O REVERSO DA MOEDA

Marcos seguia tranqüilo pela avenida movimentada. Àquela hora, o trânsito já não estava tão intenso. Umas poucas pessoas trafegavam com passos lentos, observando as inúmeras vitrinas coloridas das lojas variadas e sortidas; cada uma, ostentando uma decoração mais chamativa que a loja concorrente. Assobiava baixinho, trazendo no rosto, a felicidade dos bem-aventurados, vitoriosos na vida e sortudos no amor. E que amor! Uma bela rapariga de vinte anos, loira, nariz pequeno e ligeiramente arrebitado, quase dois metros de altura, corpo escultural, inteligente e compreensiva. Todas essas qualidades não eram comuns à maioria das garotas; por isso, Marcos se encontrava em estado de graça naquele momento. Havia sete dias que ele a conheceu durante um curso de inglês num momento que para muitos pareceria cômico, mas que para ele, significou o início de uma nova fase em sua vida monótona e sem graça. O fato que se sucedeu foi o seguinte: durante a primeira aula, ele se encontrava numa madorra costumeira, nem um pouco interessado nas explanações da mestra. Sua mente estava repleta de pensamentos corriqueiros como: o carro novo que acabara de ganhar e que detonara na primeira semana de uso, o par de tênis novos que sua mesada ajudara a adquirir e, muitas outras banalidades. Havia se matriculado no curso de inglês no período noturno, depois de muita insistência de sua mãe. Quando cochilava em sua carteira, a professora Marta lhe dirigiu uma pergunta:

— Marcos, Did you understand the lesson?

— O quê professora? Como...?

A gargalhada que se seguiu à surpresa de Marcosfoi realmente constrangedora. Porém, ele nem se importou tanto com a gozação dos colegas. Seu olhar apático perscrutou a sala, quando de repente, parou sobre a garota mais linda que sua vista já teve oportunidade de contemplar. A jovem, que havia ingressado no curso justamente naquele dia, ficou até um pouco sem graça com o assédio daquele rapaz metido a galã. Para Marcos, naquele momento, só o que importava era observar-lhe a beleza.

Terminada a aula, se aproximou da moça, perguntou se não haveria possibilidade dela lhe ajudar com as lições em sua casa. Cláudia, muito sem jeito, balançou a cabeça afirmativamente. O jovem não cabia em si de tanta felicidade. Sua mente devassa já preparava mil e uma idéias para assediá-la. Os dias que se seguiram foram um tanto quanto frustrantes. Cláudia, muito aplicada, só pensava em aproveitar o máximo as horas de estudo, para lhe ministrar seus conhecimentos. Marcos apelou várias vezes para o bom senso da garota, obtendo sempre, uma recusa velada e delicada. Assim, foram passando os dias e, finalmente, naquela noite, o conquistador conseguiu convencê-la a lhe acompanhar ao cinema. Nesse exato momento, Marcos seguia para o tão sonhado encontro.

Chovera durante a tarde. O asfalto molhado assemelhava-se a um tapete gigante cheio de poças de água, brilhante, como se tivesse sido pintado pela natureza numa tela imensa. As luzes de néon lucilavam nas faces dos transeuntes, numa mistura de cores, acentuando-lhes a fisionomia alegre e despreocupada. Marcos seguia calmamente, pois estava um pouco adiantado. “Maldita hora em que eu bati o carro. Se eu estivesse com ele agora, as coisas certamente seriam bem mais fáceis. Com que cara eu vou convidar Cláudia para seguir de táxi até um motel? Mas que mico filho da puta!”

O filme meloso que Cláudia escolheu até que enfim terminara. Os dois seguiram até uma lanchonete, tomaram suco de laranja enquanto Marcos lastima a falta do carro. Cláudia compreensiva como sempre, ouvia as reclamações do colega que seguia procurando vorazmente, uma maneira de convidá-la a acompanhá-lo numa aventura amorosa e assim coroar com êxito aquela noite magnífica. Cláudia tentava convencer Marcos das vantagens de caminhar. Dizia que a noite estava divina, que só a pé, poderiam desfrutar das belezas das vitrinas, do ar fresco e cheiroso. Marcos, aborrecido, lamentou:

— Mas se eu estivesse de carro, poderia levá-la para conhecer um motelzinho divino que eu descobri na semana passada e...

— Como é!? — exclamou Cláudia, perplexa.— Você por acaso está pensando que eu sou uma qualquer, que basta um convite e eu vou me entregando assim para qualquer um? Está muito enganado meu caro!

— Desculpe-me Cláudia, eu não quis te ofender, eu só queria é que você conhecesse o motel...

— Imagina só Marcos, você é tonto ou está se fazendo?

Os dias seguintes transcorreram aborrecidos e enfadonhos para Marcos. Mas apesar dos dissabores, ele não conseguiu tirar da memória o rosto angelical de Cláudia. Havia abandonado o curso de inglês e se refugiado em seu quarto. O coração pulsava mais forte, sempre que a imagem da moça aparecia em sua mente. Não resistindo a vontade de vê-la, resolveu ir até a escola. Ficou esperando o final da aula.A jovem saiu em meio a uma turma de alunos falantes e alegres. Marcos se aproximou de Cláudia, tímido, pediu para lhe falar.Ela a custo conseguiu esconder o prazer de ver o tão querido rapaz. Marcos murmurou vários pedidos de desculpas e, após se certificar de que tudo estava bem, convidou-a para tomar um refrigerante. Os dois conversaram divertidos durante longas horas maravilhosas, em conversa entremeada de risos e exclamações de alegria. No resumo dos fatos, já fazia três meses que os dois iniciaram um namoro cheio de promessas futuras. Marcos modificou totalmente seus pensamentos; passou a valorizar mais as pequenas coisas da vida, os valores humanos e tudo que antes lhe parecia enfadonho, hoje, era considerado um presente dos céus. Começou a freqüentar o Centro Espírita que Cláudia freqüentava e sua vida, a partir desse dia, mudou totalmente. Visitava hospitais, asilos, ajudava nas campanhas de colheita de alimentos e, cada vez mais, se sentia útil.

