A Mística Irmandade dos Garotos Carecas

Naquela manhã, um céu cinzento fazia as vezes de mortalha para a cidade entorpecida. Cortando vielas e desbocando em um morno trânsito na avenida principal, mãe e filho vagavam adiando o inevitável. Enaltecendo o palpável silêncio presente no carro, músi-cas adocicadas dos anos 80 insistiam em tocar na programação matutina da rádio.

— Querido, juro que ficarei com você todo o tempo que puder.- disse a mulher enquanto usava a mão direita para afagar os cabelos do filho.

— Aham.- retrucou ríspido o garoto, desvencilhando-se da carícia.

— Te contei que conversei com o Dr. Figueira? Ele foi bem compreensivo. Disse que me liberaria sempre que precisasse, contanto que cubra as horas depois. - prosseguiu a mãe, recompondo-se enquanto tentava ignorar a rebeldia no ato do filho.

— Ah.

Após a tentativa de diálogo, a quietude retomou seu posto. Recluso no canto do banco, o menino tamborilava com os dedos o vidro gélido do carro, deixando pequenos fan-tasmas em sua superfície embaçada. Já haviam serpenteado pela cidade por quase meia hora quando o lúgubre telhado do complexo finalmente rompeu o horizonte. Ao vis-lumbrá-lo, o garoto endireitou-se no banco e disparou um olhar piedoso em direção à mãe. Incapaz de encará-lo, mais uma vez os olhos maternos já gastos pelo choro se ma-rejaram, enquanto ela instintivamente mordiscava o lábio inferior.

— Nunca vou te abandonar, Tomás. Nunca.

Superando um pop-brega que tocava, as sirenes das ambulâncias encheram o carro.

***

Não foram precisos muitos dias de internação para que Tomás considerasse aquela a pior experiência de sua curta vida. Para sua mãe, o mesmo. Nunca se sentiu tão ferida quanto no dia em que seu filho foi diagnosticado com um estágio avançado de leucemia. Desde então, perambulava apática por sua vida, sufocando uma angústia que não permi-tia transparecer ao garoto. Ele, por sua vez, tinha seu entendimento limitado pela ino-cência de seus cinco anos de idade. Portanto, aos seus olhos, tudo não passava de muito alarde para uma doença passageira, como uma catapora sem pintas que bem podia ser tratada em casa. Justamente por isto, custou muito a sua mãe para que ele entendesse a importância de sua estadia no hospital, embora ainda assim a mudança não fosse nem um pouco bem aceita.

Com o passar do tempo, as queixas do jovem foram gradativamente se reduzindo. De fato, ainda eram constantes as reclamações a respeito dos medicamentos e da péssima comida, a qual o garoto insistia em dizer que eram feitas com roupas velhas dos outros internados, mas bastou pouco para que a misteriosa atmosfera do Hospital Santa Helena roubasse a atenção de Tomás. O antigo prédio, que outrora havia servido de monastério, possuía paredes que transpiravam segredos, e até mesmo pareciam sussurrá-los durante a noite. Era de fato um labirinto interminável de corredores, ladeado por portas que le-vavam a quartos, leitos, salas e, interminavelmente, outros corredores. Graças a essa instigação arquitetônica, o espírito aventureiro do menino fazia-o se render aos prazeres de explorar aquele sítio arqueológico sepultado por herméticos ritos eclesiásticos. Para o menino, tudo ali cheirava estranhamente a cobre e parecia ter uma história tão antiga quanto o próprio mundo.

Apesar de o ambiente do hospital por si só fasciná-lo, outro mistério inquietava Tomás desde seu primeiro pernoite. Esse enigma estava encarnado na figura de uma garotinha de olhos estalados e amendoados, rodeados por uma pele ébano, e, pelo que bem se lembrava, encimada por orelhas longas e felpudas. Por mais de uma vez o garoto viu de relance o vulto semi-animalesco esgueirando-se na borda da porta de seu quarto. Sua mãe, por sua vez, não havia visto a figura em nenhuma dessas noites, o que Tomás logo identificou como uma óbvia inaptidão adulta à visão de criaturas mágicas.

