CONTO DE UMA VESTIBULANDA
Juliana Valis

Estava eu ali sentada numa cadeira fria de uma sala brilhante. A ansiedade em corroia, e eu só vislumbrava a estreita porta dos fundos, sobre a qual estava escrito com letras resplandecentes: Faculdade de Medicina. Diante de mim, em uma mesa redonda, estava a plêiade da Física, corrigindo a minha prova de vestibular conforme a linguagem universal da ciência. O pavor apoderava-se de meu ser de tal forma que aquela correção assumia proporções catastróficas. Eu me sentia uma ré, em pleno julgamento, aguardando se teria liberdade condicional ou prisão perpétua. De repente, Galileu interrompeu a correção e lançou um olhar reprovador sobre mim. A minha ansiedade, que até então crescia em uma vagarosa progressão aritmética, disparou em uma progressão geométrica de razão infinita. Galileu dirigiu-se a mim nervosamente:

- Você, futura doutora Laura Muñoz Kannitz, como ousa dizer que, no vácuo, uma pedra chega ao solo mais rápido que uma pena, se ambas foram lançadas simultaneamente do mesmo local e estavam em queda livre ?

Um longo “oh!” soou uníssono entre os cientistas ali presentes. Senti um calafrio. Ainda assim, tive forças para me defender:

- Impressiona-me a sua insensibilidade, senhor Galileu. Por acaso, o senhor também não foi reprimido quando afirmou que a Terra girava em torno do Sol, e não o contrário, como a Igreja medieval sustentava ? E, então, por que me tira o direito de pensar como quiser ? Aliás, o senhor se portou como verdadeiro covarde ao negar sua tese diante da Inquisição...

- Basta ! – A voz de Isaac Newton me interrompeu bruscamente. – O universo é regido por leis físicas, minha filha. Você não pode vir aqui afirmando que uma pedra chegará ao solo mais rápido que uma pena, se ambas estiverem em queda livre. Isso é uma blasfêmia ! Existe uma força gravitacional que atrai os corpos na razão direta do produto de suas massas e inversa do quadrado da distância que os separa. Fui que descobri isso com a queda da maçã !

Os cientistas aplaudiram, eufóricos. Naquela altura do campeonato, a minha prova de vestibular já estava nas mãos de Descartes:

- Senhores, ouçam esta piada: “ a luz, ao passar do ar para a água, afasta-se da linha imaginária chamada normal”. Nesse caso, senhorita, ocorreria uma aproximação da luz em relação à referida linha.

Todos riram. Snell foi o último a cessar o riso, dirigindo-se a mim:

- Ainda por cima, pensa em ser médica...

Sentindo-me ofendida, tentei me redimir:

- Tudo bem, eu assumo, eu errei ! Mas os senhores se consideram assim tão donos da verdade a ponto de nunca terem errado ?

- Erramos sim, mas não tão displicentemente, senhorita Kannitz. – Respondeu Gauss, com a minha prova em mãos. – Na questão 3, pedia-se a distância focal de um espelho côncavo, dadas as distâncias do objeto e da imagem até o referido espelho. A senhorita, com seus cálculos descabidos, deu-nos como resposta o aumento linear transversal. Ora, bastaria aplicar a minha fórmula: 1 sobre f é igual a 1 sobre p mais 1 sobre p’...

E, assim, Gauss me humilhava com seus cálculos mentais.

- Desculpe-me interrompê-lo, caro Gauss – falava o físico Hertz. - A resposta seguinte da prova dessa estudante foi tão absurda que de longe me chamou a atenção. Ela escreveu que a freqüência audível pelo ouvido humano vai de 20 a 60.000 Hertz.

- Assim escutaríamos tão bem quanto um morcego... – Cochichou Doppler a Fizeau.

- Não, minha cara, a freqüência audível pelos nossos ouvidos vai de 20 a 20.000 Hertz, aproximadamente, é claro.

E eu vi vinte mil Hertz, frios e impassíveis diante de mim. Para minha humilhação, prossegui Clapeyron, com suas observações implacáveis e um sotaque francês insuportável:

- Há um grande erro na questão 6, mademoiselle. Em uma transformação isotérmica de um gás ideal, volume e pressão são inversamente proporcionais e não diretamente, como está em sua prova. E para calcular a quantidade de mol do recipiente em questão, bastaria aplicar PV = nRT, não é, lord Kelvin ?



