A Busca

O fabuloso mundo de Raysh é repleto de reinos exóticos, como o lar dos anjos no polo norte ou o dos demônios no polo sul, além das cidades fundadas por humanos, elfos, anões e outras raças.

Simon Bakhmarsh tinha quase sessenta anos e fazia parte do grupo das outras raças. Para ser mais específico, ele era um licantropo, que é a mescla entre um homem e um animal. Em seu caso, um lobo.

Quando não estava no seu trabalho de zelador de um templo do deus da justiça, Proteus, na ilha de Fritz, perto do polo sul, Simon gostava de passar seu tempo livre conversando com viajantes e aventureiros. Talvez por ser ligado a uma raça selvagem, dava preferência a conversar com clérigos de Roar, o deus criador das bestas. E quanto mais ouvia falar das criaturas que perambulavam pelo mundo, mais ficava fascinado.

— A maioria das pessoas acha que Roar era um invejoso que queria deturpar as criações de Animalia – disse-lhe um clérigo, certo dia, referindo-se à deusa criadora dos animais comuns —, mas isso não é verdade. A natureza precisa de predadores, e o deus das bestas só era um pouco mais criativo. De qualquer forma, nem todas as suas crias são malignas. Se algum dia você viajar por algum campo aberto e encontrar um unicórnio, for a uma montanha e achar algum pégaso ou for ao vulcão no centro do mundo e vislumbrar uma fênix voando por ali, agradeça ao grande deus pela dádiva que ele colocou no mundo.

— Quer dizer que Roar colocou uma criatura boa em cada parte do mundo? – perguntou Simon para um servo do deus das bestas em uma taverna.

— É bem provável. Como eu disse, o meu deus é bem criativo.

— E o que será que ele colocou em Sacra? – questionou Simon, referindo-se ao reino dos anjos no polo norte.

— Até onde sei, hidras das neves, dragões albinos e trolls do gelo.

— E nada de bom por lá?

— Não sei – confessou o clérigo. — Mas nunca se sabe. Como eu disse, Roar é muito criativo.

*

Não faltava muito para Simon se aposentar. E, como todo velho teimoso, insistia em acreditar que havia pelo menos uma criatura boa de Roar em cada parte de Raysh. Algo que não fosse só bom como também inspirasse bondade, tal qual um unicórnio ou uma fênix. E em uma terra fria como Sacra, onde animais terrestres podem ser encontrados com mais facilidade por deixar rastros na neve, tal criatura só poderia ser...

— Uma fênix de gelo! Há uma fênix de gelo em Sacra! – gritou Simon, certa noite, na taverna em que adorava jantar.

O público ao redor ficou estático por alguns segundos antes de cair na gargalhada.

— Simon, seu doido..., só você para inventar essas histórias! – comentou o taverneiro.

— Mas faz sentido! Os animais se adaptam ao clima, e Roar sempre coloca uma criatura boa em meio a tantas feras. Logo, Sacra só pode ter uma fênix de gelo!

— Não existe uma fênix de gelo, seu velho louco! – gritou um cliente, secando as lágrimas de tanto rir.

— E você tem alguma prova? – indagou Simon, com um tom irritado.

— Ninguém nunca viu, oras!

— Só porque ninguém viu, não quer dizer que não exista! – explodiu o velho zelador.

A insistência de Simon fez os clientes rirem ainda mais, e ele teve que se conter para não sacar a sua boa e velha espada e acabar machucando alguém. No entanto, ele não ia deixá-los perder a sua esperança. Ele ia comprovar sua própria teoria.

*

Faltando um pouco mais de um ano para se aposentar, Simon dedicava o seu tempo a estudar mais sobre a fênix. Sem material de pesquisa sobre a ave que acreditava existir, teve que se contentar com informações a respeito da fênix de fogo. Através de muitas leituras e pesquisas, ele sabia que a ave tinha um forte instinto de proteção do mais fraco e era capaz de atacar criaturas maiores que ela, pois era dotada de uma grande força.

Ao ter sua aposentadoria decretada, a primeira coisa que fez foi arrumar equipamentos para a sua viagem e uma passagem de navio para o polo norte – mesmo com muitos risos às suas costas.

Depois de uma viagem longa e tranquila, Simon desembarcou no reino de Sacra, dispensando todos os batedores que lhe ofereciam seus serviços. Não adiantava contratar alguém para encontrar o que ninguém jamais havia visto.

Suas peregrinações o levaram a conhecer um dos reinos mais antigos de Raysh. Simon conheceu vilas criadas por anjos e conviveu constantemente com a frieza e o preconceito que seus habitantes tinham por se acharem melhores que qualquer outra raça do mundo. Apesar de tais dissabores, procurou aproveitar as belas paisagens geradas pela natureza com auroras boreais ou pelos próprios anjos, com estátuas e templos esculpidos em mármore ou gelo – que era difícil diferenciar qual era qual.