Em meio às aparições e explorações, o tratamento adotado para sua doença foi apenas mais um entre tantos elementos desconhecidos. Nunca havia entendido a necessidade da internação e de tantos medicamentos, mas o ápice de seu estranhamento veio no dia em que lhe disseram que teria seus cabelos raspados. O processo foi feito frente a um fervo-roso protesto, apenas havendo sinais de rendição no instante que sua mãe lhe disse com um sorriso de porcelana que, quando vivo, seu pai também ostentava uma cabeça lisa quando criança, o que de fato era apenas uma mentira conveniente apoiada na falta de registros fotográficos da infância do falecido. Contudo, o quê o garoto não sabia era que aqueles fios de cabelo perdidos no chão seriam o passaporte para todo um novo mundo.

***

Uma teia de aranha rarefeita escondia fragmentadamente o céu âmbar daquele fim de tarde. Com o dedo, Tomás mapeava a nova área exposta de sua anatomia. Um vento furtivo corria por sua nova calva, trazendo uma estranha refrescância com a qual nunca havia se deparado. Ainda não sabia ver horas, mas julgou estar próximo do jantar. Em pouco mais de uma hora sua mãe chegaria para passar a noite com ele, bem como fazia todos os dias. Sentou na cama e debruçou-se sobre os joelhos encolhidos tentando con-trolar o tédio. Sem conseguir vencê-lo, decidiu perder-se novamente naquele labiríntico hospital. Porém, no ínterim entre a idéia inicial e a ação em si, viu de soslaio a enigmática e miúda figura orelhuda parada em sua porta.

— Olá. - disse a garotinha com um honesto sorriso perolado. Agora, sob a luz do entar-decer, Tomás pode perceber que ela usava uma extravagante touca de pelúcia de onde saltavam duas grandes e róseas orelhas de coelho. Era só uma menina, afinal.

—Oi. - respondeu ressabiado. Na verdade, tinha muito o quê perguntar, mas o inespera-do da situação acabou por roubar-lhe qualquer iniciativa.

—Você está sozinho?

—Mamãe vai demorar um pouco, eu acho. Mas quem é você? - perguntou por fim, como se a curiosidade vencesse o receio.

—Eu? Pode me chamar de Bunny.

—Mas isso não é nome de gente. - ponderou enquanto repassava mentalmente a rala lista de nomes que já havia ouvido. -Sua mãe que escolheu?

—Eu que escolhi. Mas e você, como se chama?

—Tomás. Me chamo Tomás.

—Não parece nome de criança. - torceu o nariz.

—Não vou ser sempre criança mesmo. – respondeu Tomás vitorioso.

—Faz sentido... – como que perdendo o interesse no assunto, ela olhava energeticamen-te os cantos do quarto.

— Era você quem ficava me espionando, não era? – perguntou enquanto descia da cama.

—Ora, eu não espiono ninguém!- retrucou indignada. - Estava esperando.

—Esperando? Esperando o quê? – surpreendeu-se o garoto.

—Sua careca. - apontou a menina. – Agora vamos, os outros estão aguardando. -disse por fim enquanto tomava a mão de Tomás e o puxava corredor afora.

—Outros? – disparou ele, oferecendo resistência ao convite da garota.

—Majestade e Gatuno. Agora vamos logo ou eles me dão uma sova pela demora!

Rendido pela inesperada convocação, Tomás seguiu a trilha ditada por Bunny pelos longos corredores do hospital, preocupados apenas em desvencilhar-se dos olhares das enfermeiras. Mal sabiam eles que, na verdade, elas sempre os seguiam em uma secreta cumplicidade, zelando por sua segurança e rindo de seus jogos e, assim, enquanto os dois passavam, se limitavam a fazer vista-grossa. Logo após contornarem a maternidade, o menino notou que a quantidade de quartos em funcionamento era cada vez menor, bem como o movimento mais escasso. Já no fim do corredor, tomaram uma escada para o segundo andar, onde se deparou com um setor inteiro abandonado, uma ruína ilhada pelo esquecimento resultante de uma reforma que nunca recebeu toda sua verba.

—Vem, estamos chegando. Não precisa se preocupar com as enfermeiras agora. Nunca ninguém vem aqui. Ouvi falar que essa parte do hospital nunca funcionou.

O ar arenoso e denso denunciava o abandono do local. Móveis carcomidos eram empi-lhados a esmo em salas que há muito tempo exerciam a função de depósito. Em meio à disposição caótica, Bunny conduzia Tomás por um percurso entre passagens por baixo de mesas tombadas e escaladas sobre camas esqueléticas. Após superar um último a-montoado de lençóis embolorados, deram com uma porta vedada por uma fina cortina de contas coloridas.

