O Quadro

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(Conto publicado na antologia internacional "Margens do Atlântico", pela Ed. Abrali)

Nunca me canso de olhar para o deslumbrante presente, pendurado na parede bem a minha frente, no lugar que fora tão especialmente reservado a ele. Lindo! Excepcionalmente cativante e tão simplesmente maravilhoso, que seu vislumbre deleita meus olhos. Proporciona um colorido todo especial ao meu quarto, enchendo-o de alegria e deixando-o repleto da tua essência, da tua desejada presença. Ontem foi domingo, um belo domingo. Acordei cedo, e, como não ouvi barulho na casa da minha mãe, não toquei a campainha para chamá-la; imaginei que minha velhinha ainda estava na cama e não quis perturbá-la.

Fiquei “namorando” a paisagem e me imaginando andando descalço naquelas estradinhas de terra batida. (O bom da nossa imaginação é que ela não possui limites, assim, podemos andar e correr à vontade, por todos os lugares que queremos.) Imaginei-me nadando, pescando e refestelando-me nas águas frescas do lago. Vi-me sentado na grama, com as costas escoradas no tronco da árvore maior, com uma haste de capim entre os dentes e o olhar perdido nas montanhas além do grande lago, enquanto a brisa vinda deste acariciava meu corpo. Senti o cheiro da relva, viçosa por conta das últimas chuvas.

E sabe o que eu estava fazendo ali, sentado na grama, à sombra da árvore? Estava esperando você. Sim, eu a esperava.

Não demorou muito e você despontou ao longe. Vinha na minha direção, vinha me encontrar. Estava linda, com seu vestido longo e largo, de tecidos finos e leves, esvoaçando na brisa da manhã, quase tocando as leves sandálias de palha. Você segurava com a mão direita um longo e delicado chapéu de praia, também feito de palha, que a brisa teimava em derrubá-lo da sua cabeça. Seus sedosos cabelos castanhos brilhavam ao sol, já bem quente àquela hora. A coloração verde-limão do seu vestido permitiu que eu a visse assim que despontou na curva da estrada, na sombra das árvores, ao longo do grande lago. Mas ainda mais destacado que seu vestido, estava seu sorriso, tão luminoso que quase fez o sol se apagar de inveja e vergonha. Dentro da sua bolsa – também de palha – tinha um livro, do qual você muito havia falado e o qual você já há algum tempo tinha prometido emprestar-me. Era um livro de mensagens e poesias.

Levantei-me da grama e corri ao seu encontro, alcançando-a antes mesmo de chegar à pequena entrada da casa; à pequena entrada de terra batida – recém varrida por uma vassoura de ramos de alecrim selvagem –, circundada por flores amarelas, brancas e vermelhas, que dava acesso à sala da casinha linda, simples e aconchegante. A casinha de paredes brancas e telhas vermelhas, que fora feita por você, concebida pelas suas mãos de fada e sua imaginação de artista, munida de um pincel mágico e tintas encantadas.

A saudade era grande e nos abraçamos fortemente, por um longo período de tempo. Elogiei a estradinha de terra, as árvores e as folhas caídas no chão, as flores, a casinha, o lago, as montanhas, o céu azul e até os urubus, pequenos pontos negros voando longe, além de onde os olhos podiam ver, numa liberdade irrestrita e invejável. Sim, elogiei e agradeci a você, por possuir tamanho bom-gosto e tanta sensibilidade, por ter criado, concebido tudo aquilo só para mim. Agradeci-a por ser minha amiga. Agradeci-a por existir e fazer parte tão integrante da minha vida.

Convidei-a para entrar e você elogiou o perfume das flores recém plantadas ao longo do caminho de entrada. O mobiliário da casinha era muito simples. Na sala, apenas duas rústicas mas confortáveis cadeiras de leitura, artisticamente confeccionadas em palha e cipó e uma pequena estante de madeira escura, carcomida pelo tempo, repleta de livros dos mais variados gêneros. Uma das cadeiras – a minha preferida – ficava imediatamente à frente da janela noroeste, de onde se podia ver a estrada oeste e parte do imenso lago; a outra ficava a frente da janela sudoeste, a fim de permitir, a quem ali estivesse sentado, ver as pessoas chegando pela estrada sul. A estante com os livros ficavam junto à parede central.

