bryr´Niantharen apareceram. Dos treze minotauros que formavam a defesa compacta, três caíram no primeiro ataque e outros dois sucumbiram nem um minuto depois. Os guerreiros shimay dançavam entre os monstros, misturados em sombras e rasgando o pêlo dos oponentes com espadas frias e escurecidas pela energia das trevas. Rhyer´Dyh pegara mais uma vez o rifle e recomeçava seus tiros. Dois tiros tinham um intervalo muito maior do que duas flechas, mas eles atravessavam armadura como se fosse papel com uma precisão de mestres arcanos do arco.

Aetis e os outros também faziam chover flechas nos minotauros. Não temiam acertar os Bryr´Niantharen. Elfos arqueiros deveriam saber muito bem como matar inimigos sem acertar aliados durante a confusão de um combate. Sem isso, não eram mais do que crianças brincando de guerra.

De repente, o número de flechas diminuiu. Aetis olhou curioso para o lado. Maiec deixara o arco cair e segurava o pescoço atravessado. O sangue escorria pelo buraco gerado pela haste de madeira. Aetis não viu o companheiro tombar, mas olhou para a fonte do ataque. Das sombras vinham os elfos com coleira. Os Espadas de Glórienn eram conduzidos por minotauros e traziam consigo outros elfos acorrentados, esses sem armas, apenas meros cativos.

- Precisamos de cobertura! – gritou.

Os Bryr´Niantharen continuavam sua dança mortal; coube aos outros elfos e Rhyer´Dyh dispararem contra os Espadas de Glórienn. Remeneh tomou a dianteira, avançando pelo campo sem temer flechas ou bala. Nada o tocou até que sua espada bateu contra a de Aetis.

- Fuja, Nelup – gritou Aetis, defendendo-se.

- Entreguem-se e cumpram seu dever sagrado. Matem-se – berrava Remeneh.

Nelup recuou, obedecendo as ordens e se juntando aos outros. Aetis ficou para lutar e morrer se isso fosse necessário. O ódio que sentira no início do combate estava aceso novamente. Ele entendia bem porque tinha tanta raiva. Precisava de culpados para tudo o que ocorrera obviamente. Mas havia mais do que isso. Matar os monstros era mostrar que sua espada ainda servia para dissipar do mundo todas as aberrações que ameaçavam a perfeição dos elfos. Matar seus irmãos de espada era mostrar que não estava errado, que aqueles captores, viciados em uma deusa enlouquecida e acovardada, eram os verdadeiros vilões. Todo Espada de Glórienn que deixasse de ser um guerreiro sagrado deveria se matar ou ser morto por seus pares. Não havia volta nesse trabalho. E escravizar elfos não era um voto a ser seguido. Não era proteção. Era covardia.

- Fanáticos! Covardes! – acusou Aetis, aparando os golpes de Remeneh.

- Covardia é não se entregar à vontade da Deusa Mãe por temer perder algo intangível como a liberdade, Aetis – falou Remeneh, afastando-se alguns passos quando uma flecha de Nelup quase o acertou. – Liberdade é uma ilusão. Como os elfos aproveitaram a liberdade depois da queda do reino? Choraram e pediram esmolas. Agora seremos amparados.

Aetis balançou a cabeça, negando a sucessão de bobagens. Cuspiu diante dos pés do outro elfo e atacou.

- Não vou permitir que continue com essa loucura!

O barulho das espadas se chocando quase suprimia o som do protesto. Os outros inimigos continuavam se aproximando. Um deles pulou o corpo de Maiec. A espada por pouco não levou metade do braço de Aetis. Foi a escuridão quem o salvou. De repente, já atravessava um corredor escuro em que dedos sombrios raspavam sua pele e vozes sedosas pediam para que ficasse. A luz voltou de novo e ele já estava distante de Remeneh, junto aos shimay, mas agora não havia apenas seis deles. Quase não conseguiu contá-los sob a fraca luz da lua. As tochas distantes do acampamento não ajudavam, mas diante dele, pelo menos dez outros elfos de cabelos escuros e mãos sujas de sangue estavam de pé.

Aetis só pôde tomar uma conclusão do ocorrido:

- Vocês mataram os outros...

- Não – respondeu Khessarel. Os dedos do mago dispararam em movimento quando os minotauros começaram a atravessar o campo. As trevas tomaram o chão e delas saltou a morte. Espectros vieram do solo, arrancando grandes pedaços de carne e pedindo por mais. Morderam até os minotauros caírem e continuaram a devorá-los vivos. Eram mordidas frias, isentas de sangue. Esvaíam-se a vida e a alma pelas feridas enegrecidas. O espírito escapava como o ar e a essência vital se transformava em vermes que deixavam depressa o corpo em forma de moscas e larvas.

