Feito cegos

Ao longe, o sol tímido banhava as terras no horizonte daquele dia frio. Assim, abrindo caminho por entre as minúsculas pedras calcárias que faziam a vez de chão, ele seguiu em direção àquela acalentadora promessa de calor. Já era outono, e os ventos gélidos do norte castigavam em sua romaria, punindo ainda mais aqueles que vindos de outras ter-ras não nasceram sob suas bênçãos. Sem poder correr, arrastava pesadamente seu ventre pelo chão, fazendo as pequenas rochas estalarem com o atrito de sua passagem. Devagar, podia ver o seu destino crescendo e afastando as sobras de seu entorno. Foi então que o inesperado surgiu. Estando a poucos centímetros da superfície dourada pelo sol, uma força invisível o impediu de continuar. Estagnado, deslizava as garras de suas patas buscando ultrapassar o obstáculo, mas fugia de seu entendimento a maneira de superar a incógnita que encontrara. Contudo, não estivesse limitado ao seu mundo particular e seu trabalho hercúleo, se espantaria ao ver a imagem de um grande olho esverdeado toman-do forma na superfície levemente convexa de seu aquário.

—Papai, o que ele está fazendo? – perguntou o garotinho de cabelos crespos acobreados enquanto olhava confuso para o pai. Afastava-se da vitrine da Loja de Animais Exóticos de Paravell, mantendo rijo o indicador enluvado na direção do pequeno jabuti.

—O quê? – o pai do garoto, um elegante homem em farda de coronel, franziu o cenho enquanto encarava o filho. Sempre que iam ao centro da cidade, o menino choramingava para ver as novas aquisições do senhor Paravell, um outrora afamado cigano-velejeiro. Embora houvessem morrido seus dias errantes em alto mar, sua antiga vida lhe deixara como herança uma boa relação com uma soma invejável de comerciantes das Ilhas Valásquias, Corais de Queda, Bolsão do Sul e além. “É como o mundo todo, só que em uma sala”, costumava dizer o menino encantado ao pai. Então, estreitando mais os olhos e fazendo sombra com a mão espalmada sobre a testa, viu o pequeno réptil roçando a superfície lisa de seu aquário. – Fala do jabuti? Bem, filho, nós e ele temos nossas diferenças. Algo menos evidente do que o casco duro. Veja, nosso corpo conse-gue produzir calor, já o deles, não. Tudo bem que usamos nossos casacos e luvas, vá lá, mas o calor inicial que tudo isso mantém é somente nosso. Por isso, com o frio, ele pre-cisa do sol. É isso que está tentando fazer, vê? O sol chega apenas até esta ponta do bal-cão, não mais do que isso.

Tomando uma postura filosófica, o filho levou o indicador aos lábios e por fim senten-ciou:

—Então enquanto somos como caldeiras, eles agem como tubulações; são frias até que chegue uma baforada quente...

—Isso, isso, pode-se dizer que figurou bem a coisa toda, poeta. – fez coro o pai, entoan-do uma leve gargalhada para filho pensador.

Ainda intrigado, o menino aproximou-se da vitrine até seu hálito embaçá-la.

— Mas ela não vê o vidro? – continuou, lançando um olhar abismado para o pai, como se o animal estivesse fazendo uma estupidez óbvia.

— Ver ela consegue, com toda certeza. O problema é que ela não o entende. – o pai encerrou o riso e, ajoelhando-se, jogou o braço sobre o ombro do garoto e prosseguiu. – Você entende o vidro, filho, assim como eu, sua mãe ou qualquer estranho que pegue-mos nesta rua. Mas isso se deve unicamente por um fato, o de já sermos familiarizados com ele. O seu uso corriqueiro já o banalizou. Já a este jabuti, o vidro é algo extraordi-nário, e o seu entendimento, inimaginável.

—Mas papai, se ele não sabe o que é o vidro, ao menos percebe que está preso, não é?

