Trilhando através de mundos

Outrora, uma ínfima essência foi lançada da Fonte Suprema para os mundos da Criação... E tal essência deveria percorrer as dez Sefhirots partindo de Atzilut, o mundo das emanações, até Assiáh, o mundo das ações; o nosso mundo propriamente dito. O tempo em que ela foi lançada da Fonte não se sabe, tampouco o tempo que levou para percorrer a senda de cada Sefhiráh. Na verdade, isso não importava, pois ela estava acabando de deixar Ietzirah, o mundo das formações, para se manifestar no nosso mundo e experimentar a última Sefhiráh, Malchut.

Todavia, no mundo das ações, a essência precisaria passar por um aprendizado para ganhar sua Neshamáh, a alma superior. Precisaria aprender que entre os três mundos anteriores que passou, as ações neste, são manifestas de forma diferente por ser o mundo mais distante da Fonte e que para executar a missão que fora incumbida precisaria se tornar um de nós. Decerto que a Fonte poderia de imediato lhe dar uma matéria e fazer dela um ser proficiente, mas que graça teria nisso, não é? Assim a Fonte escolheu uma grande metrópole, uma avenida movimentada e uma loja renomada; ali, por detrás das vitrines havia dez manequins, uns com feições masculinas e outros com formas femininas. A Entidade optou por um com aparência de homem e o processo miraculoso teve início...

Uma substância instável e sedimentar começou a se dispor em ordem crescente, maleável, dúctil. Quando a massa se consolidou em uma matéria pastosa e indefinida, uma onda de consciência repentina se dispersou entre recônditos ainda inacabados, caindo após em falésias negras. Texturas lívidas vieram em seguida formando estruturas e recôncavos, possibilitando assim o posterior desempenho das funções primais e complexas do cérebro. Septos causavam divisões inalteráveis, a psique estava se formando. Contudo, faltavam elementos para formar um conjunto harmonioso e assim, nacos indeléveis de percepções de agruparam como um todo e o contexto extrínseco que chamamos de realidade se estabeleceu. Invariavelmente, informações exteriores foram sugadas por um vórtice mental e divididas tematicamente por faculdades analíticas que as indexavam. Conhecimentos se aglomeravam arquitetando o intelecto. Um pulso repentino de Consciência se alastrou e os funcionamentos inerentes palpitaram. Um segundo pulso e um fluxo intangível desbravou áreas encéfalas com alarido.

Um terceiro pulso e definitivamente a Consciência rompeu o invólucro da inexistência e com primazia, a noção de realidade foi adicionada a ela. Em seguida veio o aprendizado. Disposto isso, surgiu uma teia de linhas aleatórias e um pensamento nasceu ainda fraco, mas coerente. Tomando uma dessas linhas, o pensamento seguiu um percurso até reverberar destoante em um manifesto de estupor e duvidas: ´´O que sou eu?´´

Esta indagação gerou o sentimento de individualidade que se concatenou com outros pensamentos lineares forçando um raciocínio. Entrementes, não houve elucidação e a falta de resposta aparente criou mais questionamento e sua cosmovisão interna oscilou. Entretanto, um aparelho auditivo estava se desenvolvendo e ao longe a consciência recebeu de forma vaga, pautas sonoras, escutando sons e ruídos emaranhados difíceis de discernir. Com o tempo transcorrendo, a audição foi se aprimorando trazendo novas perspectivas e a ânsia de conhecer e explorar novas sensações cresceu, juntamente com a curiosidade instigada. Memorizando sons dissonantes e vozes tonitruantes, novas palavras foram se fundindo ao seu vocabulário. Ela escutou uma canção distante e estremeceu, sua primeira emoção surgiu. Súbito, ela começou a contemplar formas incertas e mosaicas, desfocadas e borradas com amarantos negros. Inundada por este vislumbre fracional, a consciência desejou ver mais, então, um novo clarão refulgiu piscando até a imagem se estabelecer finalmente. Contudo, embaçada e mesmerizada. E assim, observando os borrões se esvaecerem nas extremidades, as bordas começaram a se limpar e o centro, onde a visão era mais precária, começou a se desdobrar como losangos de origames em movimentos circulares. Os fatores visíveis iam entrando em foco gradativamente...

Quando as tonalidades vieram em explosões multicoloridas, a fascinação sobreveio mesclando novas emoções a sentimentos já concebidos. Uma sorção contínua de regozijo se esparramou por entre os sentidos e o deslumbre alcançou o clímax quando a consciência contemplou o mundo através do vidro da vitrine. Foi esse o momento que ela se lembrou quem era e o que viera fazer em Assiáh.

*Texto extraído do meu livro "O cabalista".