Mantendo a dianteira, Bunny seguiu para dentro do ambiente, tendo Tomás em sua retaguarda amparado por passos vacilantes. O cômodo era consideravelmente amplo, devendo ter servido como dormitório em tempos passados. Estreitas vidraças dispostas em intervalos constantes ao longo das paredes derramavam um ouro queimado no lugar. Do teto, fios de nylon pendiam sustentando estrelas e astros de papel colorido, forman-do um belo e fluido firmamento regido por uma brisa sorrateira. No centro do quarto, grandes vasos de jasmins azuis mesclavam seu violeta com o dourado vindo das vidraças. A assimilação de todas as nuances do mágico cômodo acabou fazendo com que, apenas quando já estava no centro do quarto, Tomás visse dois garotos sentados ao lado da por-ta pela qual passara.

O maior deles, carregado de um ar taciturno, devia ser um ou dois anos mais velho do que Tomás, o que passaria despercebido não fosse sua altura, visto que um certo raqui-tismo lhe garantia um porte mais debilitado do que o dos demais. Seu rosto magro e pálido parecia ganhar proporções ainda mais evidentes graças a uma touca negra com orelhas felinas que usava. Ao seu lado, o outro garoto mantinha um ar impaciente en-quanto batia o pé no chão. Sua estatura menor denunciava que sua idade deveria ser a mesma de Tomás, embora fosse um pouco mais gordo. Por sua vez, em sua cabeça havia uma grande coroa de espuma, de modo que por pouco não lhe engolia os olhos.

—Até que enfim!- bracejou o menor inflado de impaciência.

—Tomás, este é o Majestade. Não ligue muito, como o nome já diz, ele tem um reino inteirinho na barriga. E este é o Gatuno.- apontou a garota enquanto os outros dois en-saiaram um aceno.

—Oi... – receoso, Tomás retribuiu a saudação. –Mas... o que é um gatuno?

—Era do que a vovó chamava meu pai. Acho que tem a ver com um gato grande, ou coisa do tipo.- explicou ponderadamente o mais velho, ostentando a sabedoria de seus poucos anos.

—Bom, já estamos bem de apresentações. Tomás, acho que a Bunny já explicou por que te chamamos. Está pronto para a Irmandade? – disse Majestade cheio de pompa.

—Mas...o quê? – sem saber o que fazer, Tomás olhou Bunny na busca de uma resposta.

Majestade, como que fazendo coro, também lançou um olhar firme para a garota, re-preendendo-a por não ter feito um bom trabalho. Tomou fôlego e recomeçou:

—Sabe, Tomás, antes de tudo, você precisa saber que nós somos os heróis deste hospi-tal! Protegemos todos dos duendes de vidro.

—Duendes?

—De vidro. –completou Majestade, ensaiando uma voz tenebrosa- Os duendes de vidro são da pior espécie. Moram do outro lado do espelho, afundados em um poço no meio de uma floresta queimada. De noite, eles saem à luz da lua e passam para o lado de cá.

—Para que?- nesse momento, Tomás encolhia-se nos próprios ombros já adivinhando a resposta.

—Para sugar a vida dos doentes!- sibilou Majestade enquanto comprimia os olhos.

Boquiabertos, as outras crianças ouviam a história como se fosse inédita, soltando gri-tinhos de ansiedade.

—E como fazem isso?

—Comendo os seus cabelos, oras. Uma pessoa que tenha um fio que seja comido por um duende de vidro está morta na certa.

—Mas então lidar com eles é muito perigoso! Vocês não têm medo de que comam seus cabelos?- exaltou-se Tomás enquanto olhava para os outros.

Os três amigos se entreolharam e, com um riso abafado, retiraram os ornamentos de suas cabeças, revelando, para surpresa de Tomás, três lisas carecas.

—Porque acha que cortaram nossos cabelos? – prosseguiu Majestade.

Tomás deu de ombros.

—Para combatermos eles, seu cabeça oca! Sem cabelos, não conseguem nos pegar.

—Não seria mais fácil então cortar o cabelo de todo mundo?- ponderou Tomás.

As outras três crianças gargalharam da ingenuidade do menino.

—Os adultos são muito peludos. Nunca daria certo.- disse Bunny, torcendo o nariz.

