"Sempre que precisares, eu estarei aqui ,,,"

Na trincheira úmida e lamacenta, o soldado inglês Seymour Thompson aguardava a próxima bateria de ataque. Seu uniforme estava sujo, molhado e malcheiroso; suas pernas doíam e seus braços mal tinham forças para segurar o seu fuzil Lee-Enfield. Havia um gosto de barro em sua boca que misturava-se com a saliva e parecia colar na mucosa. A água de seu cantil já havia se esgotado e ele, quando possível, molhava seu cachecol em uma poça de origem duvidosa e molhava os lábios tentando, em vão, saciar uma sede que não tinha mais fim.

O estrondo dos projéteis alemães de longo alcance eram tão altos que por vários minutos, Seymour tinha a sensação de surdez absoluta e seu corpo tremia ante o susto provocado pela queda do artefato militar. Ele olhava para os lados, tentando ver um rosto mais auspicioso que o seu próprio, mas o que ele via eram jovens da idade dele, ou ainda mais jovens, usufruindo do mesmo terror que ele, com tremores percorrendo seus corpos frágeis e a dolorosa expectativa do próximo ataque por terra.

Após uma onda de ataque de obuses alemães, seguida de um tímido bombardeio aliado, Seymour e seus companheiros ouviram os brados irritados do sargento Hoffman, um sujeito mal encarado, cujas cicatrizes fundas do rosto denotavam sua larga experiência no campo de batalha. Ele caminhava ao lado dos jovens soldados, parecendo marchar com seu enorme corpanzil mantendo uma postura ereta, enquanto segurava sua metralhadora.

Ele alertava seus subordinados que em poucos minutos eles tentariam um novo avanço na direção das trincheiras inimigas e que todos deveriam estar atentos. Aproximou-se de um dos infantes e depois de mirá-lo de cima a baixo, arrumou a gola da sua túnica e tomou seu fuzil, examinando-o detidamente. Enfim, devolveu a arma ao jovem soldado com a sua rudeza usual e olhou para os dois lados da fileira, gritando que eles não se esquecessem das máscaras contra gases, caso o inimigo se valesse de suas armas químicas.

Antes que Hoffman terminasse sua explanação, sempre recheada de palavrões e expressões inadequadas, o capitão Clark Dust interrompeu-o com uma ordem de comando. Hoffman empertigou-se e todos os seguiram batendo continência para seu superior. Dust era membro da elite britânica; seu pai, seu avô e dois tios serviam o exército de Sua Majestade e ele seguira a carreira militar muito mais por exigência paterna do que por aptidão própria.

Ele olhou para Hoffman e depois de um aceno de cabeça dispensou a posição de sentido. Caminhou alguns passos reiterando os avisos do sargento, porém, utilizando-se de uma linguagem mais afável. E antes que ele pudesse continuar uma sirene soou, indicando que o ataque estava por se iniciar. Os rapazes voltaram-se na direção das escadas que estavam apoiadas sobre a parede de tábuas que sustentavam a trincheira e prepararam-se para a investida.

Seymour tirou do bolso interno de sua túnica a única foto que ele tinha de Angeline e depois de fitá-la carinhosamente, beijou a imagem, um ritual que ele repetia desde o primeiro dia que desembarcara em território francês para apoiar a guerra contra os alemães. Tornou a guardá-la e preparou-se para seguir seus companheiros em novo ataque ao inimigo. O sargento Hoffman subiu dois degraus na escada mais próxima e valeu-se de seu binóculo para observar o terreno à frente.

Repentinamente, um clarão brilhou nos céus escurecidos de mais um final de tarde frio e úmido, indicando que o ataque tivera início. Todos subiram os degraus o mais rápido que puderam, seguidos pelos companheiros que vinham logo atrás e passaram a avançar pela “terra de ninguém” em direção às trincheiras alemãs, empunhando seus fuzis como se fosse um escudo capaz de protegê-los da morte.

