Leões no Paraíso

Parte I – Ecos

É madrugada do dia doze ou treze de maio na Avenida Nove de Julho.

Passadas ruidosas e agudas invadem a calmaria do túnel urbano acordando fantasmas em ecos que gritam passo a passo; vozes que emulam um piquete em guerra invadindo a construção dura e mal iluminada. Longe de uma invasão territorial, o instrumental é apenas uma dupla de moços-garotos, desses que existem aos punhados em São Paulo, fugindo da noite boêmia; talvez não da noite, mas das criaturas que a habitam. Uma delas em particular: um pescoço trabalhado que liga um rosto cerrado ao corpulento e ruidoso resto do corpo – seus passos são pesados e determinados, levantando poeiras de ênes fantasmas desesperados.

Armado com uma arma qualquer; letal como todas as outras.

- Corre. O cara tá armado. – grita um deles, ao ver o cano curto apontando para eles. Era um moreno qualquer; Pedro Silva talvez fosse seu nome. O segundo olhou pra trás, Mário Freitas, quem sabe.

A luz da cidade apaga-se toda de uma vez, encerrando-se num mesmo momento. No céu, um relâmpago golpeia o paredão celeste e sua corda tensa atinge alguma usina geratriz de energia. O túnel, pouco claro, mergulha mais ainda escuridão, e a lua, para desespero dos dois, esconde-se além do concreto. Eles ainda correm, mas feito cegos acompanhando o descompasso do sangue; muitos fantasmas ainda cantam nos ecos e a multidão ainda avança na escuridão do túnel.

Dois tiros. Milhares de chicotadas no ar parado e indefeso. Mas ainda correm, desimpedidos e desinteressados em saber se os tentos atingiram o alvo desejado: eles. Correm sem destino algum, pois se destino existisse, o deles já haveria de ter terminado. O ar que até então roçava em seus rostos, deixou de tocá-los, pois em breve, não muito, os dois distinguem dentro daquele buraco-negro, o brilho de uma luz fraca e crescente. Os fantasmas não cantam mais ecos de passos, mas sussurram pios baixos e agudos vez em nunca.

O caminhão de luz avança na direção deles e não existe calçada para desviar daquele trem de misericórdia. Não vêem nada além do círculo de luz sem foco e extrudente, escutam as vozes sombrias da escuridão e ainda correm - impetuosos.

Engolidos pela imensidão daquele trem da misericórdia com destino certo ao infinito, eles trespassam a fronteira da escuridão com a eternidade e se vêem num grande hectare de pessoas; um gigantesco campo aberto velado por um céu de nuvens brancas e apinhado de gente de todos os cantos e defeitos daquele país.

Parte II – Canções

Ou Mundo.

Aquele pórtico de luz revela-se muito mais do que a simples saída do túnel vaidoso de São Paulo. A luz das nuvens brancas não revela no campo apenas pessoas perturbadas, mas também as manchas escarlates que tingem a camisa linho de Pedro e Mário. O fato é mais fácil de assimilar do que aquele descampado infinito.

A grama é muito pisada e mal cuidada, embora ainda bastante verde – e sabendo de sua condição perfeitamente, Pedro teve certeza que nada ali morre. As pessoas têm ou tinham poucas coisas em comum entre si, mas partilham da mesma sina e, muitas vezes, do mesmo comportamento. A tristeza, a conformidade e o desentendimento são os padrões que mais se repetem naquele lugar onde se entregam os mortos.

Os mais velhos são os mais calmos e conformados com aquela situação mastigada para eles, mas centenas de pessoas choram aos cântaros aos cantos do campo; muitas descontroladas e sem terem o conhecimento de sua própria falta de respiro. O mais mórbido, no entanto, são os milhares de bebês espalhados pelo campo, desamparados e sujos. São eles que compõem a perfeita imagem do descaso da violência em vida e morte, pois lutam desesperadamente por um segundo despacho que jamais viria.