Os dois quartos da casinha eram de tamanho igual: singelamente decorados, cada um com uma cama, sobre a qual se via farfalhante colchão de palha, coberto por lençóis de algodão; mesinha de cabeceira, sobre a qual postava o candelabro; armário velho e gasto e quadros de paisagens em três tamanhos diferentes, pendurados nas paredes brancas, todos assinados por você. Também o meu quarto preferido era aquele cuja janela dava vista para o lago, mas o de hóspedes não era menos aconchegante.

Adentrando mais a casinha, pelo chão de terra batida, bem varrido por ramos do perfumado alecrim selvagem, chegamos à cozinha. Um fogão a lenha, cujas cinzas ainda estavam mornas, ficava junto à parede e embaixo da janela, no canto nordeste da casa. E sobre ele, numa espécie de varal de bambu, vários peixes recém pescados estavam pendurados para defumar. Sobre as tábuas de uma prateleira escurecida pela fumaça, tão antiga e carcomida quanto a estante da sala e o resto do mobiliário, que ficava junto à parede leste, podia se ver várias panelas e outros utensílios de cozinha: a maioria feita de ferro, argila, ou material esmaltado.

Fred, o cachorrinho mais peralta que já se teve notícia, cochilava debaixo do longo banco de madeira velha, que ficava ao longo da parede que dividia meu quarto da cozinha. Ao nos ouvir entrar, o velhaco levantou a cabeça preguiçosamente. Seu olhar sonolento levou alguns segundos para lhe identificar. Uma vez feito, ele abanou a cabeça de longas orelhas para espantar a preguiça e correu na sua direção, em seguida ficou de pé nas patas traseiras, com as dianteiras apoiadas nas suas pernas e sujando seu vestido. Após alguns afagos nas orelhas, ele finalmente quietou, mas a cauda continuou abanando em leque, incansável na intenção de agradar.

Com facilidade eu fiz as chamas crepitarem novamente no fogão e coloquei uma chaleira preta com água para o café, que eu mesmo havia limpado no pilão, torrado e moído. Da soleira da porta da cozinha – um degrau acima do terreiro varrido –, você elogiou a exuberância das orquídeas que circundavam os troncos das arvores, ao longo do caminho de terra batida que seguia para o leste, levando ao lago. Nessa época as orquídeas ainda não estavam floridas, mas isso não diminuía em nada sua exuberância e beleza.

Após lavar o coador, bule e xícaras na abundante bica d’água do terreiro, o café finalmente ficou pronto. O cheiro de café fresco acariciou nossas narinas e aguçou nosso paladar. Em seguida retirei uma travessa de pães-de-queijo fumegantes do forno do fogão a lenha e a coloquei sobre a única mesa da cozinha, que também era da mesma madeira escura e carcomida, mas impecavelmente limpa e sem forro. O portentoso faro de Fred fez com que ele rodopiasse e ganisse, na tentativa de agradar, em troca de uma daquelas guloseimas.

Após o lanche, voltamos à sala e nos sentamos nas confortáveis cadeiras de cipó e palha, as mais novas aquisições do mobiliário. Você então me mostrou o livro que trouxera e eu lhe mostrei alguns recém adquiridos, os quais já havia lido e lhe emprestaria. Conversamos horas a fio sobre os livros, sobre minha vida simples ali, num isolamento planejado e consentido, sobre sua arte, sobre as coisas que ambos escrevemos, sobre seu trabalho com as crianças, sobre suas lindas filhas – que estavam indo muito bem na escola – e sobre seu amado marido. Dele falamos das sessões de massagens, das coleções de pimentas e das pingas de engenho; e o fato de que ele nunca se esquecia e pra variar havia me mandado um chute na bunda. Enfim, conversamos sobre nossas famílias, que graças a Deus estavam bem, sobre nossos amigos, que cada vez mais continuam amigos, sobre tudo e sobre todos. A parabenizei pela vitória do seu time sobre o meu, cujo jogo eu ouvira num radinho a pilha, na tarde anterior.

