O Caso Do Português

Um sujeito indeterminado cometeu um assassinato.

Todas as palavras se reuniram perante o professor de português, para que ele analisasse o fato ocorrido. Diante da situação, a primeira pergunta a ser feita era: “Quem é este sujeito?”

O verbo (sempre acusador) foi o primeiro a se pronunciar:

-Simples, é um sujeito determinado!

A semântica – querendo arranjar explicação pra tudo - disse que o sujeito não poderia ser determinado, já que as provas indicavam um sujeito indeterminado.

-Está na cara, quer dizer, na frase! Lá diz que é um sujeito indeterminado!

Interpretou.

A frase pediu para não ser envolvida. Seu trabalho era apenas o mero ofício de um mensageiro: Levar e trazer comunicação através das palavras.

-Se quiserem saber de mais alguma coisa, procurem os termos da oração!

Ouvindo isso, o sujeito elíptico logo se escondeu. Ninguém conseguiu encontrar o sujeito inexistente. E o indeterminado...

-Não se precisa dele!

Sumiram com o coitado.

Sobraram apenas os elementos do sujeito determinado. Diante de tantas discussões, as testemunhas que estavam com o sujeito da oração foram chamadas para depor. Vieram os adjuntos adnominais - A verdade é que ninguém gostava muito deles, porque tinham fama de puxa-sacos (sempre ficavam do lado do substantivo).

-Nós não temos culpa nenhuma nisso. A idéia do sujeito determinado não foi nossa. Se quiserem um culpado, procurem o centro disso tudo. O cabeça. Saberão quem realmente comanda o sujeito.

O núcleo do sujeito, vendo que fora descoberto, tratou logo de se justificar:

-Quem me levou a praticar esta ação foi o verbo. Um sujeito só faz o que faz porque o predicado lhe manda!

Todos os olhos se voltaram para o predicado. O complemento nominal, invejoso da função alheia, foi logo cutucando o adjunto adverbial para acrescentar-lhe uma informação venenosa:

- Dizem por aí que ele é o maior aproveitador da língua portuguesa. Só porque é um elemento essencial na oração, acha que pode viver nesse troca-troca sem vergonha. Uma hora é verbal, outra hora já é nominal, ás vezes é os dois ao mesmo tempo. Isso é uma verdadeira orgia letrada!

O predicado se defendeu, apelando para a psicologia:

-A culpa é da minha formação! As classes morfossintáticas que me compõem é que guiam o meu comportamento. São elas que me tornam o que sou!

As orações subordinadas deram uma piscadinha de leve, apoiando o predicado da oração. Mas como elas nunca se manifestavam sozinhas, sempre dependendo dos outros pra dizerem alguma coisa, ninguém deu muita atenção a isso. Já as interjeições ficaram espantadíssimas com a ação do predicado. Preposições e conjunções foram logo tirando o corpo de fora:

-Nós somos meras coadjuvantes nesta conversa sintática toda! Além do mais, há muitas classes gramaticais que não sabem o que querem da vida. Vivem variando em número e grau, ou modo e pessoa. São classes indecisas, interesseiras, que mudam de acordo com o contexto em que se apresentam.

As classes variáveis tomaram as dores quando perceberam o discurso direto das invariáveis. Os numerais tiveram que contar até dez para quantificar sua raiva. Adjetivos, artigos e pronomes concordaram com o substantivo quando este cedeu a palavra ao verbo:

-Nós não temos culpa de nos adaptarmos á língua. Vocês é que são radicais demais! Sempre absolutas, invariáveis, acabam alienadas ao mundo em que vivem!

O agente da passiva tentou acalmar a situação, mas as vozes verbais estavam muito ativas. Algumas orações ainda tentaram coordenar aquele período turbulento de discussões. No final das contas sobrou até para os advérbios, acusados de racistas (só andavam de panelinha com os verbos, adjetivos ou outros advérbios). Depois de muito bate-boca em níveis derivacionais e flexionais, o professor de português conseguiu instaurar a ordem no tribunal das palavras, fazendo uma declaração inquisidora:

-Está na hora do verbo ser julgado!

De repente, o verbo se calou. Foi para o centro da frase, acuado, muito transitivo. As palavras o interrogavam insistentemente:

-Cometeu o quê, cometeu o quê?

Mas ele nada respondia. Era como se faltasse alguma coisa...

-Isso não tem utilidade nenhuma!

Retrucou uma estrutura sintagmática presente na reunião. E as palavras continuavam:

-Cometeu o quê, cometeu o quê?

Foi então que Senhora regência - a quem todas as palavras respeitavam muito - teve uma idéia maestral:

-Os objetos, onde estão os objetos com que foram praticados a ação?

-Tragam os objetos, a regência pede os objetos do verbo transitivo!

Solicitou a norma culta da língua.

Lá vieram os dois irmãozinhos de mãos dadas, transitando pelos verbos pra lá e pra cá. Eram os objetos direto e indireto. A regência colocou-os lado a lado com a oração, um de cada vez, para testar sua afinidade. Primeiramente, o objeto indireto:

-Cometeu A UM ASSASSINATO, POR UM ASSASSINATO, COM UM ASSASSINATO... Não, não. Isso não está bom!

-Não mesmo.

Concordou a concordância. Depois, foi a vez do objeto direto:

-Cometeu um assassinato... Cometeu um assassinato... Isso, isso! Muito bem! A pronúncia está perfeita!

Foi aí que a confusão piorou de vez. A Fonologia, ouvindo aquela conhecida afirmação, começou a berrar com todos os sons:

- O quê? A pronúncia está perfeita? Sim, sim, a pronúncia está perfeita! Segurem os dígrafos e fonemas! Eles não podem fugir, não deixem que as sílabas se separem, não deixem que elas se se-pa-rem!

Todos os termos essenciais, integrantes e acessórios lançaram-se sobre o pobre período simples. A Sintaxe puxava o sujeito pra cá e o predicado pra lá. A morfologia arrastava os substantivos e artigos linha abaixo, querendo jogá-los numa redação dissertativa. O verbo - sempre regular - desta vez não teve tempo pra nada. Acabou perdendo todos os seus modos. A fonologia estava quase desvozeada de tanto gritar “eufonia, eufonia”, enquanto a semântica exigia uma explicação racional para tudo aquilo!

O professor de português, tentando salvar alguma coisa da oração, implorava alguma coisa a alguém num vocativo suado e apelativo:

-Ordem, ordem às palavras no tribunal, ordem, ó palavras!

Mas era tarde demais. Ao final da confusão, restaram radicais e desinências jogadas aqui e acolá. O substantivo, furioso, mostrava-se em sua forma mais primitiva - FÚRIA. Ao coitado do predicado não restou mais que um verbo no infinitivo ainda a ser conjugado. O adjetivo, completamente desqualificado, se juntou aos artigos que caçavam desesperadamente qualquer palavrinha solta para substantivar. A semântica não entendeu nada. Não havia mais oração para se analisar, nem enunciado coerente que fizesse algum sentido. A frase, (a título de informação), já tinha ido embora há muito tempo.

Foi quando lá, ao longe, tocou o sino da escola. As crianças correram pela porta afora, ansiosas pelo intervalo. O velho professor fechou seu caderno de anotações muito triste, cabisbaixo, deu um suspiro profundo e caminhou em direção à próxima turma. Na sala de aula, restaram apenas as moscas e algumas palavras meio apagadas no quadro-negro, dizendo:

Um sujeito indeterminado cometeu um assassinato.