O que se iniciou como um avanço coordenado e mais ou menos bem organizado, acabou por se tornar uma correria desordenada assim que o primeiro tiro inimigo de metralhadora soou no ar e as granadas lançadas na direção deles começaram a pipocar, gerando uma nuvem de lama, enxofre, sangue e gritos alucinados dos feridos. Seymour apertou o passo, enquanto atirava sem mira, pretendendo apenas fazer a sua parte e, se o Criador permitisse, sobreviver até retornar para sua trincheira.

Desesperado, o soldado que corria ao lado de Seymour, urrou enlouquecido assim que foi atingido em cheio por uma granada inimiga, desmontando-se no chão como um saco de dejeto que se abre, espalhando pelo chão, tripas, órgãos e sangue, muito sangue.

Seymour queria continuar, mas os gritos de seu companheiro obrigaram-no a interromper seu avanço; ele se voltou na direção do amigo, mas antes que pudesse chegar perto o suficiente, um clarão, acompanhado de um estrondo ensurdecedor pipocou perto dele, arremessando na direção oposta. A dor, a escuridão e o frio deram conta de que ele havia sido atingido por outro projétil inimigo.

Ele foi ao chão a alguns metros de seu companheiro; a visão turvada e a consciência perdida em meio à dor e o choque da explosão tornavam Seymour mais um corpo agonizante na “terra de ninguém”; ele queria levantar-se, queria poder arrastar-se de volta à trincheira, mas tudo isso era apenas uma intenção em seu subconsciente. Seu corpo inerte e ferido estava esfriando rapidamente, e em sua mente ele sentia o primeiro presságio da morte vindo levá-lo para longe daquele inferna, mas também, para longe de sua Angeline.

Lembrou-se do rosto de sua mãe, dos amigos de escola e pela primeira vez em muito tempo ele orou; orou para que a partida fosse rápida e que a dor fosse embora de uma vez por todas.

Seymour estava à beira da inconsciência quando um vulto aproximou-se dele; ele não conseguia ver quem era, se amigo ou inimigo, mas isso pouco importava naquele momento, pois, fosse quem fosse, a vida se esvaía de seu corpo lenta e dolorosamente. E qual não foi sua surpresa quando o vulto abaixou-se tomando-o nos braços e caminhando com ele para uma direção desconhecida …

Ele não conseguia ver o rosto de seu benfeitor, apenas a voz firme e vigorosa que repetia a mesma frase: “Calma, filho, resista mais um pouco que logo estaremos bem …”

Por um instante, Seymour pensou que aquilo fosse apenas o devaneio de um moribundo e limitou-se a sorrir para o rosto embaçado do seu salvador, que continuava caminhando para uma direção que apenas ele conhecia e sabia para onde ir. Seymour sentia-se acolhido nos braços do seu benfeitor e pela primeira vez em muito tempo, o rapaz sentia-se seguro e sem medo.

E como num passe de mágica, o céu foi se abrindo e o sol surgiu no horizonte, anunciando um lindo dia de verão; Seymour, que ainda tinha a certeza de que aquilo não parecia real, olhou à sua volta e percebeu que estava em um vale verdejante, cercado por uma floresta de árvores baixas, tendo ao fundo uma pequena casa de alvenaria. O rapaz surpreendeu-se ao perceber que aquele era o vale onde Angeline vivia com seu pai e seu coração acelerou-se. A respiração ficou difícil e a dor tornava-se ainda mais lancinante; agora, naquele momento, Seymour tinha a certeza de que estava morrendo.

Olhou uma última vez na direção da casa no fundo do vale e, por um momento, pode apreciar o rosto de sua amada, que permanecia em pé junto à porta olhando em para ele com aquele inigualável sorriso divinal que havia arrebatado seu coração.

“Calma, filho … está tudo bem …” - a voz de seu socorrista soou mais uma vez, calma e tranquilizante, parecendo penetrar em sua mente como uma mensagem vindo de lugar nenhum. Seymour forçou os olhos tentando ver o rosto de seu benfeitor, e depois de algum esforço pode ver quem era aquele homem.

Na verdade era um desconhecido que Seymour jamais havia visto em toda a sua vida. Era alto e forte e seu rosto tinha traços finos e suaves, onde um par de olhos azuis pareciam faiscar coroados por um sorriso fraterno. Eles caminharam por mais alguns metros, até que o sujeito depositou o corpo falido de Seymour sobre a relva quente ainda um pouco orvalhada.

