O Homem, o Educador e a Gramática

No princípio era a linguagem, e a linguagem estava com o homem, e a linguagem era o homem. A linguagem estava no princípio com o homem. Mas a linguagem era sem forma e vazia. E havia trevas sobre a expressão da linguagem, e muitas bocas se moviam sobre a face incompreensível da comunicação. E disse o homem: Haja sentido. E houve sentido. E viu o homem que o sentido era bom. E fez o homem separação entre aquilo que fazia sentido, e o que não fazia. E chamou ao que fazia sentido língua. E ao que não fazia, chamou de som. E foi-se algum tempo, o primeiro período da linguagem.

E disse o homem: haja uma expansão na linguagem, e haja separação entre ações e coisas. E fez o homem separação entre as ações, e as coisas que praticam estas ações, e assim foi. E chamou o homem às ações verbo. E às coisas, substantivo. E assim foi. O segundo período.

E disse o homem: ajuntem-se ás coisas qualidades, e apareçam palavras que modifiquem os verbos e substantivos, e assim foi. E chamou o homem às qualidades adjetivo. E aos modificadores, chamou advérbio. E viu o homem que isso era bom.

E disse o homem: produza a linguagem nomes que substituam ou acompanhem as coisas segundo a sua espécie, segundo a sua semelhança, e nomes que expressem a dor e a raiva, a alegria e espanto, de acordo com o sentimento, e assim foi. E a linguagem produziu outros nomes que substituíam ou acompanhavam os substantivos, e isso evitou repetições, e produziu indicadores que expressavam os sentimentos e aflições antes inexprimíveis, e isso facilitou o diálogo, e viu o homem que isso era bom. Chamou o homem aos nomes que acompanham ou substituem substantivos de pronome. E aos que exprimem sentimentos, chamou de interjeição. Este foi o terceiro período.

Disse mais o homem: haja separadores que definam ou indefinam as coisas, fazendo distinção entre seu gênero masculino ou feminino. E quantitativos para as coisas, segundo seu número, segundo sua ordem e sua porção. E colocou o homem antes dos substantivos os artigos e os numerais, para governá-los segundo sua espécie e gênero, conforme seu número, ordem e porção. E viu o homem que isso era bom. E foi-se o quarto período.

No quinto período, disse o homem: Produza a língua abundantes ligadores, que unam ações e coisas, que juntem sentidos a outros sentidos. E fez-se então na língua palavras que uniam substantivos e verbos conforme seu sentido dativo ou ablativo, e conectivos que voavam de orações em orações, segundo sua espécie coordenada ou subordinada. E viu o homem que isso era bom. E chamou o homem ás palavras que ligavam substantivos e verbos preposições, e ás que ligavam orações e orações conjunções. E foi-se o quinto período.

Disse o homem: façamos o educador à nossa imagem, conforme a semelhança de nossa língua, e domine ele sobre os verbos, os substantivos, os adjetivos, os advérbios, os pronomes, as interjeições, os artigos, os numerais, as preposições e as conjunções. E criou o homem o educador à sua imagem. Á imagem do homem ele o criou, com seu poder o criou. E disse o homem ao educador: Eis que vos tenho dado todo o radical e vogal temática, todas as desinências de número, pessoa, modo e tempo. Todos os verbos anômalos e defectivos. Todos os substantivos próprios ou comuns, e a toda e qualquer palavra primitiva ou derivada para que lhe sirva de instrumento de ensino. Ide por toda a Terra, ensinai a toda a criatura, preparai o caminho da língua, fazei discípulos por todas as nações. E viu o homem tudo o quanto tinha feito, e eis que era muito bom. E foi mais um tempo. O sexto período. E construiu o homem no seio da sociedade a escola, e pôs ali o educador que havia formado.

E tomou o homem o educador e o pôs na escola para lá ensinar e de lá cuidar. E ordenou o homem ao educador, dizendo: a todos os livros da biblioteca lerás e aprenderás, mas a nenhuma ideologia te filiarás, porque no dia em que nalguma ideologia te filiares, nunca mais verdadeiramente educarás. E disse mais o homem: não é bom que o educador esteja só. Far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja completa.