Muitas mulheres prestam auxílio às crianças desamparadas ou procuram por desalentados e desesperados para oferecer o ombro por um conforto breve. O triste é observar que a grande maioria dessas boas samaritanas, assim o faz simplesmente para garantir um lugar de preferência no ‘céu’; como taberneiras que procuram clientes mesmo em covas de leões. Leões, exclusive, que bradem rugidos incessantes além da imaginação daquelas pessoas que ainda tinham no corpo o fardo roto que carregaram na hora da morte – fosse um belo terno de caixão ou o avental durante a domiciliar invasão.

Há de tudo: crianças pobres e rebentos ricos – distintas clara e unicamente na vestimenta, mendigos e alguns cães políticos, filósofos e alguns bêbados, adolescentes e muitos veteranos, solitários ou falsas famílias; uma multidão desordenada que sabia apenas estarem mortos. É de se notar, e os dois rapazes o fazem com cautela, que não se trata de um píer apenas de lágrimas e tristeza, pois famílias inteiras se reúnem – por mais terrível que isso possa parecer, e soletram no rosto um sorriso sincero e conformado, dando margem, inclusive, à felicidade.

Mas nada ganha mais a atenção de Mário e Pedro do que os pequenos corpos indefesos de pequenas crianças jogadas ao relento; deus sabe lá do que haviam morrido – e chagas no corpo até revelam algumas causas que apertam o coração. Ficam jogados no chão feito lixo; impotentes para andar ou engatinhar, eles choram e gritam incapazes de felicidade ou tristeza – muitos deles, novos demais para qualquer ímpeto de felicidade, conhecendo apenas a tristeza daquele abandono. Choram e gritam, pois são as únicas formas de protesto que conhecem, além de respirar.

A visão do além é extensa demais para a capacidade limitada dos divisores cegos de Pedro ou Mário e eles olham para tudo aquilo que não conseguem enxergar, pois tudo que vêm está em toda parte que alcançam. Os dois amigos chegam nessa doca do Fim para conhecer o que vem depois.

Olharam, por fim, para o único lugar para o qual não haviam olhado: para cima.

Parte III – Silêncio

Para cima bailam nuvens em formato de Anjo que num primeiro momento encanta tanto Pedro como Mário - criaturas humanóides aladas desprovidas de carne ou pele ou qualquer coisa que preenchesse seu eterno vazio, verdadeiros insetos de luz, mas menos profundos que vaga-lumes. Querubins e Serafins são seus nomes e milhares de outros seus apelidos e suas alcunhas; sua única função parece ser apenas bailar no céu dividindo a luz das nuvens feito cristais – assim pensa um recém-chegado naquele porto.

Milhares de Arco-Íris viajavam de ponta a outra daquele lugar, todos sempre fino e cortando um anjo pela metade; potes de ouro incontáveis e diabólicos eram verdadeiros tesouros no bolso de deus, escondido sob a capa incomensurável e intransponível da mão do demônio. Era tudo ligado: a vontade de deus te levava ao cangote do diabo.

Parte IV - Gritos

Filhos de bordel, os dois inválidos vêem as cataratas imensas de pessoas que, aos pares, se lançam até o fim do horizonte, desaparecendo no abismo do Tempo. Verdadeiras filas intermináveis para, no fim, cobrar de deus ou do diabo a eternidade prometida. Mesmo aqueles que nunca rezaram em vida e aqueles que davam a hóstia de comer ao cachorro, pobre católico sem escolha, se enfileiram e respeitam os limites até onde conseguem – acreditando naquele lugar como a real comprovação de qualquer religião em vida, embora não tenham certeza de quem os atenderia ao final daquela espera. Todos a respeitam. Respeitam seu limite e a sua demora, temerosos de chegar ao fim, é verdade, mas ainda mais verídica era a curiosidade para ver a que Final estariam se submetendo estando naquela fila. Um debate que corroeria os restos da consciência daqueles homens e mulheres e depravados e assassinos e policiais e todo tipo de corja humana habitante da vida e agora, daquela doca da morte; mas nenhum animal.