Kelvin, Celsius e Farenheit estavam muito ocupados, discutindo a precisão de suas escalas. No entanto, como Clapeyron insistia em interrompê-los para que fizessem breves comentários acerca de minha prova, os mencionados cientistas se voltaram a mim, olhando-me de forma rude e áspera. Nesse instante, pude perceber o quanto minha situação como vestibulanda já estava bastante complicada e, assim, indaguei-me se todo o meu esforço em termos de estudo teria valido a pena. Posteriormente, cheguei a questionar o fundamento de toda aquela correção insólita, já que eu não havia encontrado motivo algum minimamente plausível e verossímil que justificasse por que cientistas tão eminentes estariam corrigindo uma simples prova de vestibular.

Talvez aqueles cientistas não soubessem que minha única pretensão era a de cursar Medicina. Quem sabe eles pensassem, erroneamente, que meu escopo era ganhar um Prêmio Nobel de Física. Interrompendo os meus devaneios, Kelvin se dirigiu a mim, em tom enfático:

- Se a senhorita tiver respondido a todas as questões de forma tão displicente e equivocada, a nota final de sua prova será bem próxima do zero absoluto. Essa afirmação soou um tanto quanto bombástica.

Pareceu-me essa frase um certo presságio apocalíptico sobre a decisão final dos cientistas presentes. Na verdade, eu já nem sabia se era simplesmente a minha prova que estava sendo corrigida ou se era eu que estava sendo submetida a um julgamento de aptidão perante o Supremo Tribunal da Física. De modo análogo, eu não sabia se aqueles homens que me repreendiam constantemente eram juízes disfarçados de cientistas ou cientistas disfarçados de juízes, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Entre as três opções lançadas, talvez a última fosse a mais factível. E, se provavelmente eu estivesse ali para ser julgada quanto às minhas noções de Física, poderiam, ao menos, terem me concedido o direito ao contraditório a à ampla defesa. Todavia, sempre que tentava me explicar, algum físico me interrompia bruscamente, sem permitir-me a conclusão de meu pensamento. Foi exatamente assim que Joule me interpelou:



- Seus conhecimentos em Termologia demonstram-se ínfimos, senhorita. Como pôde dizer que 4,18 calorias correspondem a 1 Joule ? Ainda afirmou que calor não é energia. Céus ! Eu estava tão tranqüilo quanto à minha contribuição ao mundo !

- Eu... Eu escrevi isso ?

- Não se faça de cínica, Laura Kannitz ! - Era a vez de Coulomb no ataque – Sua situação já não está nada boa. Quanto à força eletrostática, sua resposta foi: “inversamente proporcional à distância entre as cargas”. Errado ! A força eletrostática é inversamente proporcional ao QUADRADO da distância entre as cargas.

Ia retrucar a essa advertência de Coulomb; mas, de repente, empalideci. Lembrei-me subitamente de que eu já concluído todas as provas de vestibular, incluindo a de Física. Esta era a última prova a ser corrigida e, portanto, se eu não obtivesse uma nota razoável em tal avaliação, seria fatalmente reprovada. A fim de evitar isso, tentei utilizar alguns argumentos consistentes que me ajudassem a reverter aquela situação de desespero na qual me encontrava. Para tanto, resolvi usar conhecimentos de outras fontes. Mal pude formular minha tática de defesa e Kepler me interrogou:

- A senhorita conhece o enunciado da minha primeira lei, Laura Kannitz ?

- Sim, conheço.

- Então, por que a senhorita respondeu, em sua prova, que os planetas descrevem órbitas circulares em torno do Sol, sabendo que as referidas órbitas são aproximadamente elípticas ?

- Circunferências são elipses com focos concêntricos, senhor Kepler. A órbita da Terra, por exemplo, é próxima a uma circunferência.

- Senhorita, minha primeira lei estabelece que as órbitas planetárias são elípticas. Essas órbitas podem, eventualmente, vir a serem circulares. Sua resposta, porém, tende a uma generalização que não corresponde à realidade.

- E as ciências, em si, também não trazem generalizações que nem sempre correspondem à realidade ?

- O que está em discussão é a sua resposta na prova, senhorita, e não o que as ciências trazem ou deixam de trazer. Portanto, não fuja do assunto, Laura Kannitz !

- É o senhor que está fugindo do assunto, caro Kepler. Suas leis podem, sim, ser questionadas. A propósito, o senhor já pensou que está, neste momento, ferindo o princípio da separação dos poderes ?

- O quê ?