—Minha avó até tinha bigode.- soltou Gatuno.

—Mas como você combatem eles?- continuou Tomás, ignorando o comentário anterior.

—Fácil. Flores! - Majestade gesticulou para o jasmineiro azul que dominavam o centro do quarto.- Por isso que os visitantes sempre trazem flores para quem está internado. Elas espantam os duendes de vidro! Mas nem todos contam com amigos ou parentes. E somos nós que levamos flores para estes que não têm quem os visite.

—Todas as noites, pegamos algumas destas e espalhamos pelo hospital.- Bunny colheu um ramalhete da planta e levou-a para Tomás. -Somos poucos, e cada dia parece que as pessoas estão mais sozinhas... Precisamos de ajuda, Tomás. Gostaríamos entrasse para a Mística Irmandade dos Garotos Carecas. Aceita?

Fascinado pela idéia do fardo heróico, Tomás viu naquela oportunidade a morte defini-tiva para todo o tédio que encontrava em seus dias de internação.

—Mas é claro!

—Ótimo! Gatuno, a caixa. Vamos começar o batizado.- proferiu imperioso Majestade.

—Batizado?

—Claro. Você precisa de um novo nome e de um chapéu. Ajudam a enganar os duendes. Gatuno, a caixa!

Poucos segundos depois, Gatuno surge arrastando com dificuldade uma grande caixa de papelão, preenchida com os mais variados tipos de adornos. Por fim, deixou-a na frente de Tomás e em seguida retirou-se para recuperar seu fôlego curto.

Vasculhando os objetos com grande interesse, o garoto ia experimentando em sua ca-beça chapéus, toucas e boinas dos mais variados estilos e cores. Foi então que, perdido no fundo da caixa, encontrou uma grande cartola cortada por uma faixa branca em sua base. Sem ter dúvidas, retirou-a da caixa e vestiu-a.

—Essa. – confirmou alegremente.

—Agora o nome! – animou-se Bunny, batendo palminhas.

—Mágico?- arriscou Gatuno ofegante sentado no canto do quarto.

—Não, não. Muito óbvio. Vai ser Abracadabra.

—Esse é muito comprido e enrola a língua, Majestade!- Bunny andava em círculos en-quanto pensava.

—E que tal Salabim?- disse por fim Tomás.

—Salabim! É perfeito!

Assim como Bunny, os demais concordaram com a escolha.

—De hoje em diante, você será Salabim. Bem vindo à Irmandade!

—A propósito- interrompeu Tomás- somos só nós quatro?

Os amigos trocaram olhares na dúvida de quem daria a resposta. Como era de se espe-rar, Majestade tomou a iniciativa.

—Nem sempre. Acontece que muitos vêm e vão. Alguns vemos indo embora do hospital com os pais. Outros somem de repente. Pelo que sabemos, isso acontece quando se quebra um duende de vidro. Ao estourar um duende, toda a vida roubada que ele carre-ga escapa. Nesse instante, em um piscar de olhos, a criança some daqui e aparece na sua casa, sarado de tudo que tenha.

—Então quem quebra um duende está livre?

—É. Basicamente é isso.

—E vocês já viram algum duende?

—O Gatuno deu de cara com um certa noite, não é, Gatuno?

O garoto anuiu, mantendo os olhos estalados de horror.

—Era uma noite fria. -prosseguiu Majestade. -Estávamos correndo os quartos com as flores, e nos separamos para dar conta do montão de gente que tinha chego. No inverno eles parecem não parar de chegar. Gatuno estava nos arredores da maternidade, na hora quase sem movimento. Foi então que ouviu. Clec... clec... clec...

Gatuno movimentava as mãos compassadas pelo barulho dos passos vítreos.

—Então o monstrinho cruzou o corredor. – continuou Majestade.

—E não tentou quebrá-lo, Gatuno?

—Não...tive coragem. Quando dei por mim estava travadinho. – suspirou. - Não estava pronto. Não era minha hora, acho.

Um silêncio constrangedor, pela primeira vez, caiu sobre o quarto.

—Vamos deixar de papo. Tome, novato. É hora de trabalhar. - disse Majestade puxando Tomás para perto da planta. - Veja, estas florzinhas grudam na roupa. Vamos, pegue um punhado. Depois só temos que colá-las nos lençóis do quartos. Uma só já basta. É um excelente repelente de duendes. Só tome cuidado pra nenhuma enfermeira te pegar! Por enquanto, apenas nos siga. Elas nunca nos vêem.