O soldado olhou mais uma vez, esforçando-se para que sua visão não o traísse e atentou para o rosto de seu salvador. Tinha os cabelos negros timidamente ocultos por um gorro de aspecto metálico, como uma cota de malha que ele já vira em alguns livros de história. O indivíduo descansou a cabeça de Seymour sobre seu próprio capacete e depois, cobriu-o com um manto de linho. Afagou-lhe os cabelos e sorriu.

“Logo virão buscar você, filho e tudo ficará bem …, ainda não é a sua hora e aquela linda dama espera por você …, mas lembre-se desse dia para honrar o Criador pelo resto de sua vida e tenha Jesus Cristo em seu coração …”

O estranho sorriu mais uma vez e levantou-se, permitindo que Seymour o visse por inteiro.

A imagem estava turvada e a única coisa que o rapaz pode ver, e que lhe chamou a atenção: seu benfeitor realmente vestia o que parecia ser uma cota de malha que estava coberta por uma túnica branca onde se destacava uma cruz vermelha no peito. O estranho sorriu para ele uma última vez e depois deu de costas caminhando na direção oposta à que viera.

Seymour ficou olhando enquanto seu salvador se afastava dele e quando sua imagem tornou-se apenas uma silhueta no horizonte ele voltou o olhar para a casa onde a sua Angeline permanecia em pé, esperando por ele. Seymour quis levantar-se, mas a dor ganhou uma intensidade tal que ele acabou por desmaiar, perdendo os sentidos, enquanto seus olhos se fechavam com a doce imagem de Angeline.

Um torvelinho de imagens tomaram a mente cansada do jovem soldado e por mais de uma vez ele achou que seu espírito estava se desgarrando de seu corpo e que a vida se esvaía lentamente, levando-o em direção ao caos do inferno e o distanciando-o de sua amada, de sua vida tranquila e bucólica e da possibilidade de um envelhecer consolado pela certeza de ter feito tudo o que podia ter feito.

E a escuridão veio …, e da mesma forma que veio foi expulsa por um brilho que iluminava o interior de sua mente, recobrando-lhe, pouco a pouco, os sentidos; Seymour percebeu que aquele brilho tornava-se cada vez mais intenso e próximo, crescendo e preenchendo sua mente que parecia voltar do mundo dos mortos.

Com certa dificuldade, ele abriu os olhos e tentou perceber onde estava …, não demorou para que ele, olhando à sua volta, tivesse duas certezas: a primeira era de que estava vivo; e a segunda era que alguém o havia salvo. Em poucos minutos um rosto suave de uma mulher vestida de branco surgir ante seus olhos. Ela sorriu para ele e, depois, ofereceu-lhe um pouco de água. Seymour estava com a boca e garganta secas, por isso mesmo, quis beber o máximo possível, acabando por engasgar, sendo ajudado pela enfermeira.

Seymour relaxou ante a confirmação de que ele estava vivo e salvo. A enfermeira disse-lhe que os ferimentos eram preocupantes, porém, o médico dissera-lhe que, com os cuidados adequados ele sobreviveria. Reconfortado pela certeza de que a sua hora ainda não havia chegado ele tornou a adormecer.

Foi acordado pela voz esbravejante do Sargento Hoffman que gargalhava enquanto lhe dava a notícia de sua baixa. Seymour, ainda dopado, demorou a entender as ironias de seu superior. “Deu sorte, hein, seu malandrinho! Vai voltar para casa e não vai demorar muito …, garoto de sorte!”

Dias depois, Seymour desembarcava em uma estação de trem próxima ao vilarejo onde morava com os pais. Na plataforma, seus pais o aguardavam ansiosamente e sua mãe, incapaz de resistir à sua aflição, correu em sua direção, abraçando-o afetuosamente. Seymour recebeu o abraço ainda meio desengonçado com o manuseio das muletas. Todos olharam perplexos, mas ele os tranquilizou dizendo que aquele “apoio” era temporário e que em breve, ele seria de caminhar sem elas.