Nenhum animal, nenhum leão no ‘paraíso’. Apenas homens e toda sua extensa variedade, cantando nos corredores do mais deformado bebê até o mais velho dos velhacos, o sorridente alquebrado dentre os tantos outros viciantes caprichos do diabo – ou experiências de deus. Este último adorado que, certamente, deveria estar em algum lugar daquele céu olhando tudo e zombando de todos; escondido em nuvem, ou no corpo de alguma dessas taberneiras loucas pra prostituírem-se a ele em troca de um bom lugar no final. Um dos dois era o diabo, isso é claro. E o outro, por conseguinte semelhança, deus.

Mário Freitas e Pedro Silva tomaram lugar na primeira fila que viram sem se importar em saber se cada uma tinha um rumo diferente. À frente deles, uma mulher esguia e magricela carrega uma criança maravilhosa no colo: um bebê negro como a noite, tirando toda a tonalidade daquela pele branca da mulher, como se se alimentasse da melanina parca da criatura branquela. Ela bailava o bebê ou ele a bailava – o que parecia ser mais provável, mas sacudiam-se temerosamente e o bebê não fazia menção de choro nem nada mais, embora Mario tenha visto um desejo incomensurável por seios naqueles olhos de pequeno negrinho. Leite ou desde já um apreço pelo colo feminino, nem Pedro ou Mário puderam definir.

Andaram durante minutos incontáveis naquele fim de existência e muitos e muitos grupos se formaram do lado da fila, incapazes de tomar lugar nela. Muitos, na verdade, tendo saído da própria, já desencorajados de ir até o fim. A mulher da frente é uma daquelas recolhedoras do início da fila, buscando naquele negrito a sua própria salvação.

- Por que o bebê? – tentou Pedro, não escondendo sua desafeição com a cor do pequeno.

- E te interessa? – respondeu a leitosa.

- Deve interessar se estou perguntando.

- Vá pro inferno. – retrucou ela oportuna e saiu da fila. Jamais a viram novamente, mas Mário teve certeza de ver o bebê nos braços de uma outra, um pouco mais a frente.

Parte V - Chamados

A branca não deixou a fila sozinha, junto dela uma verdadeira horda de pessoas desistiram da caminhada e puseram-se em grupos esparsos longe dela – fugindo de seu compromisso demorado e cansativo. Os dois caminharam até alcançar a outra ponta, fechando o vazio criado pela debandada. À frente deles, um velho acompanha a fila carregando um sorriso macabro no rosto – um profeta alquebrado e sujo.

- Sabe onde isso vai dar? – perguntou Mário ao velho, mas ele zombou.

- Está agoniado meu jovem? Poderia ter vivido mais.

- Sim. Mas onde essa fila leva?

- Ora. Ninguém sabe. Eles devem saber. – apontou para os Anjos.

- Eles nos ouvem? – tornou a perguntar Pedro.

- Tente. – Pedro olhou para os insetos translúcidos e hesitou, voltou a falar com o velho.

- Já falou com eles?

- Não. Eles não me ouvem.

A fila não pára de andar um momento sequer, mas ainda assim não parece fazer menção nenhuma de chegar a algum lugar, tal sua extensão grosseira – pelo menos até onde vai à visão fraca de Pedro ou de Mário ou das mulheres samaritanas. Aqueles que não se enfileiram, empoleiram-se nos poucos espaços que sobram no campo, margeando a fileira de fantasmas – sem se mover, é claro; olhar para o descampado que acompanhava a fila dos dois lados era deparar-se com pessoas atacadas por suas próprias emoções em escalas abissais. Muitas se jogavam no chão e jamais se levantavam, tendo sua própria consciência e o fraco matiz do corpo consumido pela grama, fazendo parte de sua própria constituição.

Era um ritmo lento e Pedro pôde perceber claramente resquícios de rostos no relevo da grama, algumas coxas que se precipitavam acima do piso e outras partes mais – era uma particularidade daquele lugar, pensou ele, pois não havia percebido nada de tão horrível como aquilo até aquela parte da via sacra – ou crucis? E a cena se repetia mais e mais – interminável e crescente no tocante à bestialidade do espetáculo.