—Bom, acho que sim e que não, filho. Agora ele deve saber que está preso, mas isto apenas porque sente o confinamento. Sentir é a palavra chave. Assim que essa sensação o abandonar, tão logo ele tome outro rumo, esquecerá que está aprisionado até o instante em que se dê com alguma outra parede do aquário. Não faça esta cara, no fim isto não é uma coisa ruim. Diria até se tratar de uma bênção! Só com essa memória curte ele con-segue viver neste universo fechado sem morrer em agonia. Entenda, filho, que pare ele, aquilo é todo o seu mundo e, até onde se lembra, é imenso.

Os dois ficaram mudos, apenas olhando o palpitar do papo do réptil enquanto ele lan-çava um olhar vago em direção à luz.

—Já está ficando tarde. - disse abrupto o pai, enquanto conferia seu relógio de cordas e se levantava. – Você ainda quer me acompanhar até o Conselho da Armada Marina Re-al, não quer Arrin?

***

— Quais as ordens, Capitão? – quem perguntava era um homem hirsuto de sobrancelhas espessas e longas suíças, o condecorado Frederick de Ravos. Era um oficial de meia-idade e poucas palavras, mas também com lealdade desmedida. Trabalhava sob o comando do Capitão Arrin Rosaflama desde o início sua vida marinha, ascendendo de auxiliar da casa das máquinas a Imediato no percurso. Neste ínterim, ganhou um enevo-ado grisalho sobre os lisos cabelos negros e um brilho afiado nos olhos castanhos. Con-tudo, pode-se dizer que as mudanças físicas foram das mais irrelevantes comparadas às demais. Com a vida solitária de navegador, o respeito mútuo e a admiração por seu ca-pitão gravou em seu peito uma relação que, não fossem as formalidades, aproximar-se-ia muito a de pai e filho.

—Qual nossa altitude, Ravos? – inquiriu o homem com ar soberano enquanto olhava absorto para o horizonte apoiado na amurada sobre a cabine do navio. O tempo podia ter varrido quase que toda a excelência do físico do velho Rosaflama, mas seu porte manti-nha-se inabalável. Há muito seus cabelos encrespados haviam abandonado o seu rubro original e adotado o branco, mas isto apenas serviu para lhe aplicar uma aura ainda mais reverente. “No oceano, não serão seus títulos que te trarão respeito, pois a Corte não o segue mar adentro.”, dizia sempre à Ravos. De estatura elevada, um pouco afetada pelo curvar da idade, e uma barriga proeminente, facilmente se destacava onde quer que esti-vesse.

—Mil e seiscentos pés, senhor.

—E os tanques?

—Começamos a usar o terceiro. E com o calor que temos hoje, Mestre Zap acredita que não precisaremos descer ao mar para poupar carvão.

—Excelente. Temos pouco combustível, Ravos, muito pouco. Quase nada, considerando as léguas a nossa frente. Contam que encontremos novas ilhas para encher os cofres falidos do Império com carvão de qualidade, mas esperam que cheguemos a estes mes-mos longínquos lugares com as migalhas que lhes sobram no fundo da gaveta. – soltou um riso engasgado. - Aqueles engomados da Corte pensam que gastamos atravessando o oceano o mesmo que seus conversíveis queimam rumando aos bordéis quando vão visitar as digníssimas senhoras suas mães. Ao inferno com seus conversíveis!

—E terão carvão para tanto? – retrucou irônico o Imediato.

—Ora, como não? Ofereço de bom grado do meu, nem que precise seguir o resto do caminho a remo! Mas se estes lordes em terra já são inúteis, não será no mar que lhes acharemos algum valor; deixemos esses burocratas de lado. Não faço questão de procu-rar ofensa maior do que esta, burocratas, porque para mim isto por si só já é algo tene-broso! Agora prossigamos, prossigamos. Por hora, mantenha a altitude. No fim da tarde, quero que abra uma válvula de escape a cada meia hora para o navio descer até a chega-da da noite. O mar está calmo, iremos aproveitar isto na hora do sono. Não quero conge-lar nestas alturas quando o sol se puser. Mestre Zap agradecerá pelo carvão salvo feito a viúva sovina que casa a última filha. Quanto à água, convoque os homens ao convés para bombear as cânulas. Não gosto de navegar com menos da metade dos tanques cheios. Entendido?

—Absolutamente, senhor.

—Está dispensado.