Enquanto todos sorriam e o fuzilavam com perguntas umas sobre as outras, o jovem soldado olhava para todos os lados, procurando pela pessoa mais importante para ele naquele dia; mais uma vez, sua mãe, percebendo a preocupação do filho, tocou sua face com uma das mãos chamando sua atenção.

“Ela não veio, estava muito aflita … disse que o esperaria no lugar de sempre”. O rosto do rapaz iluminou-se e, imediatamente, pediu ao seu pai que fossem todos para casa. No caminho, o pequeno vale descortinou-se para os olhos turvos e úmidos do jovem soldado; ele tinha a certeza de que havia voltado para a sua terra.

Sem demora, seu pai segurou as rédeas da carroça; olhou para trás e, com a cabeça, acenou para o filho na direção da casa onde morava Angeline e seu pai. Seymour saltou do veículo com certa dificuldade e valendo-se desengonçadamente de suas muletas tentou correr vale abaixo deixando seus familiares para trás.

Assim que se aproximou da pequena varanda da casa de Angeline, Seymour, quase sem ar e com o coração aos pulos, viu a porta abrir-se, e o surgir angelical de sua amada. Ela ficou um instante na porta, olhando para seu namorado e com lágrimas nos olhos, levou as mãos ao rosto num gesto misto de incredulidade, espanto e surpresa.

Ambos se aproximaram e envolveram-se em um abraço repleto de paixão e sofreguidão. Beijaram-se longamente para, assim que possível sentarem-se ao pé da pequena escada que separava a varanda do pequeno jardim que ficava logo em frente da casa de Angeline. Beijaram-se mais algumas vezes, até que Angeline pediu a Seymour que ele contasse tudo o que aconteceu.

Passados alguns minutos em que o rapaz quedou-se a contar sua experiência no campo de batalha, ele emudeceu repentinamente, para, logo em seguida prosseguir, narrando o evento insólito do qual foi personagem …, e a medida em que ele contava, os olhos de Angeline enchiam-se de lágrimas …

Ao final, eles se abraçaram ardorosamente e a jovem sussurrou no ouvido de seu amado que ela sabia que ele voltaria …, ele olhou para ela e perguntou como ela tinha certeza disso. Com lágrimas e soluços, Angeline confidenciou-lhe que, certa noite, um homem bateu à porta de sua casa. Ela abriu a porta e deu de cara com um desconhecido que chamou-a pelo nome.

Assim que ela confirmou ser quem ele procurava, o estranho disse-lhe que Seymour fora ferido em combate, mas que sobrevivera e que, em breve, estaria de volta para ela. Seymour ouviu tudo com muita atenção e ficou completamente embasbacado …, depois de recobrar-se da surpresa, Seymour perguntou com era o tal sujeito. Angeline respondeu que não se lembrava muito bem, mas que um detalhe lhe chamara a atenção: os intensos olhos azuis faiscantes que a encaravam, transmitindo uma sensação de confiança e bem estar.

Seymour ficou ainda mais atônito com o que Angeline lhe contara e quando tentou ponderar sobre o acontecido, ela tirou do bolso do vestido um pequeno pedaço de tecido entregando para ele.

O rapaz tomou o objeto nas mãos e imediatamente viu que ele trazia uma ilustração que lhe era bem conhecida: uma cruz vermelha de pontas achatadas, muito parecida com aquela que ele vislumbrara na túnica do seu benfeitor …, antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, Angeline pediu que ele olhasse o verso do tecido.

Seymour virou o pedaço de tecido entre as mãos e viu que havia uma frase escrita como uma pintura medieval …, e ela dizia o que ele jamais se esquecera: “Filho, honra a Deus sobre todas as coisas, ame, viva e seja feliz e, se um dia, você precisar de socorro, chame por mim que eu estarei sempre te ouvindo”.

Os dois choraram copiosamente, pois tiveram a certeza de que um anjo sob a forma de um guerreiro havia salvado a vida de ambos; do soldado ferido em batalha e da jovem apaixonada que esperaria por ele para sempre.