Parte VI – Sussurros

Num pio baixo e levado, imitando o vento sibilante, os insetos bailam e dançam nessa festa eterna de espíritos errantes buscando, no Paraíso, uma parte perdida ou escondida de si. Esses tais insetos-Anjos, para sempre presos naquele matiz translúcido, não bailam uma valsa de boas vindas, mas dançam o ritual da carniça esperando apenas a oportunidade de desceram feito abutres para se valer da carne humana. Pobres filhos albinos concebidos de uma união embriagada entre deus e o diabo; ganharam asas por não conseguirem pisar em grama firme e não faziam mais que voar e reclamar a carne desejada.

Parecem cantar em trompetes e clarins, tudo num sussurro de murmúrios baixo, tal qual uma reza segredada somente aos que conseguiam ouvi-los, embora todos pudessem. Anjos em alto-céu são como Sereias em alto-mar, perdidamente donas de seu território e apenas clamando por sua presa, aquela da qual conseguirá a carne real deixando pra trás uma eternidade de espera e asas para o próximo degredado aos céus do paraíso.

Um destes seres magníficos desprega-se do céu e cai vertiginosamente em direção a um grupo de garotas mortas todas ao mesmo tempo, vítimas de acidente de carro. O anjo canibal, liberto de sua pena na solitária, cravou seus braços dentro da garota e puxou sua própria essência consciente, seu espírito malogrado e tresloucado que dera cabo, não apenas de sua vida, mas de todas as outras amigas que a rodeavam – punitivas e acusadoras. A essência evanescente deixou o corpo da adolescente e, Pedro ou Mário, puderam ver um exato momento em que a menina alou-se para que, enfim, seu próprio matiz se elevasse incapaz de manter-se na superfície. O anjo tomou aquele corpo vazio pelos braços e seu corpo translúcido incorporou-se no corpo maravilhoso de mulher – a maioria que olhava não notou, mas Mário estava atento.

- Não era um anjo homem? – se é que isso existe, duvidou ele em pensamentos.

- Era sim. Alguma dúvida de que vai ser lésbica? – sorriu Pedro, preconceituoso.

A moçoila deixou suas finadas amigas sozinhas em grupo e entrou na fila bem atrás do velho alquebrado com quem Pedro e Mário haviam confabulado. Aos poucos ela tira sua roupa por completo, ficando nua por inteiro, para delírio dos adolescentes lascivos e para o pudor dos pais e mães mortos pela filha.

- Ei! – chamou Pedro, a garota.

- Aonde essa fila vai levar?

- Não sei. – mentiu ela em sussurros.

Parte VII – Ecos

Milhões e milhões de fantasmas segredam tudo a todos à medida que a fila ganha espaço naquela falta de vazio; falando em alto e bom tom, aos poucos iam se desacostumando com a morte do prefácio. Parecem esquecer, a cada passo, um pedaço da vida que haviam deixado para trás – ouvem-se, inclusive e ainda tímidas, algumas risadas e graçolas no caminho. Mário e Pedro estavam à vontade e já não carregam aquele peso emocional todo que se acumulou no começo da caminhada; trocando conversas com a moça nua que desfilava na frente deles, os dois passaram grande parte do caminho tortuoso. Seguem-na com um tesão terreno do auge de uma adolescência tenra: era fato que ambos anseiam meter nela, mas no tocante ao sexo da garota era justamente aonde a glande de cada um não encontrava seu zênite - lembrar que tinha sido um Anjo-macho que encarnou na garota, já acalmava a circulação do sangue.