Com um aceno rápido e preciso de cabeça, o Imediato Ravos virou-se sobre seus cal-canhares e desceu as escadas em direção aos níveis inferiores da meia nau. Logo estaria de volta com os marujos para recolher a água do mar. Neste meio tempo, o Capitão Ro-saflama entregou-se novamente à contemplação do Oceano visto do alto, perdendo-se na áspera maresia que lhe salgava o rosto. Provinha de uma longa família de navegado-res, sendo desta a quinta geração juramentada aos serviços da Rainha. Juntamente, era também o último praticante da tradição. Aficionado pelos mares e a liberdade ali incluí-da, nunca havia firmado casamento com as senhoras da nobreza, embora semeasse bas-tardos pelos vários portos em que descia sua âncora. Contudo, nem que despejassem todo o sangue destes descendentes em frente ao trono, a Coroa jamais reconheceria ali um único Rosaflama que fosse, e estes jamais se vestiriam com as armas da rosa em chamas de sua família. Bastardos não se dignificavam aos serviços da realeza, e o má-ximo que lhes podia ser garantido era alguma dignidade escondida, repleta de ares de misericórdia.

Enquanto brincava melancolicamente com sua barba bem aparada, gostava de pensar que seus filhos de alguma forma também viviam do mar. Podiam ser pescadores, co-merciantes ou mesmo corsários, sendo que os últimos ganhavam espaço especial em suas orações, com o adendo de que nunca se encontrassem em serviço. A imagem dos filhos era uma constância que a cada dia tomava mais de seu tempo. Há muito nutria um desejo que cada vez ganhava mais espaço em seu âmago, e foi justamente pouco antes de zarpar nesta missão, que havia decretado ser sua última, que firmou sua senda. De-pois desta viagem, buscaria e encontraria todos os seus filhos. Todo mundo merece co-nhecer o pai – pensou sentindo o gosto salgado em seus lábios – mesmo que este fora do mar valha menos que um linguado.

Lembrou-se da pequena Sara, concebida em uma noite de farra na Baixa Babilônia. Soubera de sua existência pela mãe, uma estalajadeira rechonchuda e um tanto estúpida, apenas sete anos após seu nascimento. Também ouvira sobre outros dois garotos em Corvote, frutos de uma temporada de tempestades que o impediram de deixar o arquipé-lago. Estava certo de que havia outros tantos, mas os longos anos de prática o negavam qualquer precisão.

Durante os últimos vinte e cinco anos, Capitão Rosaflama comandava a Galé Agulha Sereia, a embarcação mais veloz da Frota Imperial. Como o nome sugeria, o navio era longo e estreito, com a proa ornamentada com um esporão de uma sereia em cobre poli-do. Em cada uma das laterais de seu esbelto casco de carvalho, duas grossas tubulações douradas no formato de dragões marinhos serpenteavam no sentido da proa rumo à po-pa, onde as quatro goelas metálicas abriam-se para expelir os vapores dispensados pelo maquinário. No convés, três grandes mastros de cobre erguiam-se imponentes alimen-tando o imenso balão que mantinha o navio no ar. Por dentro destes pilares ocos, os vapores transitavam entre as caldeiras e o balão. Este, por sua vez, era feito de couro de foca-urso e possuía uma superfície lisa e acinzentada extremamente resistente, represen-tando dois terços do tamanho de toda a embarcação. Em seu topo, grandes painéis metá-licos, um equipamento de última geração desenvolvido pelo Departamento de Ciência e Aprimoramento Tecnológico, capturava o calor do sol para ser reutilizado no aqueci-mento da água dos motores, levando a uma significativa economia do carvão usado nas expedições. Por fim, grossas cordas de tendão serpenteavam a couraça inflada e ancora-vam-se por toda a amurada e pontos no eixo central do navio.

O barulho das passadas apressadas sobre o convés retirou o Capitão de seu transe. Como havia ordenado, boa parte de sua tripulação encardida de fuligem tomava posição junto às bombas coletoras. Os aparatos eram dispostos em ambos os lados de toda a extensão da embarcação em intervalos contínuos, tal qual era feito com os remos das galés dos antigos povos.

—Descer cânulas! – ordenou o Imediato.

