Toque de (não) lucidez

Não me aliviaria nem um pouco a experiência de não escrever. Eis que me deixo invadir pela curiosidade do leitor. Sucede que eu fui cortar meus cabelos e me surpreendi com a enorme sensibilidade no toque dos dedos de quem me cuidou a vaidade.

Os movimentos rotineiros e comuns à prática desta vez foram, pra mim, uma dança que se fez intimamente, bem implícita e despretensiosa. Pelo espelho eu assisti a uma cena dramática da qual fui apenas coadjuvante, mas não por vontade própria. Todas as matérias que estudei em física sobre espelhos, por ora, não valeram de nada. Não explicariam vinte por cento do que me ocorreu naqueles trinta minutos. A teoria da ótica desconhece o que meus olhos puderam ver e receber, sem ilusão.

Reparei, e não deixei de estar ciente, que havia mais pessoas entre nós, mas estavam ocupadas demais pra nos notar. Elas tinham horizontes pra debruçar seus olhos, enquanto os meus se fixaram timidamente nos gestos mais delicados, vivenciando preciosos sentimentos que as mãos do maior pianista jamais puderam transmitir ao piano ou ao ouvinte apreciador.

Foi como estar em um observatório, mas não ser o centro das atenções. Isso, de certo modo, não me fere. Posso garantir que não se percebeu nervosismo algum em mim, mas um universo de insegurança alheia me rodeou, apesar de todo um trabalho cuidadoso se desenvolvendo pouco a pouco.

Pequei por não ter tido a coragem, ou audácia, de aceitar a bebida que me foi oferecida, para que, novamente sem pretensão, eu me deliciasse ainda mais com a cena que se desenrolava. Após uns minutos, algumas risadas e comentários sobre coisas do cotidiano de muita gente, me dei por vencido e aceitei o fim da minha estadia naquele paraíso de prazeres. Paguei pelo serviço recebido, tomei em mãos um cartão de visita e me sujeitei, desde já, a retornar pelo menos em quatro novas ocasiões. Não duvido que cada uma delas tenha seu mistério inédito pra me revelar.

Estou agora em casa, com pensamento latejante. Ainda me invadem, por teimosia, o clima e o cheiro que aquele ambiente me proporcionou. Se retoma, a cada segundo na minha mente iludida, as mãos de artista que por vezes deslizaram sobre a minha pele, as sensações que me percorreram corpo e coração, uma gama de emoções que eu há tempos não provava. Mas, de sensato que sou, trato de espantar seletivamente as memórias, como um palhaço calculista que assusta uma criança e faz outra sorrir. E digo outro... Das conclusões que obtive ao término, vai a que não lhes posso omitir: a minha barba rasa e mal desenhada é, sem engano algum, um tanto mais charmosa que a dele.

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Foz do Iguaçu / Paraná

Renadson Augusto
Enviado por Renadson Augusto em 23/06/2018
Reeditado em 23/06/2018
Código do texto: T6372121
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