Uma gigantesca montanha foi aparecendo aos poucos do lado direito. Primeiro como um pedregulho perdido no céu, mas à medida que caminham o andar da fila, o pedregulho transforma-se em rochedo, e de rochedo em monte, e de monte, enfim para uma montanha colossal. Dentes afiados no topo apareciam, naquela altura da caminhada, para todas as outras filas que cruzavam o deserto verde para o finito. Cinza e inalcançável, já que ao sopé dela estava um abismo infinito, de lá saltavam ecos incríveis. Ecos de clamores animais: rugidos potentes de milhares de leões, linces, onças, panteras e todos os outros tipos de animais mortos. Farfalhar de asas ecoava no abismo como uma flâmula gigante – para não mencionar o silvo cantante de cada pássaro que levantava da montanha um hino de morte, um réquiem criado para velar a breve passagem dos homens ante a montanha – mas havia de tudo, de relinchares eqüinos a urros pacdermes.

Uma sinfonia de ecos zombeteando dos homens que caminham sem destino naquela fila. A montanha parece abrigar todos os animais mortos que se juntam ali somente para gritar contra os homens – claramente, esses animais pertencendo a um nível de existência diferente daqueles que caminham a fila interminável. Aquela montanha, na verdade, não passa da ponta de algo maior, a cabeça de uma agulha posta para fora do lugar daqueles que deixaram o mundo dos homens para habitar savanas e florestas inteiras criadas a partir da própria necessidade de cada animal, podendo todos – de leões a formigas, viverem em perfeito equilíbrio. Era um lugar que o homem não poderia habitar e Mário sabia disso e Pedro sabia disso, mas os dois acharam graça quando risadas finas macaquearam um resultado interessante e óbvio: seus parentes mais próximos tinham lugar; o erro era uma brecha pequena, mas infinita.

Não, o homem não desgraçou o resto de sua família evolutiva, e os símios tinham lugar naquela montanha de ecos. Não os homens, que são canibais. Que são anjos contra si e contra todos. Não eles que preferem acreditar em paraísos menos sangrentos, quando a realidade que criamos nos impede de morrer tranquilamente. Não eles que achamos ser muito mais por sermos mais centristas em nossa própria devoção. Não eles que nunca saberemos nos colocar como uma parte de um todo que necessita andar pra frente de maneira uniforme, pra que haja equilíbrio. Não eles que desconhecemos o equilíbrio, ou pior, nós que não acreditamos no equilíbrio por sua conotação erroneamente deturpada – usada agora somente para o caos e para devoção própria. Não nós.

Parte VIII – Canções

Passada a montanha dos animais, uma outra, que ocupa todo o horizonte, se desenha na frente da fila. Homens começam a perder a cabeça à loucura por entender ali, o fim daquela caminhada. E Pedro e Mário, indiferentes, decidem sair da fila, tão covardes como a maioria do restante. A dificuldade é tanta pra seguir em frente que os dois, ao ver a fila continuando têm certeza que estes que ficam são aqueles anjos canibais que esperam milênios por uma chance para cruzar o deserto vendo a fila passar, cantando coisas de amor.

E cantar era o hino daquela etapa; já fazia algumas boas horas que Pedro notara o murmúrio bárbaro das conversações cessando aos poucos – como se o assunto morresse à medida que o fim ia chegando. Depois do cálice da montanha, todos se puseram a cantar num tom baixo e para todos os sis. Cada qual cantando uma música especial para cada um - loucos fantasmas desgarrados que já não viam família, amigos nem nada que lhe amparassem. Pois ao lado da fila multidões se abraçavam rompendo limites de família, amizade ou qualquer outro valor que os impedisse, em condições normais, de entrarem em contato. Era como uma missa rezada pelo próprio criador do martírio, mas sem toda aquela falsidade.

Abraçou Pedro o amigo Mário, que teria feito o mesmo um segundo mais tarde. Os dois decidem entrar na fila e segui-la até o fim sem fraquejar como muitos daqueles que abandonavam o caminho para enlouquecerem ou chorarem – ficavam durante anos, centenas e até milênios para tomar coragem e voltar a ela para, enfim, seduzir o seu final. Muitos largavam suas famílias inteiras na fila por não agüentarem mais a cantoria fantasmagórica dos espíritos que caminham a passos lentos e constantes até o fim do Mundo.