Entre uma cidade e outra, Simon tinha de caminhar por dias. Às vezes, até por semanas. E foi em uma dessas caminhadas que passou por uma nevasca na qual parecia que ele estava em um mundo completamente branco. Caminhando a esmo, procurou sair da tempestade até dar de cara com um bando de ursos polares.

Apesar de Roar ser o criador das bestas, Animalia também soube dar vida a seres agressivos. E o rugir dos ursos deixava claro ao velho que a batalha ia começar. Sacando a sua espada, Simon se posicionou, pronto para o combate.

Embora estivesse velho, Simon era um licantropo, o que lhe garantia força maior que a de um humano, além de lutador. Matar o primeiro urso não foi difícil. O segundo e o terceiro só lhe causaram arranhões antes de morrerem. Mas o quarto era resistente e não caía de jeito nenhum, o quinto era tão agressivo que lhe causou um ferimento no braço, o sexto o rodeava parecendo esperar pela melhor oportunidade para atacar enquanto outros cinco apenas olhavam, provavelmente aguardando pelas sobras.

A situação de Simon não era nada boa. Os ursos cobriam todas as rotas de fuga. A última na cidade, onde descansara, estava a dois dias de caminhada. A próxima, a três, o que tornava as chances de ele ser socorrido ou gritar por ajuda totalmente nulas. A leste, nenhum sinal de vida. E a oeste, a tempestade silvava cada vez mais alto. O crescente som da tempestade se assimilava ao perigo que aumentava a cada momento. Acuado, ele recorria aos instintos mais primitivos de sua raça e rosnava procurando intimidar os ursos. Infelizmente, eles não pareciam ter motivos para recuar.

Só quando o som se tornou insuportável que o velho parou para analisá-lo e percebeu que não era um som de um vendaval: era o guinchar de uma ave.

*

A fênix de gelo saiu da tempestade como a ponta de uma lança atravessando uma armadura. Era azul-celeste e tão grande quanto uma águia, com garras e bico de ave de rapina, além de olhos brancos e brilhantes como pedras preciosas. Conforme voava, deixava atrás de si um rastro de cristais de gelo.

Simon estava tão maravilhado que só notou um urso se aproximando no último instante. Por sorte, a fênix o salvou com uma investida violenta que matou o animal na hora. Os outros ursos tentaram atacá-la com golpes de pata ou mordidas, mas ela alçava voo tão rápido quanto mergulhava.

A fênix investiu duas vezes e matou um urso em cada golpe. No terceiro ataque, um teve sorte e conseguiu atingi-la na asa. A ave se arrastou para longe deles, impedindo ser cercada, e os animais rosnaram como que para intimidá-la.

A fênix gritava cada vez mais alto, indicando que não ia se acovardar. E Simon reparou que ela se desfazia em flocos de neve.

Em seu último guincho, ela se desfez gerando uma tempestade muito mais poderosa que a primeira que Simon havia enfrentado. O velho fincou sua espada no chão, procurando não ser arrastado, o que foi inútil, pois o vento não passava por ele. Em compensação, os ursos foram arrastados para longe.

Assim que o vendaval passou, Simon foi até o local em que a ave havia se desintegrado e viu um pequeno monte de neve se remexer. Ao remover com os dedos, encontrou um filhote de ave azul piando baixinho.

— Então é assim que você renasce... – comentou enquanto a avezinha o olhava com um ar de curiosidade.

Simon pensou em tomá-la para si e levá-la para Fritz. Poderia colocá-la em uma gaiola e expor ao mundo que estava certo o tempo todo. Receberia montanhas de ouro, teria seu nome marcado na história do mundo e seria lembrado por todos.

Ao acariciar a ave e ouvir o seu guinchinho, lembrou-se que seu objetivo nunca fora ficar rico ou provar aos outros que estava certo. Ele só queria comprovar a si mesmo a sua teoria.

Simon montou sua barraca por lá mesmo e alimentou a avezinha com pedacinhos de sua refeição. No dia seguinte, ela já conseguia voar.

O velho sentiu uma pequena ponta de preocupação ao ver um animal tão pequeno à solta em um mundo cheio de criaturas violentas. Porém, sabia que ela podia se defender.

Enquanto a observava alçando voo, uma nova ideia lhe vinha à mente...

*

Alguns dias depois, Simon encontrava-se na zona portuária e comprava uma passagem para o reino de Wutao, o reino oriental, quando o anjo que o atendia perguntou:

— Para qual lugar pretende ir?

— Quero ir para o sul de Wutao – explicou o velho. — Eu soube que lá tem muitas tempestades elétricas e quero confirmar uma nova teoria: descobrir se existe uma fênix de raios...

Davi Paiva
Enviado por Davi Paiva em 14/07/2016
Código do texto: T5697478
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