MELTING (Derretendo)

Harold Stone (Wild Bill Stone) está pronto para fazer a viagem que sempre desejou: ir de Anchorage, Alasca, onde mora, até Keflavik, Islândia, visitar a irmã, que não vê há dez anos, em seu avião monomotor de dois lugares. A autonomia de voo do avião é de 1200 quilômetros na velocidade cruzeiro de 300 km/h. Então, ele terá que fazer cinco escalas para chegar a Keflavik distante 5.234 quilômetros de Anchorage.

Harold é fisicamente parecido com o lendário Wild Bill Hickok; também gosta de jogar pôquer, apenas como passatempo, daí o apelido de Wild Bill. Adora e é adorado pela família: Frank, seu filho; Marie, sua nora; Suzy, 10 anos, sua neta e Roy, 8 anos, seu neto.

Suzy e Roy também adoram o avô e gostariam muito de participar da viagem, mas eles não podem faltar às aulas por tanto tempo e também não há lugar para os dois no pequeno avião.

Hora da partida, ao se despedirem, Suzy e Roy mostram-se bastante tristes. Wild Bill abraça-os e os consola:

_Little Princess, prometo que quando voltar nós faremos uma viagem de trenó até Spenard. My Boy, você é quem vai dirigir, hein! Então, vão se preparando. Mantenham os Huskies treinados.

Wild Bill Stone abraça todos, um a um; um abraço apertado e um beijo no rosto. Afaga cada um dos seus seis Huskies. Deu a eles nomes russos de acordo com a personalidade de cada um. Os machos: Sasha, defensor; Arman, protetor; Rahil, cordeirinho; Liev, leão. As fêmeas: Irina, paz; Ninochka, graciosa.

Enxuga as lágrimas com as costas dos dedos, entra no avião, acena com a mão e decola. Ele fará contato com os familiares no final de cada escala. A penúltima escala será em Nuuk, capital da Groelândia. De Nuuk cruzará o sul da Groelândia e chegará a Keflavik.

Cada escala tem o tempo de 4 horas. Wild Bill se programou para fazer duas escalas por dia; pernoitaria no local da segunda escala e na manhã seguinte seguiria a viagem. Contando com isso, chegaria a Keflavik na tarde do terceiro dia, se não houvesse nenhum contratempo.

Na manhã do terceiro dia despertou em Nuuk. Tudo havia corrido como esperado. Ligou para a família, comentou a chegada a Nuuk, a estadia e a beleza da cidade. Despediu-se com beijos e abraços e os comunicou que decolaria em trinta minutos; chegaria a Keflavik aproximadamente às 14 horas, local.

Wild Bill decolou e em pouco tempo deixava de ver as casa da cidade. Só o que via era um imenso lençol branco que se estendia em todas as direções. É o seu mundo. Nasceu e sempre viveu neste ambiente de neve perpétua. Adora passear de trenó puxado pelos melhores Huskies do mundo (os seus Huskies, claro), deslizar de esqui nas pistas das montanhas, patinar sobre lagos congelado e simplesmente apreciar a neve caindo suavemente. Pensou, divertidamente, que deveria ser chamado de Wild Bill Snow e não Stone.

De repente, o avião apagou: uma pane elétrica. Mas, no aeroporto de Nuuk ele havia passado por uma revisão e os técnicos garantiram que ele estava em ótimas condições. Bateu na chave várias vezes, mas nenhum sinal. Deveria ter soltado algum fio.

O avião deslizou suavemente para o lençol de neve. No impacto, o avião ficou parcialmente encoberto pela neve. Wild Bill saiu ileso, sem nenhum arranhão. Isso de pouco servia, considerando que ele morreria congelado se não fosse socorrido em pouco tempo.

Decidiu revisar o aparelho. Se descobrisse o defeito poderia usar o rádio e se comunicar com a base mais próxima. O avião estava irremediavelmente perdido; mesmo que consertasse o defeito, ele não teria como levantar voo. Retirou a neve, mal e mal, da frente do avião, abriu a tampa o que pôde e procurou por algum fio solto ou algo que tenha provocado a pane. Revisou tudo e não descobriu nada conforme seus conhecimentos técnicos, que não são muitos.

Só o que lhe restava agora era esperar que algum avião passasse por ali e o resgatasse. Como informou a seus familiares que chegaria a Keflavik às 14 horas, somente à noite desse dia dariam por sua falta. Então as buscas somente se iniciariam na manhã do dia seguinte.

