Filha da Lua

Filha da lua

Sheilla Liz

Selvagem e analítica. Eu poderia me definir assim, se pudesse. No momento só penso em sobreviver. Olho as meninas me encarando do parapeito, de canto do olho aprecio a altura bombástica em que me encontro. Se eu caísse dali simplesmente explodiria. Poderia esmagar um carro ou dissolver um poodle. Uma pequenina bomba atômica caindo de forma tosca em uma viela qualquer.

A Raíssa me diz:

-Não olhe pra baixo!

Continuo pé ante pé. Respiração pausada. Devagar. Me entrego num ato de fé, nunca fui uma mulher de ciência mesmo. Dou mais um passo e depois outro. Um raio de lua desce sobre mim e sinto o cheiro. Agarro com força o raio lunar como se fosse um véu estendido diretamente das estrelas. Lembro por instantes da primeira vez que senti o cheiro da lua. Fiquei entorpecida, embriagada, quase uma mênade. É preciso conjurar o sangue, depois você pode puxar a lua pra baixo sempre que quiser. E flutuar com ela.

Filha da lua, essa sou eu. Andando sobre nada de um terraço ao outro, roupas negras para me mimetizar com a noite. Se eu passasse por esse desafio estaria concluída minha terceira iniciação. Mais uma conquista pra me tornar sacerdotisa. Não é fácil, é como lutar contra vietcongues.

Agora estou mais perto do que nunca. Dois passos do paraíso. Um vento uiva gaiato e me desequilibra por segundos sombrios, depois encontro o ponto misterioso que mantém a gente em pé e tudo se tranquiliza. Equilíbrio total. Passo. Treinei meses pra isso.

A Raíssa e a Tati me abraçam. A Lady está atrás, meio escondida nas sombras e se aproxima soturna, me parabeniza com um gesto da cabeça. Ela não era dada ao toque. Algumas palavras rituais são ditas, uma conjuração e um canto.

-Conhece o próximo passo, não é, Samanta?

-Sim, conheço.

-Amanhã à meia noite no coven. Que a luz guie seus passos.

Todas elas já eram sacerdotisas. É um caminho sem volta e eu queria andar nele. A Lady pronuncia as palavras certas e elas se transformam em corujas diante meus olhos. Saem voando na imensidão da noite. Eu tenho que pegar o elevador mas um dia eu também voaria.

Na rua ando com passos rápidos. Um estranho se aproxima.

-Ei, você!

-Eu?

-Sim, espere... Foi você que eu vi dando uma de Cris Angel! Como você voou de um prédio para outro?

Maldição. Só faltava essa! Olho pra cara do sujeito. Era bonito sem ser afetado. As sobrancelhas grossas quase se juntando uma na outra. Uma pequena cicatriz no canto esquerdo da boca. A Lady tinha me alertado sobre os homens: Mantenha-se afastada, precisará de toda a energia sexual necessária para abrir o portal.

-Acho que você está enganado. Era outra pessoa.

-Não, foi você! Tenho certeza. Ninguém tem o cabelo assim...

Toco minha juba de fio de telefone. Cortar os cabelos era tão proibido quanto tocar um homem. Os fios capilares são como antenas, quanto mais altas melhor. As minhas eram tão longas que pude ouvir o coração dele mudar o ritmo. Por que?

-Isso foi um elogio, claro!

Ah, um galanteio... Aperto o passo e o indivíduo me segue.

-Espere! Posso saber seu nome pelo menos?

Paro. Olho bem fundo nos olhos dele. Por que fiz isso? Fico hipnotizada por alguns instantes. Era a coisa mais linda que eu já tinha visto. A chama se acende. Preciso correr dali e é o que faço. Fugir daquele estranho tão encantador. O sujeito corre também, mas não poderá me alcançar. Eu conheço alguns truques. Entro em ruas estreitas e despovoadas, pretendo me embrenhar na escuridão e desaparecer como fumaça entre becos. Escalo um muro igual gata, subo o telhado de uma casa e ando cuidadosamente por um parapeito. Logo estou agachada no telhado de um predinho de dois andares. Os meses de preparação física e meditação para o ritual tinham feito maravilhas com meu condicionamento físico. Minha respiração está mais intensa e sinto os efeitos da adrenalina no sangue. Decido ficar ali escondida até que o sujeito desista de me procurar. Por que ele invocou comigo? Pra que me seguir daquele jeito? Como ele conseguia ser tão lindo? Sento e espero.

Levo um susto quando vejo o rapaz parado me olhando. Não resisto em indagar:

-Como me seguiu?

-Eu também pratico parkour. Sou um dos melhores por aqui, mas ainda não entendi o que você fez lá atrás, andando de um prédio para outro sem ter nada embaixo. Você parecia flutuar! E então? Vai me contar?

-Parkour?

Ele ri iluminando tudo ao nosso redor.

-Vai dizer que não sabe? Eu vi o que fez pra chegar aqui! Não é pra qualquer um. A quanto tempo você pratica o malabarismo das ruas?

Ele senta de frente pra mim. Esse sujeito não vai me deixar em paz. E o que é pior, eu gosto disso. Só pode ser outro teste da Lady... mandou esse mago sedutor pra testar a força do meu desapego.

-E aí? Vai me dizer seu nome? Eu sou o Tito.

Invento um nome qualquer, nosso nome verdadeiro não pode ser conhecido.

-Zuleica.

-Zuleica? Fala sério! Esse não é seu nome!

-Por que não seria?

-Apenas não combina... só isso.

Novamente o coração dele dispara, ouço o sangue correr intenso e inundar suas partes íntimas, as pupilas negras se dilatam. Está excitado e isso mexe comigo de um modo absurdo. Observo o modo que a lua beija sua face... fico com ciúme dela. Lua, sua aproveitadora!

Ele senta ao meu lado e o seu cheiro me entorpece como se fosse droga, fico imobilizada de um jeito bom. Tenho vontade de atracar minhas narinas abaixo do lóbulo da orelha dele que é de onde vem aquele cheiro maravilhoso. Quero mergulhar nele. Cheiro de homem. Não acredito no que meus sentidos estão fazendo comigo. Entorpecida e embriagada de desejo tento me concentrar nas meditações recomendadas para situações como aquela.

Ouço a voz da sacerdotisa Lady, fala comigo telepaticamente: Fuja Samanta! Lembre-se de seus esforços pra chegar onde está. Os anos de preparação! A doma do espírito!

-Zuleica, então? Posso lhe chamar de Zu?

Ele toca na minha coxa de forma suave e sinto a corrente elétrica se formar entre nós. Era um imã e lentamente fomos aproximando os lábios. O contato chega a doer de tão bom. Nos embrenhamos um no outro. Meu coração bomba tanto sangue que penso que terei uma pane hidráulica. Imagino meus canos estourando e inundando tudo enquanto me derreto de desejos por aquele homem, ali eu sabia tudo estar perdido. Ainda escuto a Lady gritar: Não! Depois só escuto nossos gemidos.

Selvagem e analítica. O lado selvagem vence.