Sete minotauros e três elfos estavam caídos diante de olhares estarrecidos. A magia era uma profanação da vida. Era claro que nenhum daqueles seres encontraria seu paraíso, tendo a alma sido desfeita em pedaços que nunca mais seriam reconstituídos. O sacerdote élfico do outro lado vomitou. Os minotauros protestaram com sons terríveis como urros de dragões.

- Elfos não são escravos! Nós somos a lâmina e vocês a carne. Nós somos a flecha e vocês o coração – gritou Kelana, a shimay sacerdotisa. Apontava um arco para os inimigos e soltava flechas escurecidas pelos milagres da deusa das trevas. Pelo menos uma delas atravessou um dos guerreiros de Remeneh no coração. Ela continuou disparando até Khessarel tocar em seu braço. Lançou-lhe um olhar violento, mas a desobediência não estava em seu sangue. Baixou o arco e soltou as últimas palavras. – Isso não acaba aqui!

- Chega de poesia e bravatas. Elfos negros matam, não gritam.

Os inimigos estavam parados do outro lado, temendo atravessar o campo de trevas. Um dos minotauros balançou o sacerdote de Glórienn exigindo algo, mas o pobre elfo agitava a cabeça impotente. Aetis teria continuado observando eternamente se Nelup não o chamasse. Só então percebeu que havia outros elfos sem as marcas negras dos shimay que o esperavam.

- Eles não querem seguir Niantharen e muito menos a Mãe Escrava.

- Nós vamos lutar como não lutamos antes – gritou um dos elfos, balançando os braços para o outro lado do campo.

- Chega de lamento – falou outro, querendo buscar forças nas próprias palavras.

Aetis começou a andar na frente, clamando terreno.

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O amanhecer estava muito próximo. Os shimay olhavam-se com questões nos olhos negros. Aetis via mais dúvidas quanto ao futuro próximo do que quanto a seu novo destino. Nenhum deles ainda limpara-se do sangue em suas mãos. Eram apenas magia que se fora tão logo o perigo passara.

Rhyer´Dyh aproximou-se, passando entre as árvores das florestas e vendo os elfos se lavarem em um pequeno córrego. Alguns deles estavam sentados em grupos, cochichando. Eram em número maior do que o de shimay libertos e a dúvida e o medo eram muito maiores que a quantidade de filhos de Glórienn.

- Nós vamos partir. Nossos caminhos se separam aqui – falou o shimay, estendendo a mão.

Aetis olhou para o outro pensativo.

- Não seremos mais inimigos?

Rhyer´Dyh deu de ombros. Apoiou uma das mãos em uma pistola e suspirou.

- Tempos difíceis, não é?

- Muito difíceis, mas ao menos agora vocês entendem porque não queríamos mais aquela deusa de espírito quebrado. Vocês mesmos já a chamam de Mãe Escrava, Deusa Acovardada.

Foi a vez de Aetis suspirar. Era mesmo uma deusa quebrada como os elfos negros haviam avisado e poucos haviam ouvido. Só que agora, muitos prestariam atenção à mensagem e quem não o fizesse, seria um exemplo dolorido da verdade, fosse como escravo, fosse como cadáver.

Os shimay se foram com a noite. O amanhecer alcançou elfos cansados e preocupados. Aetis sentiu um peso árduo nos ombros quando percebeu que havia mais de vinte vidas sob sua guarda. Esfregou o rosto, imaginando se sua antiga deusa não havia caído por piedade de si mesma diante de uma cena como aquela. Não emularia a Mãe Escrava. Era hora de ser forte. Faria ao contrário dela e traria outros para sua causa. O único preço que estava disposto a pagar pela liberdade era sua própria vida.

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Os elfos que haviam acabado de chegar contaram diversas histórias sobre a viagem até ali. Dahlis ouviu cada uma, antes que os minotauros aparecessem para silenciá-los por falar sobre liberdade. Para contribuir com o silêncio, o elfo da coleira dourada levava todos para o culto da Deusa Salvadora, a Senhora das Escolhas Difíceis. Ali os elfos se entregavam à servidão e calavam-se, esquecendo-se do banho de sangue sob a tenda, quando elfos negros apareceram e ofereceram a liberdade.

- Liberdade é pecado. Servidão é privilégio – falavam depois de deixar a sala da estátua de mármore.

Dahlis não entrava mais lá. Executava suas tarefas e pensava nas histórias, fantasiando com elfos ou elfos negros aparecendo para matar os minotauros e salvá-lo. Mal falava com os outros depois que não tinham mais histórias de fuga para contar. Foi só com um deles que trocou palavras, um elfo machucado, de olhares indecisos com quem precisou de mais de uma semana de esforço para arrancar a palavra liberdade da boca.