Então atravessamos o interior da casinha novamente e saímos para o terreiro da cozinha, seguidos de perto por Fred, que abanava a cauda alegremente e corria atrás das borboletas, sem no entanto conseguir alcançá-las. Seguimos pela alameda ladeada de árvores floridas e de orquídeas das mais variadas espécies, observando os passarinhos, sentindo o frescor das sombras e da brisa nos nossos rostos, até chegarmos ao lago. Coloquei nova isca numa vara de pesca que eu havia deixado de espera na noite anterior. Mostrei-lhe um tronco no qual estava iniciando os trabalhos para transformá-lo numa canoa, que me levaria ao meio do lago e, conseqüentemente, aos peixes maiores. Passeamos descalços ao longo da margem, sentindo a água límpida e fresca tocar nossos pés.

O tempo passou. Quando estamos em companhia agradável não o vemos passar, mas ele passa. E também o sol seguiu sua incansável trajetória rumo oeste. À tardinha, quando o calor se tornara mais ameno, voltamos à casinha e a mais um café, dessa vez acompanhado por broas de milho. O domingo fora maravilhoso, mas estava ficando tarde e você infelizmente precisava ir embora.

Saímos da casinha pela porta da sala. Os canteiros de flores estavam ainda mais viçosos, por causa da diminuição do calor. Já na estrada, olhei para trás, a fim de verificar se todas as portas e janelas estavam abertas; eu gostava assim, para arejar a casa. No mais, ali não havia nenhum perigo. Ali era meu refúgio, meu paraíso, longe dos perigos e da agitação da cidade. Caminhamos lado-a-lado pela estrada, no sentido noroeste, calmamente, despreocupadamente, falando sobre o belo dia que passamos juntos, sobre os assuntos que botamos em dia e sobre o fato de termos aplacado as saudades. Não obstante, sabíamos que assim que você se fosse, as saudades voltariam, pois somos almas-irmãs e nossas afinidades não têm limites; mas também sabíamos que dali a uma semana iríamos nos ver de novo e na próxima e na próxima e na próxima.

Caminhei contigo até a curva da estrada, onde seu carro a esperava sob um frondoso ipê amarelo, cujas flores caídas enfeitavam o teto e capô, tais quais colares havaianos. Abri a porteira pra você passar. Após um abraço tão demorado quanto o da chegada e mais um sorriso luminoso, você entrou no carro e deu a partida. Não precisou usar a marcha ré, pois após uma pequena curva sobre a grama, estava na estrada novamente. De repente você pôs a cabeça para fora da janela do carro e disse alto – acima do barulho leve do motor –, que no próximo domingo seu marido e as filhas também viriam. Demonstrei ter entendido com um movimento de cabeça, enquanto subia na porteira. E você acelerou.

Fiquei ali, sentado no alto da porteira, com uma nova haste de capim na boca, vendo seu carro desaparecer na próxima curva da estrada, ao longo do lago. Sentia um aperto no peito ao vê-la partir, mas também conforto, por saber que dali a sete dias a veria novamente, e daquela vez com o extrovertido barbudo, seu violão e as baixinhas, que haveriam de se divertirem muito com Fred, como das vezes anteriores.

Só depois que baixou o ultimo grão de poeira da nuvem que o carro levantara na estrada, desci da porteira, conferi se a mesma estava bem fechada e rumei de volta para meu refugio, meu reino encantado, meu paraíso na Terra. O sol já se escondia por detrás da curva do horizonte, deixando um clarão avermelhado no céu. Ficaria esperando ansiosamente pelo próximo domingo... e como estava longe aquele próximo domingo.

Nardélio Luz
Enviado por Nardélio Luz em 17/05/2005
Reeditado em 29/11/2007
Código do texto: T17545
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