Mas dentre as estruturas da língua que foram criadas, nenhuma se achava que fosse completa como o educador o era. Então o homem fez cair pesadas trevas sobre o entendimento do educador, e sua mente adormeceu por muito tempo. E tomou o homem uma parte dos conhecimentos do educador, e desta parte de conhecimentos que o homem havia tomado, formou a gramática, e novamente iluminou-se o pensamento. E disse o educador: esta é ciência de minha ciência, e sabedoria de minha sabedoria. E será chamada prescritiva, porque de minha língua foi tomada.

E eis que um dia surgiu a regra, o preceito mais astuto que o homem já havia criado. E esta disse à gramática: Não é assim que o homem disse “a todos os livros da biblioteca lerás e aprenderás?”

Ao que respondeu a gramática: a todos os livros da biblioteca leremos, mas a nenhuma ideologia nos filiaremos, pois o homem disse “no dia em que em nalguma ideologia te filiares, nunca mais verdadeiramente educarás.”

Então disse a regra: Certamente educarás. Porque o homem sabe que no dia em que te filiares a alguma ideologia, vossos olhos se abrirão e sereis como ele, tendo conhecimento acerca do bem e do mal, do que domina e do que é dominado.

E viu a gramática que a ideologia era boa para se compreender, e agradável aos olhos de quem a vê, e desejável para dar entendimento, e fácil de ser seguida. Tomou então de uma de suas idéias, e a ela se filiou. E deu também ao educador, seu companheiro, e a ela também se filiou.

Então, abriram-se os olhos de ambos, e conheceram que poderiam ser dominadores, e não mais dominados, e produziram na escola outras formas de educar. Então ouviram a voz do homem, que lhes questionava, e pela primeira vez mentiram. E o homem disse ao educador: Quem te ensinou a mentir? Aderistes tu a alguma ideologia que te ordenei eu não te aliasse?

E respondeu o educador: a gramática que me destes por companheira, ela me deu uma ideologia, e eu a ela me filiei.

E perguntou o homem à gramática: Porque fizestes isto?

E disse a gramática: a regra me enganou, e eu fui seduzida por uma ideologia, e a ela me filiei.

Então o homem disse à regra: Porquanto fizestes isso, maldita serás entre todos os meus preceitos sociais. E dentre todas as disciplinas escolares tu serás odiada. Sobre as tuas normas os alunos pisarão, e as tuas palavras sentirão o desprezo e o descaso por todos os dias do ano letivo. E porei inimizade entre ti e o aprendizado da língua. E entre o que aprende e o que ensina a gramática. De forma que o professor terá as regras da gramática todas na cabeça, mas o aluno não as terá sequer em seu falar.

E disse o homem à gramática: Multiplicarei grandemente as dores do teu ensino. E tortuosa será a tua compreensão. Com dores darás à luz ao conhecimento; e a tua vontade será somente a do educador que te acompanha, pois ele te dominará.

E ao educador, disse: Porquanto deste ouvido à voz da gramática, e te filiaste à ideologia que te ordenei não te filiasse, dizendo “no dia em que nalguma ideologia te filiares, nunca mais verdadeiramente educarás,” maldita é a educação por tua culpa, e com baixo salário sobreviverás do ensino por todos os dias de teu magistério. Queixas e dores de cabeça o trabalho também te produzirá, e na poeira do apagador comerás merenda escolar até que te aposentes. Porquanto és parte do sistema, e à vontade do sistema educarás.

E disse o homem: eis que o educador é como nós, sabendo do bem e do mal. Ora, para que não estenda a mão, e use a ideologia, e tome o domínio da educação, calou o homem o educador com a negligência, para proteger o sistema que havia criado. E havendo calado o educador, pôs a ignorância em torno da educação, e o comodismo na sociedade para guardar o caminho que leva ao aprendizado e à mudança.