Assim, cada dupla de marujos desenrolou uma longa tubulação recolhida no topo do lado externo do casco, feito caracóis gigantes, e laçaram suas extremidades no oceano. Vendo de longe, o navio voador parecia um polvo gigantesco entregue aos desígnios dos ventos, pendendo suas dezenas de tentáculos moribundos ao roçar das águas, algo que faria os religiosos aclamarem o despertar de Leviathan. Da escada espiralada dos níveis inferiores da galé, despontou a cabeça calva de Mestre Zap. O chefe de máquinas, um homem corpulento e pescoço curto, escaldara um dos olhos em um acidente com uma caldeira em sua infância, de modo que seu olho vedado pelas pálpebras torradas logo lhe rendeu o apelido maldoso nas noites de jogatinas de truco. Tomando em mãos um tambor, ritmava a frequência de bombeadas que as duplas faziam nas manivelas das bombas coletoras, hora um aplicando seu peso sobre a mesma, hora outro. Seria esta a sinfonia que embalaria mais uma jornada.

***

— Senhor, senhor, acorde, por favor! – o Imediato Ravos sacudia freneticamente seu superior tomado de um pavor que não combinava com seu gênio. Quando conseguiu os primeiros sinais de despertar do capitão, prosseguiu em êxtase. – É lá fora. Avistaram algo. Na verdade, deixaram de avistar! Mas o que é... Aquilo só pode... Não, não, venha, o senhor verá. Céus, por que insistiu tanto em seguir caminho depois de dois meses sem vermos sinal de terra?

Surpreso, Capitão Rosaflama sentou-se em sua cama. Nunca havia ouvido uma palavra de discordância sair da boca de Ravos, e por um instante ficou acuado e sem reação.

—Esqueceu com que fala, Imediato? – retrucou ríspido, retomando sua posição.

—Perdão senhor, perdão, mas aquilo...- acariciou as têmporas enquanto maneava a ca-beça. –Não, não, não. Não é possível. Escute, capitão... por acaso já ouviu que o mar acaba?

—Pare com enigmas, Ravos. É noite, mas já passou da hora dos contos de fada. É claro que o mar não acaba. Se seguirmos sempre em frente, em algum instante chegaremos ao ponto de onde partimos, feito um anel.- respondeu impaciente.

—Sinto, senhor, mas algo lá fora me diz que o senhor precisará encontrar um bom ouri-ves, pois creio que quebraram o tal anel.

Instigado pela voz de pesar de seu imediato, Rosaflama saiu de seu de sua cabine sem ao menos se importar em vestir o uniforme, o que de maneira alguma chamou a atenção de seus subordinados, visto que todos naquele instante apenas tinham olhos para a aber-ração natural com a qual se deparavam.

Logo a sua frente, o oceano morria em uma linha reta, despejando seus bilhões de litros de água em uma cascata colossal que corria até se perder de vista a norte e a sul. O velho Rosaflama seguiu boquiaberto até emparelhar-se com a sereia metálica que vigiava muda a proa da nau. Esticando o pescoço, tentava na ponta dos pés ver o que havia no outro lado. Na escuridão da noite, pouco conseguiu delimitar além do espumar da água.

—Capitão! Capitão! Venha ver isto! É o sol! Vejo o sol! – berrou de súbito um dos ma-rujos que usava uma luneta enquanto disputava espaço com os demais companheiros empoleirados nos mastros.

Em um instante, abriram espaço para o capitão se instalar e lhe ofereceram a luneta, para poucos instante após ele deixar ela escapar de seus dedos estupefatos. De fato, o sol estava ali, imenso, encoberto pelo horizonte, iniciando sua jornada rumo a leste por baixo do plano terrestre. “Ela era plana, afinal? Este tempo todo, plana?”. O homem não podia acreditar.

—E pensar que ele não se apaga nem passando por essa água toda. – murmurou um dos marujos com toda a sua brilhante ignorância.

Então, com um estalo, o capitão deu-se conta da grandeza de seu achado, além dos óbvios entendimentos do funcionamento do mundo que dali nasceriam. Do alto do mas-tro, sorria.