Homens, sozinhos, caminham indolentes na fila – muitos deles deixaram suas famílias há muitos anos atrás. Aquele ponto era, talvez, o mais carregado depois do começo da fila, muitas vezes até mais. É onde as pessoas se separavam conscientemente sabendo que não têm mais forças para seguir ou então sabem que se não seguirem em frente, jamais conseguirão. As despedidas são sempre breves e carregadas de lágrimas e cantos – cada uma cantando sua trilha sonora.

E cantando, seguiram Mário e Pedro, sibilando refrões como todos os outros.

Parte IX – Silêncio

No deserto além da Gigante Montanha, uma cantoria de tom baixo e assustador. Dentro de cada fantasma, no entanto, um silêncio mórbido.

A boca canta, mas a mente se cala. Os olhos nada vêem e agora apenas os pés mecânicos se movem pra frente, para não mais sair da Linha. Coração não há mais, nada bate no peito daqueles últimos; se alma ou espírito, algo ainda se agarra com fúria à mente, mas esforça-se por não sair voando como um Anjo sem carne. Aqueles que conseguem manter a lucidez do princípio guardam seus íntimos para si e aqueles que não o fazem viram zumbis e milhares de Anjos partem para o Céu chorando. Muitas almas translúcidas subiram naquele ponto como vapor em uma panela quente.

Atrás de Mário e de Pedro, que seguram as suas mentes lúcidas presas num entrelaço de mãos sincero, jaz um zumbi de rosto fundo e de profundos olhos azulados, porém cegos e ocos – um corpo todo vazio, andando mecanicamente e repetindo o mesmo refrão desde que seu dono o abandonara.

- Esse cara tá me deixando louco. Vamos deixar ele passar. – comentou Mário.

- Se a gente parar, ou sair da Linha vamos ficar que nem ele. Vamos passar esse da frente. Aperta o passo.

Os dois apertam o passo e deixam pra trás uma mulher tristonha. Olhando melhor para ela, notam uma imagem horrível de conceber e aceitar: seu rosto torcia-se das maneiras mais absurdas possíveis, a força que fazia para manter-se sã era demais até mesmo para os dois acreditarem ser possível. De seus olhos brotavam lágrimas que nasciam de natureza morta e misteriosa; brotavam de sua própria mente esgotando ali suas últimas reservas de esforço antes de se tornar um zumbi como muitos na fila. Pode-se acreditar, inclusive, que no final, ela desistira de resistir e reservara o restante de sua força justamente para chorar, para se colocar contra aquela existência póstuma de uma forma que a própria pureza das crianças no começo da fila, o faziam – chorando e colocando pra fora em forma de lágrima, seus próprios sentimentos adversos. Olhou para os dois com olhos marejados e vermelhos e disse em tom baixo e com uma voz nevoenta.

- Vão em frente.

E o seu rosto se anuviou deixando uma névoa espessa sair de seus olhos sendo puxada para fora; se espírito ou alma saindo, Mário e Pedro não faziam idéia. Sua boca ainda se abriu num último lamento, mas a exclamação morreu no ar e ela finalmente definhou, e sua essência, agora anjo, olhou para eles antes de alar-se e ser arrastada pelo vento.

Parte X – Gritos

A cantoria de antes mergulhou num silêncio absoluto na essência de cada ser que caminhava ainda na fila errante. Mas agora, mesmo o silêncio obscuro de cada íntimo foi perturbado pelo brado terrível que urrava do campo verde que margeava aqueles que trilham o caminho do fim. Era um lugar onde a fila começava a descer por um caminho sinuoso, e onde os fantasmas podiam ver claramente o exato lugar do paredão final. Era um inferno de gritaria, berros e urros suplicantes.