Wild Bill sobreviveu por 40 dias à fome e ao frio. Água ele conseguia com a neve derretendo em sua boca. Se houve buscas a sua procura ele não soube, nem poderia saber. Mas, com certeza houve e não o encontraram.

Nesses 40 dias de espera inútil, fez bonecos de neve de todos os seus entes queridos, inclusive seus Huskies. Nos momentos de saudade, que eram constantes, sentava-se entre eles e conversava com cada um.

Morreu sentado ao lado dos bonecos de neve; duas lágrimas que correram de seus olhos permaneceram congeladas ao lado do seu nariz.

Mas a história de Wild Bill não termina aqui.

A alma de Wild Bill, assim que sublimou de seu corpo, notou que havia alguém ali ao seu lado. Era uma mulher linda, branquíssima, que se confundia com o branco da neve. Seu vestido longo, rodado, tinha um diâmetro de 3 metros e era totalmente branco com reflexos azul gelo. Cingia-lhe sua cabeça uma coroa de prata cravejada de diamantes. Toda ela era como se fosse feita de infinitos flocos de neve.

Sorriu para Wild Bill, mostrando dentes muito brancos e cintilantes, e lhe falou:

_Wild Bill, és nobre nos sentimentos e tens o coração cheio de amor. Jamais feristes as pessoas, os animais e a natureza. Então, serás recompensado. Terás uma vida especial oferecida por mim. Tu e teus bonecos de neve que fizestes com muito amor e que representam os seres que mais amas. Vós não sereis de carne e osso. Sereis de neve e gelo e tereis vida perpétua como o gelo e a neve da Groelândia.

_Wild Bill, complementou a maravilhosa senhora após uma breve pausa, eu serei a tua madrinha e receberás o meu nome. Serás chamado de Wild Bill Snow e serás protetor de todos os animais que vivem na neve e dos humanos que eventualmente se perdem.

Dizendo isso, tocou com sua varinha mágica na cabeça de Wild Bill congelado. Sua alma voltou ao corpo transformado em neve e gelo, exalou o sopro da vida e moveu-se maravilhado de estar vivo novamente, ainda que como boneco de neve. As duas lágrimas congeladas rolaram pelo seu rosto como floco de neve. Tocou também a cabeça de cada um dos bonecos de neve. Todos ganharam vida e se confraternizaram felizes.

A poderosa mulher era a fada Elsa, a rainha da neve. Ela sorriu para eles, girou a varinha mágica no ar, ouviu-se um espoco e ela desfez-se; uma chuva de neve caiu sobre eles.

Durante dezenas de anos eles viveram felizes na imensidão de neve da Groelândia, solidários e protetores dos animais. Ursos polares, raposas do Ártico, lobos, cervos, focas, leões marinhos, morsas, conviviam com eles em paz e harmonia. Diversas vezes, salvaram humanos perdidos nas neves de morrerem congelados, reconduzindo-os às cidades.

Mas a ganância dos homens estava destruindo o planeta. A temperatura média do planeta subia a cada ano e cada vez mais. O polo Ártico e a Groelândia que detém a maior quantidade de gelo do mundo estão derretendo absurdamente.

A Groelândia que tinha 80 por cento do seu território coberto de gelo e neve, agora não passa de 50 por cento. Do espaço pode ser visto extensas áreas de terra onde antes estavam cobertas de gelo e neve. Até o avião monomotor de Wild Bill Snow é visto abandonado, distante da atual fronteira branca.

Os governos corruptos e empresários gananciosos, pouco preocupados com a catástrofe ambiental, veem nisso uma oportunidade econômica. Companhias disputam concessões para explorar as riquezas do subsolo da Groelândia. Sem o gelo, agora podem explorar a região (rica em ouro, petróleo, urânio e outros minerais) a um custo financeiro muito baixo.

O nível de gás carbônico na atmosfera aumenta em uma progressão geométrica. O aquecimento global torna-se insuportável pelo efeito estufa.

O nível dos oceanos aumentou tanto que já cobriu todas as cidades costeiras. Tempestades, tufões, tornados, por sua vez, varrem as cidades interioranas. A civilização humana está perto do fim.

Wild Bill Snow, sua família e seus Huskies, foram pouco a pouco empurrados para as proximidades do monte Gunnbjorn, o ponto mais alto da Groelândia - 3.700 metros, último lugar onde resta gelo e neve. A neve da Groelândia, vista do espaço, é um minúsculo ponto no seu vasto território. Uma bola no centro do campo de futebol.