- Ao formular uma lei e ao aplicá-la, o senhor está exercendo, simultaneamente, funções atribuídas ao Poder Legislativo e ao Judiciário, e isso seria de fato inadmissível quando se consideram os dispositivos constitucionais de grande parte dos países. Após tal afirmação, todos os cientistas presentes me olharam, atônitos.

De propósito, eu havia deslocado o eixo daquela discussão para outro âmbito do conhecimento, sobre o qual eles provavelmente não teriam qualquer domínio.

- Por acaso, a senhorita encarnou o “espírito das leis”, de meu conterrâneo Montesquieu ? – Indagou Clapeyron.

- Sim, foi justamente esse filósofo francês que acabou dando-me uma luz diante de tais circunstâncias deploráveis nas quais me encontro. E me impressiona que os senhores, sendo tão cultos e esclarecidos, não tivessem ainda percebido o fato de que estão indo de encontro ao princípio da separação dos poderes, desde o início desta correção de vestibular, ao exercerem as funções de legisladores e juízes, em concomitância.

- Senhorita, permita-me elucidar que muitos de nós nem poderíamos ter conhecimento dessa teoria da tripartição dos poderes, pois quando o Barão de Montesquieu a formulou, alguns cientistas aqui presentes já haviam, digamos, partido para a vida eterna... – Clapeyron replicou, com o aval dos demais cientistas.

- Desculpe-me, Clapeyron, mas pensei que os senhores fossem gênios imortais e, diante de suas pretensões de onisciência, imaginei que tivesse sido possível uma continuação de suas vidas intelectuais, mesmo após a morte biológica.

- Não me venha com essas questões metafísicas, moça ! – Advertiu-me Newton, como se fosse presidente daquele enigmático tribunal – Aqui nós estamos discutindo os aspectos estritamente físicos que concernem à correção de sua prova. Todos os demais argumentos que transcendem tais aspectos são inteiramente irrelevantes no âmbito desta discussão !



- São irrelevantes para o senhor, caro Newton. Na prática, é impossível que existam aspectos estritamente físicos ou critérios apenas científicos para que se faça a aferição dos conhecimentos de um indivíduo.



Ignorando esse meu último argumento, Newton simplesmente chamou os cientistas para um lugar reservado e ali permanecerem por tortuosas frações de tempo, que mais me pareceram séculos de medo, ansiedade e incertezas. Durante esse momento, inúmeros pensamentos me afligiram e me preocuparam. Eu estava aguardando uma decisão final que, provavelmente, ser-me-ia desfavorável por completo e, diante desse fato, a quem eu iria recorrer de tal acórdão reprovador ? Haveria uma instância judicial acima do Supremo Tribunal da Física ? Existiriam mecanismos efetivos que me permitissem anular aquele julgamento no qual eu, intuitivamente, sentia-me uma ré acusada por todos os lados, sem qualquer assistência de um advogado de defesa, ao menos ? Seria eu condenada a não ingressar na faculdade em virtude de algumas questões de Física ?

Todas essas indagações percorriam meu cérebro, como flashes de dúvida causando-me calafrios e náuseas. Pensei brevemente em todo o futuro promissor que eu poderia ter como médica. Refleti sobre todas as curas que eu poderia contribuir para encontrar, inclusive aquelas relativas às enfermidades mais perniciosas, como aids e câncer. Também pensei sobre as vidas que poderia salvar, como plantonista em qualquer hospital ou, quem sabe, como voluntária sem fronteiras da Cruz Vermelha. Tantas horas de esforço desperdiçadas, tantos sonhos não-concretizados. E tudo isso em decorrência de alguns equívocos em sutis aspectos físicos. Seria o vestibular ainda a melhor maneira de admitir novos universitários ? Depois desse breve interregno e de todos os devaneios que tal momento me propiciou, os cientistas retornaram aos seus respectivos lugares na grande mesa que estava diante de mim. Todos se sentaram lentamente, com um ar sério, sóbrio e lúgubre.