- Eles fizeram a oferta, mas eu tive medo demais para recusar. Eu não podia simplesmente matar, Dahlis. E eles seguiam Tenebra. Quem pode acreditar em quem segue a deusa das trevas? São mentirosos por natureza – falou enquanto comiam na varanda, observando os outros escravos trabalharem no terreno adiante.

Os minotauros observavam o momento de descanso dos elfos, o que fez Dahlis tremer de medo, pois o colega acabara de retirar uma adaga negra de dentro dos trapos que vestia. Nenhum dos captores fez mais do que um olhar curioso na direção deles.

- Ao menos isso é verdade. Nenhum minotauro pode ver ou tocar a faca. Só os elfos. Só os elfos.

Surpreso e cheio de medo, Dahlis colocou a arma depressa entre as roupas. Ao contrário do outro elfo, já tinha permissão para andar com vestimentas melhores devido ao trabalho bem feito e por não causar mais problemas.

- Mas quem vai usar isso? Sangrar um dos nossos por uma promessa? Vai orar para quem? Falaram que Berforam nos salvaria. O Alma Negra traria mesmo liberdade? Eu duvido.

- Mas eles libertaram os outros?

- Sim. Não conte a mais ninguém isso. Essa faca me dá esperança e às vezes me pego orando para que Berforam me salve. Vou deixá-la com você para evitar a tentação e as falsas esperanças.

As tochas estavam sendo acesas quando Dahlis encontrou o sacerdote. Ele andava junto com o elfo da coleira dourada. Sorriram juntos ao vê-lo e o chefe dos escravos estendeu o braço o apresentando.

- Esse é Dahlis. Ele não participa dos cultos e se recusa a crer na proteção da deusa.

- Eu me lembro de seu rosto, Dahlis. Você estava em um dos nossos círculos – falou.

Sim, ele estivera no círculo. Foi lá que os minotauros pegaram os elfos de surpresa e os levaram. Pelo menos três dezenas deles foram pegas e três guerreiros mortos.

- Vamos conversar, Dahlis – falou o sacerdote, começando a caminhar.

O escravo o acompanhou, vendo a coleira de prata com o arco e a espada envoltos em uma corrente. O brilho nos olhos dele era de um fanatismo intenso, de quem não enxerga nada além dos desígnios da fé e distorce o mundo em prol disso.

- Não tenho o que falar – disse Dahlis, vendo que o outro elfo ficara para trás sorrindo.

Viraram em um corredor em que uma elfa limpava o chão. O sacerdote falava sobre os benefícios e a importância de seguir as duras provações da vida.

- Isso não foi nem de longe tão difícil para você quanto para a deusa. Imagina o que é um deus se submeter à escravidão. Tudo por causa de seus filhos. Ela fez tudo por nossa causa. Se sacrificou por nós.

Dahlis não acreditava nisso. Para ele, a deusa fora covarde. Entregara-se somente porque as circunstâncias a fizeram fazer isso. Não havia como evitar aquele destino sem uma coragem pungente que a fizesse erguer as armas e lutar, algo que seu povo encararia com mais decência e pelo qual daria sua vida.

- Entregue-se à verdade e ao sacrifício, Dahlis. Você é um filho de Glórienn e essa é a única alternativa que não é pecado. Seja um renascido de Glórienn e aceite que esse é o nosso destino.

Dahllis olhou para o sacerdote. Baixou a cabeça e avistou a elfa limpando o chão duro onde batiam os cascos dos minotauros. Eram animais, os mesmos animais que os elfos criavam em pastos e currais antes da queda do reino. Não eram mais do que bois com vozes e agora precisava limpar o estrume deles. Precisava cuidar do esterco daquelas criaturas.

- Não! – gritou, sacando a adaga negra. O sacerdote viu assustado sua barriga ser furada uma, duas, três, quatro vezes. Caiu em poça de sangue com Dahlils de joelho a seu lado. O elfo segurava com firmeza a adaga sangrenta e chorava. – Berforam. Berforam... – sussurrava, com a elfa olhando estarrecida. Tudo ficou escuro.

A elfa ouviu vozes. Alguma coisa estava acontecendo na escuridão. Alguém procurava por inimigos, mas tudo desapareceu e só restava sangue, cadáver e adaga no chão sujo. Minotauros e escravos corriam para o local. Assustada, pegou a adaga e escondeu dentro do balde. Começou a gritar nervosa pedindo por socorro; dentro de si ela orava. Orava para ter forças para chamar pelas trevas. Chamava pelo último nome que Dahlis pronunciara, um nome que ela diria a outros, mesmo que a maioria negasse ou não acreditasse.

Shaftiel
Enviado por Shaftiel em 06/01/2009
Reeditado em 26/01/2009
Código do texto: T1371320
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