O Rei Caído – Capítulo IV – Herói

Heikville, norte de Trenet, costa do Rio das Almas, 10º dia de Queromedy do ano de 635.

— Leon, volte aqui! — gritou a mãe, enquanto o menino pequeno corria com suas pernas curtas pela sala de sua casa, com seus fartos cabelos castanhos cacheados e seus ansiosos olhos cor de mel, movendo uma cadeira em direção à janela. Subiu na cadeira, tirou a tranca da janela, a abriu e olhou para fora.

— Mãe, eu posso lutar! — respondeu sem olhar pra ela.

A cena que viu não era boa. Os portões da cidade já tinham cedido e dezenas de soldados com armaduras completas de aço polido com o símbolo do imponente leão dourado de Loivty no peito entravam pela estreita passagem. Os defensores tentavam impedir o avanço, mas tinham muita dificuldade. Menos da metade usava armadura de batalha completa e tinha treinamento de combate. Estes eram os homens da guarda da cidade. Os demais eram moradores comuns, ferreiros, padeiros, estalajadeiros… Usavam armaduras incompletas e empunhavam diversos tipos de armas, como machados, foices, lanças, tridentes e espadas. Todos os homens com mais de treze verões haviam sido convocados para defender a cidade. As mulheres, idosos e crianças foram trancados em suas casas para sua própria proteção.

Leon tinha sete anos, mas um apetite enorme para o combate. Seu pai era apenas um florista, assim como sua mãe e seu irmão mais velho. Mas ele recusava continuar com os negócios da família. Desejava ser um herói. Salvar donzelas e destruir monstros, como nas histórias que ouvia de sua mãe.

Procurou na confusão do combate o seu pai e irmão. Viu vários de seus conhecidos lutando e sendo mortos pelos soldados. Estendeu a cabeça para fora da janela e, olhando para a direita, viu seu irmão lutando. Usava apenas um peitoral de ferro cru sobre uma armadura de couro batido e um elmo que parecia maior que sua cabeça cobrindo-lhe o rosto. Tinha apenas quinze anos, mas se defendia com bravura. Até que viu uma brecha na defesa do militar e lançou sua espada com força sobre o peito do inimigo. A arma resvalou na armadura polida como um espelho exibindo pequenas faíscas enquanto escorregava pelo aço. O soldado, então, aproveitou o desequilíbrio do rapaz e fez sua espada cravar em seu abdômen. Tirou a espada manchada de sangue e deixou o corpo cair no chão.

— NÃO!!! — Leon gritou tão alto, com sua voz aguda de criança, que o soldado que matou seu irmão ouviu e olhou em sua direção. Ele levantou a viseira de seu elmo exibindo um rosto terrível: a parte direita estava destruída por profundas queimaduras e tinha uma barba negra mal feita, suja e suada como se nunca tivesse sido lavada. Mostrou um sorriso macabro com poucos dentes na boca e começou a caminhar lentamente na direção de sua casa.

O menino percebeu que o homem caminhava em sua direção e teve medo. Mais do que ele poderia fazer por sua mãe, que medo de lutar. Pegou, sobre a mesa, uma tigela de barro, focando toda a sua força e arremessou. A tigela voou da janela na direção do soldado loivtyano, mas caiu no meio do caminho. A força da criança não foi suficiente.

Ele desceu da cadeira correndo em busca de alguma arma que pudesse usar para derrotá-lo. Sua mãe gritou para que ele se escondesse e se desatou a chorar. Ela odiava violência e tremia só de pensar no que estava acontecendo. O menino ignorou o apelo a mãe, correu para a cozinha e conseguiu pegar uma faca utilizada para cortar peixes. Quando voltava para sala, olhou para a janela e o homem estava lá, com seu rosto queimado e sua boca repleta de dentes podres sorrindo para ele.