Mesmo os zumbis mortos que apenas aguardam um anjo tomar-lhes a casca gritam por simples epidemia de desespero. Muitos daqueles que chegam até esse ponto, não conseguem resistir à tentação de se deixar levar pelas conseqüências finais, se entregando ao veneno daquela gritaria – deixando a fila ou deixando o corpo. Mário e Pedro só têm uma alternativa para seguir adiante, e o fazem com maestria. Elevam o bom rock’n’roll terreno a volumes colossais tentando, mesmo com a voz desafinada, transpor o terreno dos berros desesperadores. A fusão da cantoria com o desespero é um espetáculo ímpar de se ouvir e até mesmo de se ver, pois ambos os lados do combate se contorcem para alcançar a nota mais forte e soante, transpor os limites do outro e manter-se como unidade dentro daquele caos ladino.

Anjos e mais anjos eram criados e zumbis e mais zumbis eram deixados para trás.

Parte XI – Chamados

O fim é claro e esconde-se atrás de um paredão de pedras escuras, quase negras. Todo o horizonte é ocupado pelo rosto da montanha, que abre-se em alguns pontos irregulares em que a pedra é recortada toscamente e ladeada com um portão de ferro branco que jamais se fecha. Do lado direito da fila, mas bem distante, segue uma outra maior em direção oposta à deles, como se partissem desse paredão para as docas do inferno em que haviam aportado. Seria mais uma fila como as outras milhares que os dois viram naquele lugar, mas os olhos fracos de Mário admiraram-se quando percebeu maiores detalhes naquela linha maior.

Era composta por seres humanos nus que não tinham uma forma bem definida: a pele não parecia segurar o ímpeto do interior de cada um e vibravam como umbrais ou como superfície de água perturbada. Mas não apenas seres humanos seguiam aquela linha contrária à morte; muitos animais de todos os tipos imagináveis também seguiam aquela fila particular – todos os seres em sua fase adulta e madura. Nenhum daqueles pedaços de gênese tinha cor – todos carregavam e se completavam com a coloração da poeira amarelo-rubro que cobria o deserto daquele lado. O deserto escarlate contrasta com a cor pisada do verde campestre que cobre o lado que Pedro e Mário caminham, a divisão dá-se por um abismo claro e nevoento que separa o lado dos que caminham em direção à morte e daqueles que caminham em direção à vida.

A visão não se estende por muito tempo, já que a dupla segue a fileira de penados e transpõem, sem perceber, os limites do paredão escuro que os separava do fim. Pra desespero, talvez, à frente deles uma outra montanha se ergueu e um novo grande portal abre-se para engoli-los de vez – pelo menos é o que os dois esperam. A gritaria que caminhou com a fila até transporem os portões foi aos poucos sendo acalmada pela música dos anjos. Mas estes, outros.

Ainda muito transparentes, é verdade, mas de comportamento muito menos canibal que antes – talvez fossem os preferidos ou os menos sujos do paraíso. Cantavam com suas vozes secas de força, vozes transparentes e sem vigor, como seus próprios corpos. Era uma música que certamente acalenta as pessoas que entra, mas em nenhum momento emociona ou eleva aqueles que esperam a senha pro inferno – pelo contrário.

- Que porra de música!

O perigo de se tornar um zumbi já não mais existia. Todos estão seguros e muitos, inclusive, saem da fila para descansar e para tomar mais coragem para seguirem andando. Mário e Pedro continuam na fila, ainda de mãos dadas e ouvindo a flauta cantar na boca transparente dos anjos sem graças. Apertando o passo mais forte dentro das alpercatas, os dois finalmente deixam aquela ante-sala preparatória para os detalhes finais daquela vida curta que tiveram.

Última Parte XII – Sussurros

A flauta canta límpida e maravilhosa, pois um bardo errante negou-se a continuar o caminho durante Eras e ficou ali naquele lugar apenas soprando seu flautim fantástico - e a fila seguia sua balada leve a caminho do Infinito. Tanto Pedro como Mário percebeu que a necessidade de manter as mãos juntas era impraticável, pois o próprio corpo parece pedir liberdade – para que possam entrar em contato com aquele ambiente de renovação, deliciosamente nostálgico. O bardo velho não soprava seu flautim sozinho, pois alguns poucos fantasmas de diferentes épocas ocuparam-se ao seu lado entregando-se à música no paraíso. Um pianista o acompanha sentado num tamborete improvisado e deitando em teclas também mal visadas - o piano, na verdade, quase uma imitação de um real; e muitos outros homens e mulheres musicistas tocavam seus instrumentos de cordas acompanhando o ritmo louco de um percussionista negro – Mário notou ser todos os instrumentos muito toscos e mal-feitos.