—Senhor, não devemos nos afastar? Estamos muito próximos da borda! – gritou de baixo Ravos, que o tempo todo manteve as mãos firmemente fechadas sobre o batente da porta da cabine, como se a qualquer instante pudesse ser tragado pelo vazio.

—Afastar? Não, Ravos, não! Você não vê o que encontramos? Imagine o que acontece-rá quando o sol passar por baixo desta cascata do oceano! Será mais vapor do que toda a nossa ridícula humanidade já produziu! Sim, imagine canalizar toda esta força! Aqui se esconde a fonte de energia infinita! Nunca mais usaríamos um carvão que fosse. Aí sim, a majestade poderia ficar com todo o que tenho. Não Ravos, temos de ficar. Precisamos ver isto. Conquistaremos mais do que se encontrássemos mil ilhas.

E mesmo perante os protestos iniciais, todos por fim calaram-se quando se viram ali-mentados pela mesma curiosidade do capitão. Acompanhavam silenciosos a caminhada reversa do astro-rei, até que finalmente ele escapou do campo de visão geral. “Quase... quase.”. Porém, em um estalo, uma imensa bolsa de vapor rompeu rente às margens do mundo, em uma força titânica que borbulhava a água do mar e varria as nuvens. Como uma folha ao vento, a Galé Agulha Sereia foi tragada pela força e içada aos limites do céu, despida de todo e qualquer controle.

***

O sol correia por trás de uma cortina de água. Acima da linha azulada, um céu noturno se abria. Ele sentia que era ali que devia estar, procurando seus filhos depois de encon-trar mais um punhado de carvão. Correu a mão pelo chão e afundou os dedos no couro do seu antigo balão. Tentou levantar-se, mas não conseguiu. Por isto, gritou, mas não encontrou resposta. Sem forças, arrastou seu ventre ensanguentado sobre a superfície cinzenta do balão vazio. Encontraria uma forma de subir novamente até as margens de seu mundo.

—Papai, o que ele está fazendo?- indagou uma estranha voz entoada em três tons simul-tâneos.

Capitão Rosaflama gelou e, em meio ao pavor, conseguiu apenas virar o pescoço e procurar o interlocutor daquela voz. Próximo às carcaças da Galé Agulha Sereia, duas criaturas altas, a maior com cerca de seis metros, e a segunda com metade disto, olha-vam-no com seus rostos pálidos triangulares e lisos. Seus peitos diáfanos exibiam como em uma vitrine seus estranhos órgãos luminescentes, que retorciam-se feito magma. Podia ver que uma das criaturas apontava seus longos e afinados dedos brancos em sua direção. Sem fôlego, a voz calou-se em sua garganta enquanto sentia as calças molha-rem-se.

—Parece que este escapou, filho. Mas ele precisa voltar. Vê? Não é como nós, que pro-duzimos todo o calor de que precisamos. Eles precisam de uma fagulha para incendiar seus espíritos. É aquilo que os mantém quentes. – respondeu com uma voz que parecia entoada por meia dúzia de pessoas a outra criatura, indicando com a cabeça o mundo plano que se abria no horizonte.

—Podemos colocá-lo de volta lá? – prosseguiu o filho, ajoelhando-se para ver de perto o homem.

—Ainda não. Agora ele saberia o limite de seu mundo, e assim, se sentiria inevitavel-mente preso. O confinamento pode quebrar um ser de muitas maneiras.

—Mas então ele nunca voltará? – prosseguiu modulando uma voz tristonha.

—Não se preocupe, filho. Foram agraciados com uma memória curta. Veja, este já está se esquecendo.

O palpitar do coração do capitão contra as costelas quebradas não aguentou por muito tempo, e logo encerrou sua tarefa. De olhos estatelados para o céu, deu um último suspi-ro, pensando nos filhos que nunca conheceria.

Enquanto isto, em um continente longínquo perdido no azul daquele mundo plano, a filha de uma estalajadeira e de um pai sem rosto aninhava-se no peito de seu marido após o coito. Como ocorria tantas vezes, olhava para a noite pensando no pai nobre que nunca conhecera. Mal sabia que naquele instante uma velha alma havia atravessado o oceano e encontrado seu ventre. Em um lampejo, fez-se vida.