Eu já podia sentir toda a tensão inerente àquela parte final das correções (ou julgamento) e, antes mesmo que qualquer um daqueles cientistas me dirigisse a palavra, tive a premonição de que eles não tomariam qualquer posicionamento minimamente favorável a mim. Desse modo, Newton pronunciou-se sobre a correção de minha prova:



- Laura Muñoz Kannitz, com o intuito de ingressar no curso de Medicina da Universidade de São Paulo, fez o vestibular da mencionada instituição de ensino superior, tendo esta banca examinadora e incumbência de aplicar e corrigir as provas de Física, entre as quais se encontra a avaliação da referida estudante. Depois de realizada a correção de tal prova, verificou-se que Laura Kannitz demonstrou grandes falhas em relação ao entendimento dos fenômenos físicos. Das dez questões existentes no exame, a estudante supracitada não conseguiu responder a nenhuma delas de modo cientificamente adequado, lógico e coerente. Evidenciando erros de raciocínio e, até mesmo, desconhecimento de temas fundamentais da Física, como Cinemática, Ondulatória e Eletrostática, Laura não obteve êxito em sua avaliação. Assim, esta banca declara, por unanimidade que Laura Muñoz Kannitz foi DESCLASSIFICADA no vestibular, em virtude de seu ínfimo desempenho na prova aplicada pelos cientistas aqui presentes.

Naquele momento, o desespero se apossou de mim.

- Não, não é justo ! Eu estudei durante todos esses meses, de segunda a segunda. Eu sabia toda a matéria. Como pude ter um resultado tão mau nessa porcaria de prova ? E a culpa é de vocês, seus tresloucados, seus sádicos. Encheram o mundo de teorias e, agora, elas são cobradas de nós, meros estudantes !

Todos ficaram atônitos. Newton ergueu a voz, repreensivo:

- Meça suas palavras, senhorita ! Toda ação requer uma reação...

- Não estou nem aí ! E quer saber ? Nunca acreditei muito naquela sua história de variação da quantidade de movimento...

- O quê ? Como ousa, sua atrevida ?

- E eu acho uma chatice aquela tal de inércia, em que a força resultante é nula e o movimento é retilíneo e uniforme...

- Você está ridicularizando as minhas leis !? Prendam esta infratora ! Após esse comando de Newton, os cientistas vieram em minha direção, como se estivessem em busca de uma delinqüente de altíssima periculosidade.

Diante de tais circunstâncias, não me restou alternativa além de correr. Imediatamente, tentei vislumbrar uma saída daquele sóbrio lugar no qual me encontrava, porém não tinha muito tempo para pensar e os cientistas queriam me prender de qualquer forma e a qualquer custo. Saí correndo desesperadamente pelo grande salão onde fora proferido o resultado de minha prova, até que visualizei uma portinha muito estreita, que levava a um pequeno laboratório, no qual os cientistas talvez comprovassem, ou não, as teses suscitadas ao Supremo Tribunal da Física.

- Não deixem que ela entre na sala de ensaios e pesquisas técnicas ! – Gritou Newton aos mais de dez cientistas que corriam, incansavelmente, atrás de mim.

Ao adentrar aquele pequeno laboratório, vi diversos equipamentos científicos e um grande tonel de água que, provavelmente, estaria sendo utilizado em alguma experiência de Hidrostática. Não pensei duas vezes antes de derramar toda aquela água pelo corredor exíguo que levava àquela sala de pesquisas, de modo que, quando os cientistas entraram em minha procura, todos imediatamente caíram. Até que eles se levantassem, eu teria mais tempo para esconder-me. Logo adiante vi uma pequena porta, trancada com um cadeado. Havia também naquele laboratório uma grande gaiola dentro da qual eu podia identificar três chaves sobre uma cadeira. Minha suposição era a de que uma daquelas chaves poderia abrir o cadeado da porta pela qual eu fugiria. Porém, ao tentar pegar as chaves dentro da gaiola, um de meus perseguidores trancafiou-me ali, como em uma armadilha. Somente naquele instante percebi que eu estava na famosa gaiola em que Faraday fazia suas profícuas experiências de blindagem eletrostática. Como já havia sido preso, meu último recurso foi gritar:

- Vocês não podem fazer isso comigo ! Sou muito inteligente, serei uma grande médica, vocês vão ver !

- Você não é mais inteligente que nós, sua atrevida. Enquanto você teve escola, curso pré-vestibular, professor, livro didático, eu, por exemplo, fui autodidata. Deduzi como fenômenos ocorrem, so-zi-nho ! – Respondeu o cientista Faraday, sentindo-se vitorioso, ao mesmo tempo em que Einstein me dava a língua.

E gritei. Fiz um escarcéu:

- Vocês, homens, são todos iguais ! Grossos, frios, insensíveis ! Marie Curie, venha me socorrer ! Eu preciso de um hábeas corpus !



E foi assim que acordei, encharcada de suor, com minha mãe ao lado, preocupadíssima.

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