Um certo dia,disse a Cláudia que havia ajeitado com o pai uma ocupação na firma da família, o que deixou sua mãe muito contente e, seu pai todo orgulhoso. Porém, quando falou para eles o motivo da mudança repentina, o casal se irritou. Não queriam aceitar de maneira nenhuma que seu único filho se casasse com uma moça vinda de baixo, sem berço e sem fortuna. Cláudia ficou surpresa com o desejo do namorado. Nem se tocou com a oposição dos pais do moço. Sua felicidade era tanta, que não deixava espaço para preconceitos mesquinhos de quem nem lhe conhecida direito.

As semanas seguintes a essa conversa, foram de planos e mais planos para o casamento iminente. Certo dia, Cláudia convidou Marcos para acompanhá-la ao centro da cidade, pois queria que ele visse os modelos de uns móveis lindos que ela havia visto naquela tarde. Marcos acompanhou-a até a loja. Os dois ficaram observando os modernos móveis, como se estivessem mesmo próximos de se unirem no tão sonhado matrimônio. Marcos falou a Cláudia que estava atrasado para o serviço, se despediu, seguindo pela calçada movimentada. O barulho de uma freada e o som de um baque, fê-lo virar para trás. A cena que deparou, fez com que saísse em disparada. Cláudia se encontrava estirada no asfalto quente.

Os dias que se sucederam à tragédia foram para Marcos, uma seqüência de angustiantes momentos e de um vazio que cada vez mais lhe corroia a alma. Seus pais, aflitos, não entendiam o motivo para tanta tristeza já que havia inúmeras pretendentes, ricas, bem alicerçadas na sociedade, a lhe pleitearem um lugar no coração. Marcos, porém, nem se interessava por essas garotas, seu coração e sua mente, já haviam sido ocupados pela adorada figura de Cláudia. Um dia, numa tarde fria e escura, Marcos resolveu dar um passeio pela vasta propriedade onde residia com seus mesquinhos e materialistas pais. Num trecho próximo da mansão, havia um casebre que servia de cômodo de despejo da casa. Uma série de quinquilharias ocupava o local mofado e lúgubre. Marcos passeava distraído quando se viu diante do barraco. Abriu a porta que soltou um rangido triste e lamurioso. Entrou reparando na enorme variedade de utensílios que ali estavam depositados. Começou a vasculhar aleatoriamente, as caixas, os baús empoeirados. Num canto, encontrou uma espingarda municiada com cartuchos velhos. Ficou apreciado a bela peça e, de repente, se viu encostando na têmpora o cano enferrujado da arma. Ao longe, ouviu-se um estampido. Um cheiro forte de pólvora queimada, concentrou-se em meio a uma nuvem de fumaça branca e densa. O corpo do jovem ficou estirado no frio solo do casebre; sua mente mergulhara numa escuridão total.

Quando Marcos acordou, estranhou o local em que estava. Havia um grande salão, requintado e com um número imenso de pessoas que circulavam de um lado para outro, conversando baixinho, enquanto outros, se alternavam na aproximação de um ataúde elegante, demonstrando uma tristeza autêntica. Ficou sem saber o que estava acontecendo, quando se assustou, ao ver uma pessoa bastante conhecida, encostada num pilar, a observar o movimento. Cláudia?! — chamou Marcos radiante —.

A jovem se voltou para Marcos, lhe abraçou e beijou-lhe os lábios com sofreguidão.

— Mas o que é que você está fazendo aqui minha adorada?

— Você deve estar um tanto confuso querido, mas logo tudo se tornará claro.

— O que você quer dizer? Onde estamos? Quem é esse pessoal?

— Calma! Uma pergunta de cada vez. Esse pessoal está aqui participando de um velório.

— Velório de quem Cláudia?

— Vá até o caixão e você terá a resposta.

— Mas Cláudia, eu não estou entendendo. Por que você não me diz logo de uma vez o que está acontecendo meu bem?

— Está bem. Você, Marcos, se precipitou e cometeu uma tolice enorme meu amor. Você se suicidou. Esse velório, é o seu velório.

— Não é possível Cláudia! Você só pode estar brincando.

— Não estou não Marcos.

— E agora, o que acontecerá? Se for para eu ficar ao seu lado, até que valeu a pena.

— Não é bem assim querido.Você cometeu um pecado mortal e terá que sofrer as conseqüências. Esse, é o reverso da moeda meu bem. Durante nossa existência material, sofremos vários reveses; temos que enfrentá-los para depois de nossa partida, podermos gozar da felicidade que Deus nos reserva em sua bondade infinita. Você interrompeu seu destino, agora, terá que se redimir e voltar muitas outras vezes, até que se encontre preparado para desfrutar de uma vida melhor. Mas não se preocupe, eu voltarei com você e juntos, construiremos uma nova vida, mesmo que atravessemos muitas barreiras. Esse,foi meu pedido aos nossos irmãos superiores, que me concederam esse benefício.

Marcos abraçou Cláudia soluçando e beijando-lhe o rosto, murmurou palavras de amor e agradecimento.

FIM

Gilberto Feliciano de Oliveira
Enviado por Gilberto Feliciano de Oliveira em 24/01/2009
Código do texto: T1402755