TRANSPLANTE PIRATA

O céu estava de um azul, mas de um azul! Um sol de rachar. Vento nenhum. A vegetação toda imóvel. Se porque triste não se sabe. Havia morrido era o dono de muitas palavras.

Um homem de terno preto de talhe impecável entrou no seu carro. Era uma ilha tropical de sol e muito. Despercebido, mesmo com aquele terno, debaixo de tanto calor, ele passou pelo portão de entrada da casa. Parou o carro bem à porta. Se havia algum segurança, algum ordenança, algum parente qualquer, ninguém viu o homem de terno preto impecável sair de seu carro e entrar na casa. Pudera. Se alguém houvesse na casa, no momento estaria a chorar nalgum canto. O dono das muitas palavras havia morrido. Foi direto ao escritório o homem de terno preto a seguir o traçado do mapa da casa. Foram poucos os minutos que gastou para sair de lá com a máquina e as caixas.

No velório, a parentada toda discutia a respeito da morada final do dono das muitas palavras. Os amigos também discutiam. As autoridades do país também discutiam. Na ilha é que não seria. Haveria de ser na capital de sua terra natal, num mausoléu capaz de corresponder ao prestígio do finado. Na sepultura dos pais não deveria ficar. Também, um simples jazigo perpétuo para ficar sozinho à espera da mulher era fora do decoro. Feriria os brios do dono das muitas palavras.

De todas as partes do mundo chegaram amostras de epitáfios. Cada um formado dos mais elogiosos vocábulos para servir de póstuma homenagem ao dono de tantos outros. Não seria nenhum deles “Um Conto da Ilha Desconhecida”, que ir até lá preciso seria uma “Jangada de Pedra”. Trabalhoso escolher tal elogio fúnebre visto que naquela hora pessoa alguma aventurava-se a fazer “O Ensaio Sobre a Cegueira”. A escolha fazia-se praticável_ pois, pois_ palavras do “Evangelho Segundo Jesus Cristo” ou mesmo “In nomine Dei”, choviam aos montes, “Objecto Quase”, Que farei com este livro que não é senão um “Manual de Pintura e Caligrafia”? Até dariam tantos epitáfios para encher grande número de “cadernos de Lanzarote”, que é esse tal Lanzarote, Deus meu. Preciso, mais ainda do que navegar, seria escolher entre “Todos os Nomes” de autores dos epitáfios, antes que o defunto do féretro saísse, podia ele ainda apetecer fazer a derradeira “Viagem a Portugal” sem a “Bagagem do Viajante” que dagora em diante, esse defunto dono das muitas palavras, já era mesmo transformado em conteúdo de caixa de madeira. Viajando, iria ele tropeçar no emaranhado da “História do Cerco de Lisboa”. Nada a ver com “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Que naquele ano o tumulto nem ao menos teria sido grande , hoje não era esse o caso, pois naquele, pessoa alguma havia participado do guardamento do morto que vivera sem ter tido um corpo.

O homem de terno impecável, sem delonga, chega a seu destino. Entra com seu carro através do portão de ferro, a casa lá no fundo escondida entre árvores frondosas, cercada de sombras. Sem mesmo tirar o paletó, apesar do insuportável do sol, abre o porta-malas do carro e tira lá de dentro a máquina objeto maior de seus desejos. Um perfeito cérebro. (Se humano?) Para fazê-la funcionar, tempo nenhum requerido foi. Olhos brilhando, suando em bicas, sem o menor medo de haver sido seguido, afinal todos naquela hora preocupavam-se somente com o morto, nem pensavam naquela máquina que guardava viva ainda a alma do próprio, intacto ainda seu cérebro. Aquilo tudo agora lhe pertencia. Fazia anos que planejara tal feito. Há anos gastava centavo por centavo de seus escudos havidos pela herança do avô para controlar, passo a passo, a rotina do dono de muitas palavras. Sabia ele, minuto por minuto, o que fazia o dono de muitas palavras. Usara ele de todas as tecnologias modernas para fazer o trabalho de espionagem. Horas antes do dono das muitas palavras fechar pela derradeira vez os olhos de lince, o homem de terno preto impecável já havia colocado o pé no caminho, aquele era o seu momento sublime. A mesa de alumínio com tampo de vidro pousada por cima de um tapete de espelho, não é de hoje havia sido preparada, como um altar à espera do santo de maior devoção. A máquina seria vista através das transparências. Pouco foi o tempo gasto para extrair de seu interior a vida e implantá-la na que havia sido ocada a fim de receber célebres miolos. Com peças virgens, preencheu o vácuo deixado na máquina do dono das muitas palavras e, antes mesmo que a multidão decidisse qual seria o conteúdo do epitáfio, antes mesmo que a legião de palpiteiros elegesse o local da última morada do dono das muitas palavras, o homem de terno impecável estava de volta à casa onde passara a reinar o silêncio. Mais uma vez, sem ser notado por pessoa nenhuma, entrou no escritório do dono das muitas palavras e colocou a máquina no lugar exato de onde havia sido ela retirada.

Enterrado o que nunca vai deixar de ser dono de muitas palavras, depois de muita contenda, sem epitáfio pois, devido a tantas menções, havia sido a lápide deixada para ser inaugurada na ocasião da missa de sétimo dia, então, surgiram os parentes. Havia a herança. Parente desprovido de bens e de boas idéias costumam ficar na expectativa de algum legado de um morto abastado. Do conhecido, já sabiam o montante, ou supunham. Mas, e aqueles inéditos, aquelas idéias que ainda estavam escondidas dentro da máquina? Choveu de editores na porta da casa à cata dos ainda não vistos. Os telefones não pararam. O correio eletrônico ficou congestionado. O interfone precisou ser desligado. Valeriam os inéditos milhões de dólares, bilhões de escudos... Um desassossego que daria um livro.

Solitária, a máquina jazia inerte sobre a mesa de muito uso. Ao entrar no escritório, a mulher estranhou a falta de papéis esparsos. Ao terminar cada trabalho, as idéias todas ele colocava no papel........ Sabia ele o que era passado dentro daquela máquina? As gavetas de papéis eram vazias de tudo, percebeu a mulher. Estava certa de que na madrugada da morte do marido, havia retirado de lá, a pedido dele mesmo, uma só folha de papel onde ele faria emendas. A doença, dele não havia roubado o espírito. Estavam entulhadas de folhas de papel impressas as gavetas e a mesa de muito uso, isso podia ela jurar. Ligou o instrumento de trabalho do marido. Nada funcionou. Somente com a chegada de um técnico, foi descoberto que todas as peças internas do computador do dono das muitas palavras haviam sido substituídas. Visto que o cofre havia sido arrombado, a mulher não ficou nem um pouco surpresa ao constatar que, de lá, haviam sido surrupiados apenas os discos magnéticos flexíveis para uso em computador. Infundida de pavor ficou. Do marido, havia-lhe sido subtraído o de mais precioso de todos os legados. Nessa hora sentiu a mulher que acabava enviuvar, pela segunda vez, em menos de 48 horas.

Terezinha Pereira
Enviado por Terezinha Pereira em 22/09/2006
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