O homem pulou pela janela para a sala fazendo um grande estrondo de som metálico das peças de sua armadura e a espada embainhada batendo quando aterrissou no solo de pedra batida da casa. Era uma pequena casa de alvenaria, toda construída com pedras e um barro negro retirado do fundo do rio que servia como argamassa. A sala tinha uma pequena lareira, uma mesa ao centro enfeitada com um belo jarro de flores coloridas e duas portas. Uma ia para o para o quarto, de onde dava para ouvir o choro copioso da mãe e a outra para a cozinha, onde estava o menino Leon armado de sua peixeira.

O militar emitiu uma terrível gargalhada rouca quando viu o menino, caminhou na sua direção e, com pouca dificuldade, retirou a faca de sua mão. Caminhou, então, em direção ao quarto com a faca em punho e um sorriso canalha no rosto.

— Venha, madame, venha me satisfazer — disse enquanto encurralava a mulher no canto do quarto. Ela tremia e chorava sem parar encolhida, abraçando os seus joelhos. Vestia um vestido simples de lã e um cinto de couro na cintura. Tinha os cabelos castanhos ondulados escorrendo até os ombros, olhos verdes e um rosto jovial embora tivesse cerca de trinta verões.

— Venha, covarde. Lute comigo! — Leon gritou forçando uma voz grave enquanto corria e saltou sobre as costas do homem. Este, sem nenhum trabalho, o segurou com a mão livre e o arremessou para o outro canto do quarto. Ele ouviu um crac na queda e sentiu uma forte dor no braço direito.

O homem, que já havia considerando a vitória de seu exército como certa, começou a retirar sua armadura e queria desde já colher os louros da vitória. Estava há meses à serviço do exército de Loivty e sentia a falta do calor feminino. Retirou o elmo, os braços e as pernas da armadura e jogou as peças uma a uma no chão. O choro e o grito da mulher era cada vez mais alto e estridente, mas ele se excitava com aquilo. Deu uma olhada para o garoto que queria ser herói e viu que também chorava pela impotência e dor segurando um dos braços que estava quebrado.

Quando se preparava para tirar o peitoral da armadura, a última e mais pesada peça, ouviu um forte estrondo vindo da sala acompanhado de um relinchar de cavalo. Olhou pela porta e viu um belo corcel branco de batalha vestido com uma armadura dourada sobre a pesada porta de entrada da casa que havia acabado de derrubar. Sobre a cela do animal, um homem com uma bela e brilhante armadura completa de ouro, com um elmo que se assemelhava a uma cabeça de dragão. Empunhava uma espada longa dourada na mão direita e um escudo na esquerda. O escudo tinha o desenho de um dragão dourado sobre um fundo negro.

— Pare o que pretendia fazer, soldado e renda-se! — disse com a voz abafada sob o elmo apontando a espada pingando de sangue na direção do horroroso homem sem dentes.

Leon olhou com espanto para aquela cena com o sol refletindo na armadura dourada do cavaleiro e sorriu mostrando todos os seus dentes. Não acredito, pensou. Sabia o que ele era.

— Terá que me impedir, cavaleiro. — O homem sacou a sua espada e a empunhou para a luta.

— Não luto com um homem sem armadura — disse, enquanto descia do cavalo e caminhava em sua direção.

Mas o homem ignorou essa frase e o atacou com um golpe vertical de cima para baixo. O cavaleiro dourado moveu habilmente seu escudo e bloqueou o golpe e, percebendo a maldade no homem, decidiu que não poderia deixá-lo vivo. Ainda com o escudo armado na defesa, dobrou o joelho esquerdo e rodopiou com a sua espada num golpe lateral que atingiu peito do soldado, a única parte com armadura. Sua espada irradiou um fraco brilho dourado, cortando a armadura como se fosse de tecido e o atingiu no peito, na altura do coração. Retirou a espada e o homem tombou com sangue jorrando intensamente pela ferida, formando uma grande poça de sangue no chão.

Embainhou a espada na cintura, retirou o elmo e exibiu seu rosto com uma curta barba ruiva, assim como os seus cabelos, molhados de suor. Tinha os olhos verdes e algumas sardas espalhadas pelo rosto marcado pelas batalhas. Estendeu a mão para que a senhora no canto do quarto pudesse levantar e sorriu. O rosto da mulher estava inchado de tanto chorar, mas abria um largo e belo sorriso de agradecimento.