A última cena daquele filme, estava preste a ser rodada e tanto um como o outro sabem bem disso e aquela sensação de aperto no coração repete-se em suas mentes, que a simula de maneira perfeita – como se, de fato, tivessem um coração no peito.

- Que será que vai acontecer? – pergunta Pedro, num sussurro rouco. Temeroso de ferir a canção com sua voz.

- Não sei.

Atravessam o último pórtico para desembocar em um túnel iluminado apenas com algumas tochas espalhadas por sua parede irregular – uma escuridão mórbida, mas extremamente aquecida e abafada, algo muito parecido com as imagens do inferno. Os sussurros de antes, aos poucos cedem à tentação do silêncio inspirado, a visão também cai sob o veneno da escuridão, e todos os sentidos se apagam por uma necessidade misteriosa. O nível sensorial, no entanto, é fora do padrão e absurdamente mais sensível nesse ponto em que Mário e Pedro estão. Mesmo que os cinco sentidos não lhe prestem mais auxílios para a percepção da realidade, sua mente se encarrega de ligá-los ao ambiente e aos outros fantasmas ainda conscientes.

- Vão voltar... vão encarnar novamente na Terra. – segreda um anjo negro, pois naquela caverna, os anjos adquirem a escuridão da falta de luz. O anjo toca friamente a orelha de Pedro, que não sente, pois seu tato já havia se despedido de sua mente. A audição, que Mário julgou ter sido responsável pela voz do anjo também era inexistente e aquela mensagem não passou por seus ouvidos, mas foi caçada no ar pela teia que sua própria mente tece ao redor de si. A visão dos dois não precisou simular a imagem o anjo indo embora, pois a mente de cada um estava intimamente ligada mesmo com aquela criatura sem carne.

Pedro e Mário notaram-se. Irão ressuscitar e aquela, certamente, é a última vez em que estariam juntos, pois sabe-se lá o que aconteceria com os dois uma vez nascidos e viventes na Terra. Em qual corpo? Se preto ou branco, amarelo ou vermelho, se pobre ou rico, se enfermo ou saudável, se passariam do parto para não serem como aqueles bebês jogados e vistos como moeda de troca por mulheres má samaritanas.

Juntos, abraçar-se-iam se pudessem ver um ao outro e até mesmo sentir-se, mas já não podem. Porém, mesmo um abraço não seria suficiente para traduzir os sentimentos de um para com o outro, de modo que aquela condição existencial que tinham no momento – como se fizessem parte um do outro - era o mais perto que podiam chegar dentro das limitações da própria raça humana. Nada mais era tão puro e sincero quanto aquela conexão sensorial.

- Adeus, cara. Num tem nem como dizer que nunca vou te esquecer. Porque vai ser foda lembrar. – sentiu Pedro, Mário expressar.

- Tô ligado. Num vai ter como, esses caras são fodas.

E partirão juntos para o Fim e para o Recomeço. Nesse ciclo interminável de existência que se resume da maneira mais opressiva entre a vida e a morte – embora a própria existência não se permita limitar a essas fronteiras criadas pelo homem, que consegue forjar de maneira fria e cega, a própria espada que tira sua ‘vida’ breve. O labirinto humano reside na mente, e cada espaço do que não entendemos é a ponta de um labirinto alheio, de outrem, que não nos pertence, mas nos é desconhecido por não nos permitirmos ser mais que do que aquilo que somos, pois temos de ser sempre mais do que aquilo que são os outros.

No tabuleiro da vida, o paraíso não é redenção e a elevação divina, mas o passo que diz: comece de novo.

Talvez, tente de novo.

Bruno Portella
Enviado por Bruno Portella em 01/06/2007
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