A maioria dos animais havia morrido. Apenas alguns Wild Bill Snow conseguiu salvar. Mas não sabe até quando, porque ele próprio corre risco de extinção.

Arman, protetor, nada pode fazer, pois quem os ofende estão distantes.

Sasha, defensor, não podia defendê-los de algo que não tem poder. Inclusive corre o risco de derreter.

Liev, altivo, permanecia calado, com o rabo entre as pernas, como um vira lata desnutrido.

Ninochka, graciosa, perdeu o encanto. Tinha o semblante de uma hiena.

Irina, paz, perdeu o instinto e desejava destruir os infames.

Rahil, cordeirinho, estava deprimido. Carregava a culpa da civilização humana que como ele, cordeirinho, ficou passiva ante o descalabro de homens corruptos e gananciosos.

Elsa, a rainha da neve, estava impotente. Os seus poderes mágicos só eram ativos em um mundo de neve. Ela própria corre o risco de extinção: se não há neve para que rainha.

Mas eis que surge um personagem que diz que pode salvar o planeta. Ele tem uma ideia que a primeira vista pode parecer absurda, mas ele acha que é eficaz.

Os repórteres, ainda ativos, serão eles que apagarão as luzes, o entrevistam e lhe perguntam que ideia é esta, tão formidável, que ele prega.

Harold Frank Stone, bisneto de Wild Bill Snow, gaguejando, e um tanto atrapalhado com tantos microfones em sua cara, revela sua ideia.

_Devemos retirar o gás carbônico da atmosfera e transformá-lo em gelo seco. Depois, depositar os blocos congelados nos polos, tanto quanto necessário para diminuir a temperatura média do planeta. Com isso tornaremos os polos congelados de novo.

_ Mataríamos dois coelhos com um tiro só, gracejou um dos repórteres.

_Não! Vociferou Harold Frank Stone. Nada de matar animais. Não acha que já matamos demais?

_Desculpe. Eu só quis fazer uma analogia.

_Pois faça, mas sem matar animais.

_Resolveria dois problemas...

_Também não, Harold retrucou novamente. Nós não temos dois problemas, apenas um: o aquecimento global, os demais são consequências.

Os cientistas, técnicos ambientais, físicos, acharam isso impraticável. Os blocos de gelo seco sublimariam e o gás carbônico voltaria para a atmosfera. Seria como enxugar gelo, zombaram Harold, com o trocadilho.

Mas alguns homens influentes, apesar de leigos ou por isso, apostaram na ideia, também como única opção, alegaram aos céticos.

O mundo todo se mobilizou na tarefa. Os países foram divididos em grupos e decidido onde cada um depositaria os blocos de gelo seco.

O gás carbônico congelado seria depositado em locais dos polos onde a temperatura fosse igual ou inferior a menos 78 graus centigrados para evitar a sublimação. E teria que ser logo, porque havia apenas dois lugares nos polos onde a temperatura ainda chegava perto.

Todas as máquinas conversoras de gás carbônico em gelo seco trabalharam dia e noite na produção em massa. Aviões cargueiros refrigerados transportavam os enormes blocos de dezenas de tonelada de gelo seco e depositavam nos locais determinados. Os países do hemisfério norte depositariam na Groelândia, Sibéria, Alasca e os do hemisfério sul na Antártida e na Patagônia.

Mesmo depois de semanas de carregamento de gelo seco o aquecimento global não cedia. Alguns blocos realmente sublimaram. Os céticos criticavam tamanha façanha por nada. E repetiam o famoso trocadilho: “Estamos enxugando gelo”.

Após um período de estabilidade o aquecimento global deu sinal de ceder: diminui meio grau. O mundo vibrou. Os polos com essa enorme carga gelada registravam temperaturas abaixo de zero. Então, a neve voltou a cair cobrindo para sempre os blocos de gelo seco.

O nível dos oceanos voltou ao normal. O ar das grandes cidades era novamente respirável. O petróleo e o carvão tiveram o uso expressamente proibido. Dai pra frente só poderiam usar energia limpa.

Harold Frank Stone, bisneto de W.B.S., herói mundial, salvara o planeta. Mas ele não sabia e nem podia imaginar que também impediu a extinção da fantástica vida de seus antepassados.