Virou-se para Leon, que estava em pé segurando o braço quebrado e estendeu a mão direita em sua direção com os dedos abertos. Uma fraca luz dourada surgiu em sua mão e iluminou o garoto. Leon sentiu seu braço formigar e parar de doer. Estava curado!

— Você é um Cavaleiro do Dragão Dourado! — ele disse com uma alegria contagiante na voz. O cavaleiro sorriu como resposta.

— Sou Sir Jonathan Marath. Qual a sua graça, criança?

— Leon Garden, senhor! Eu também quero ser um cavaleiro dourado, me leve com você!

— Você é um menino muito corajoso! Creio que tenha futuro. Mas deve ficar aqui para proteger sua mãe. — E, olhando para a mulher, mudou sua expressão para uma mais séria. — Vocês devem deixar a cidade. Eles mandaram poucos homens acreditando que seria fácil tomar a cidade, mas voltarão com mais homens da próxima vez. Junte todos os sobreviventes da cidade e migrem para a capital. Lá é mais seguro.

— O que eles querem aqui em Heikville? Não estamos em nenhuma rota militar — ela perguntou. Mas na verdade estava pensando no seu marido e filho mais velho. Não entendia porque floristas tinham que lutar aquela guerra.

— Eles estão tomando toda as cidades na margem do Rio das Almas, milady. Acredito que querem controlar essa importante fronteira para Loivty. Os tempos não estão fáceis. — E virou para o menino que o olhava com grande admiração. — Cuide de sua mãe e os outros, Leon. Eles vão precisar de sua coragem.

Ele disse o meu nome, pensou todo orgulhoso. Não se conteve de alegria.

— Sim, senhor! Pode contar comigo! — fez uma reverência. O cavaleiro respondeu à reverência, fez um aceno triste para a mulher, colocou o elmo, virou as costas, montou no cavalo, que o aguardava na porta da sala, e partiu à galope.

Leon e a mãe saíram da casa pela porta arrombada e olharam o cavaleiro deixando os portões da cidade. Vários sobreviventes da cidade, guerreiros, mulheres, crianças e idosos estavam na rua celebrando a passagem do herói do dia. Viva! Viva o Cavaleiro Dourado! Estavam rindo junto com os demais, mas olharam para o chão abarrotado de corpos ensanguentados de soldados e civis e viram o corpo pai, morto ao lado do irmão.

...

A algumas milhas dali, Sir Jonathan estava apenas com o roupão de lã que usava abaixo da armadura. Limpava o sangue de sua espada e armadura no Rio das Almas. Seu corcel estava ao seu lado, também sem sua armadura de batalha. Estava solto e comia as folhas de uns arbustos na beira do enorme rio. Nesse ponto, mal era possível ver a margem oposta. Não sabia bem o motivo, mas pensava no garoto que queria ser um herói e sorria.

— Fez muito bem hoje, cavaleiro — disse uma voz que vinha de trás, interrompendo seus pensamentos. Virou-se e viu um senhor bem baixinho. Usava um chapéu de pescador, um camisão velho de lã e uma calça de couro. Acariciava o cavalo com ambas as mãos.

— Sim, mas não devíamos interferir em guerras mundanas — respondeu, como se o conhecesse de longa data.

— Não é uma guerra comum. Os servos estão por trás dela. — O velho pegou um ramo de folhas e serviu ao cavalo. — Eles dominam o rei louco.

— Sim, faz sentido! — disse como se as peças se encaixassem em sua mente. Virou-se e olhou para o velho, que ainda acariciava o corcel. — E o que eu devo fazer, senhor?

— O que acha, cavaleiro? — o idoso virou-se e encarou Sir Jonathan. Seus olhos cintilavam com a luz do crepúsculo. Não tinham pupila nem íris. Eram brilhantes e belas esferas douradas. — Você deve salvar o mundo!