Na Sombra no Carmim

Os contínuos passos denunciavam sua aproximação da sala principal da Gruta de Snakefen, invisível ao mundo, escondida em plena vista na grande montanha de mesmo nome. A contínua partitura dos passos se interrompeu com o abrir da grande porta escura, que mesmo construída a partir de diversas pedras, não perdia o caráter homogêneo e imponente, necessário para combinar ao salão que dava acesso. A grandiosidade da sala não estava em sua estrutura quadrangular e baixa, nem na fraca iluminação das tochas rentes às paredes de pedras ásperas cuja umidade do mofo ajudava a aquecer o lugar. Junto às sombras, o vulto humano distinguiu-se em frente à luz. O vulto iluminado tinha uma fascinante forma, exausta, porém austera e imponente. Os curtos cabelos ruivos caiam sobre a nuca e sua pele clara se distinguia perante suas vestes negras. Na fraca luz da gruta apenas seus olhos saltavam sobre seu rosto. A jovem adulta começou a mover seu corpo magro e proporcionalmente esbelto cômodo adentro.

- Ora, ora. Parece que você se saiu bem Kate, tirando alguns… pequenos imprevistos? - Disse o homem, que analisava os ferimentos em ambos os braços da jovem enquanto soltava uma leve risada.

- Não faça piadas - o tom de Kate propelia respeito mesmo em sua lânguida serenidade. Lançou um rolo contra o homem. O pergaminho que antes estava nas esguias e hábeis mãos da ruiva, foi de encontro ao peito do homem - Saiba que seu plano quase deu errado - Disse a jovem enquanto se dirigia à porta oposta a qual entrara.

- Confio no seu potencial, Kate - o homem analisava o pergaminho cuidadosamente, mas não notou que a jovem já estava saindo do salão - Ei! não terminamos ainda.

A jovem fitou o homem com seus olhos enegrecidos pela fraca luz do ambiente de transição. Ele indicava com a cabeça um objeto que estava à sua direita, sobre uma mesa velha de madeira levemente avermelhada. Era um livro cuja capa preta era grafada com caracteres que à primeira vista eram desconhecidos. Ela apanhou-o e seguiu para seu aposento particular, onde seria possível confirmar a hipótese sobre o livro ser uma recompensa.

O espelho velho de sua alcova curta revelava a real gravidade de seus ferimentos, não eram tão ruins quanto o imaginado, mas não deixavam de impressionar os olhos desatentos, adjetivo que os ágeis olhos de Kate não podiam se dar ao luxo de ter.

Averiguando os frascos translúcidos que serviam de suporte aos elixires e às pequenas garrafas que reservavam as fluídas poções, Kate começou seu tratamento.

Contornou os pergaminhos jogados sobre o chão para chegar em sua cama de mogno, o único móvel que valia a pena em seu aposento. Os dizeres dos pergaminhos já haviam sido absorvidos, já faziam parte do conhecimento sobre poções da garota, agora apenas enfeitavam o chão de pedra lisa. Encarou a estante onde havia deixado o livro escuro, juntamente com medicamentos usuais e terapêuticos cuja carga de magia se dava apenas pela química natural. A estante dos remédios era oposta à uma outra, na qual descansavam facas e seus instrumentos de luta corporal. De todas aquelas armas metálicas a que mais se distinguia era a espada de punho forjado em forma de víbora. Mas nenhum daqueles metais em desuso valiam tanto sentimentalmente quando seu colar de ouro, cujo pingente assumia a forma de uma cruz equilátera, que dependurava-se rente ao espelho do toucador.

Terminando de enfaixar o braço esquerdo, e notando a cicatrização mais rápida que o usual de seus ferimentos, levantou de sua cama escura para apanhar o livro misterioso. Era a hora de desvendá-lo.