O TEMPORAL NO FERIADO





                                                            
                                                       Roque Aloisio Weschenfelder



O céu da tarde escurece. O tempo brinca de esconder o sol – que não entra mais pela janela – e de arremessar lufadas úmidas pela sala toda. Dolores não se importa com as grossas gotas que se arremessam para dentro da sala. Apenas um arrepio percorre seu corpo nu.
Sente prazer nesse súbito frescor, mas, aos poucos, nota que a penugem do corpo começa a ficar toda molhada. Pensa em buscar uma tolha e secar-se, porém, desiste da idéia com o pensamento voltando a ocupar-se de Renato que está atrasando. E se ele não vier com esse tempo! O feriado estaria irremediavelmente perdido. A manhã sozinha; no almoço a pizza que o entregador largou sobre a mesa, saindo sem cobrar, ao vê-la em vestes de Eva no paraíso; a sesta prolongada, interrompida por um trovão precursor da ventania e, agora, esse barulho de galhos quebrando, telhas sibilando em vôos rasantes, capazes de decapitar qualquer amante afoito...
Batem na porta, ou é o tempo, que quer entrar para abraçá-la? Hesita em abrir. E se for alguém procurando refúgio? Quem sabe, aquela mendiga que pede pão e em troca diz a sorte! Não. Deve ser Renato.
- Entra – ordena, sem se mover do sofá todo encharcado.
Ninguém entra e tudo fica quieto outra vez. Imagina ser travessura do vento, agora já mais brando, com as torrentes despencando do alto e escorrendo pelas sarjetas levando de roldão toda a pouca consciência ecológica da cidade.
Amante casado parece um castrado. Promete o mundo, mas na hora mais esperada falha. A essas horas quase se arrepende da promessa feita a si mesma. Olha para o espelho na parede e o espanto a invade. O corpo que vê está coberto de uma veste prateada com milhares de gotículas. A fria roupagem transformou-a numa deusa semelhante às descritas em “As Brumas de Avalon” de Marion Zimmer Bradley .
Aos poucos o mundo lavado, lá fora, se acalma. Extasiada ela não pára de fitar a deslumbrante imagem no espelho. A umidade na pele não é maior que aquela entre as pernas e Renato, o trouxa-veado-corno, perde um espetáculo, não, um capricho da natureza.
Num arranco a porta se abre e Renato entra cambaleando. Um forte cheiro de cachaça impregna suas vestes molhadas, que rapidamente toma conta de toda a sala. Ele se aproxima grunhindo palavras desconexas, tenta agarrá-la e despi-la de suas vestes prateadas. As mãos escorregam no corpo liso de Dolores que escapa e se refugia no banheiro, trancando-o.

Passam alguns minutos e cessam as batidas dele para que abra a porta. Dolores ouve passos e gritos que se afastam na tarde moribunda. 
                                        Obs.: Conto publicado na Antologia 102 Que Contam - Organizada pelo escritor Charles Kiefer e lançada pela Edit. Nova Prova de Porto Alegre - 2005