***

Por meses, Tomás esperava sua mãe cair no sono para vestir sua cartola e correr pelo hospital como Salabim e, junto com os amigos, implantar sorrateiramente um jasmim azul nos leitos solitários. Com o tempo vinha se sentindo mais indisposto, e já tomava doses reforçadas de seu medicamento, mas isto nunca o impediu de prosseguir com sua missão. Devido ao cansaço da combinação entre a rotina de trabalho e as noites no hospital, o sono pesado de sua mãe impedia a descoberta de suas aventuras noturnas. De fato, ela já forçava tanto seu limite que todos previam ser questão de tempo para que logo ruísse. E esta ruína veio em uma noite de chuva.

As nuvens beijavam a lua enquanto despejavam agulhas de prata pela cidade. Tomás já havia se recolhido, estranhando a demora da mãe. Na realidade, o atraso era tanto que até mesmo já havia feito a sua ronda corriqueira pelo hospital com seus amigos. Estava recolhido, deitado de lado, esperando um sono que não vinha, quando ouviu a conversa sussurrada de duas enfermeiras:

—É esse? Pobrezinho. Não basta a doença, agora a mãe.

—É triste, é triste. Parece que o carro capotou enquanto vinha para cá. Dormiu ao vo-lante, pelo que ouvi.

—Mas como está?

—Fora de perigo. Apenas fraturas leves. Administraram um sedativo para ela, estava muito agitada. Vai dormir até amanhã, pelo menos. Ficará sozinha esta noite. Não con-seguimos falar com nenhum parente. Parece que a moça era meio sozinha.

—Pobre família... Ruth, pode me dar uma mãozinha com Sr. Antunes na ala Norte? Passou mal novamente.... – e as enfermeiras seguiram, enquanto seus murmúrios se per-diam pelos corredores.

Apavorado com a notícia, a certeza de que precisava salvar sua mãe foi cravada em sua mente. Os médicos podiam ter cuidado dela como fosse, mas nada sabiam sobre os du-endes. De abrupto, colocou sua cartola e lançou-se em meio ao dédalo hospitalar, ati-rando-se escada acima logo após dobrar a maternidade. Seu fôlego falho seguia ritmado pela taquicardia enquanto escalava o cemitério de móveis no abarrotado corredor do segundo andar. Tão logo superou os obstáculos, adentrou no misterioso quarto e enfiou as mãos nos jasmineiros, removendo-as do emaranhado com as flores esmagadas entre os dedos. Os raios da tempestade saltavam pelas vidraças e davam à noite um tom ame-açador. No teto, astros e estrelas pareciam predizer um mau agouro. Descartando pessi-mismos, Salabim disparou pelos corredores a procura do quarto de sua mãe.

Enquanto fazia uma força descomunal para encher os pulmões e manter os passos, permanecia sempre alerta a procura de qualquer sinal de duendes ou enfermeiras. E foi justamente quando já não juntava mais ar algum no peito que viu sua mãe deitada sere-namente em uma cama e enquadrada entre dezenas de equipamentos. De relance, notou luzes espelhadas rastejando pelo quarto. “Duendes!”, pensou Tomás. Correu em direção à mãe com uma ânsia que era a única capaz de calar a queimação que sentia nos pulmões. Esgotado, deitou-se ao lado dela, tendo o cuidado de manter em seu peito as flores de pétalas esmagadas embebidas em seu suor. Neste instante, jurou ver na parede reflexos vítreos se dispersando. Sorrindo, sussurrou antes de adormecer: “Nunca...vou...te abandonar... Nunca.”

No começo da manhã, corria pelo hospital a notícia do garoto encontrado sem respirar ao lado da mãe. De sua mão, escapavam algumas flores roxas. No entanto, dissessem o que fosse, apenas três pessoas sabiam da verdade. Foi por isso que, naquela noite, a mãe de Tomás recebeu a inesperada visita de uma coelha, de um gato e de um rei. Sorridentes, mostravam em suas mãos espalmadas um punhado de vidro quebrado encontrado no chão daquele quarto. Passaram a noite juntos à mulher narrando os feitos do jovem herói da Mística Irmandade dos Garotos Carecas. Docemente, e sem perceber, ela sorria.