O vômito

Um dia pela manhã senti uma ânsia muito grande. A dor percorria meu corpo inteiro, mas se concentrava no meio de meu peito. Dei três soluços daqueles que dão nó de vento na garganta e descem rasgando o esôfago. Levantei-me bruscamente do sofá e vomitei meu coração. Saiu assim inteiro, com todas as suas veias e cavidades. Ainda batia, quase como inútil no chão e percebi que ele não havia percebido que tinha sido expelido de meu corpo. Corri e me olhei no espelho, eu estava branco. Mas eu ainda respirava, ainda me mexia, ainda pensava, eu ainda existia.

Voltei para o meu coração e ele estava lá, fazendo o que deveria estar fazendo dentro de mim. Era como se ali, no meu chão de cimento queimado, o coração pudesse fazer com mais maestria o que já não podia mais fazer em meu peito. Ele estava perfeitamente confortável em seu novo local de trabalho. Pensei que eu não poderia deixa-lo ali, afinal, como qualquer outro vômito, deveria ser limpado para evitar o asco dos escassos visitantes. Acontece que parecia incabível jogar o coração fora e apenas lavar o chão já manchado de minhas impertinências, pois, oras , onde já se viu vomitar um coração? Peguei uma grande bacia de vidro fino, não que meu coração fosse grande, mas queria oferecer um melhor conforto, já que não pude oferece-lo do modo tradicional.

Foi difícil tocar em mim quando eu já não me era ali. Com movimentos calculados e precisos coloquei cuidadosamente aquele duro coração dentro da bacia de vidro. Ele batia descompassado, eu me admirava por tudo. Tirei a pequena televisão da única cômoda que existia em minha casa. Coloquei meu novo aquário de emoções no lugar e me pus a observar aquele fantástico órgão humano. Era vermelho como os pedaços de carne que eu comprava no açougue sempre no caminho de volta para casa, depois do meu expediente exaustivo. Era estranhamente limpo, mas opunha-se à vontade de tocá-lo. Brilhava e pulsava, agora, desesperadamente ritmado. Suspirei. Por que eu havia vomitado o meu coração?

Sentei na berada da cama. Levantei. Sentei. Levantei. Então decidi que o melhor era dar uma volta ao redor dela. Meus pensamentos iam loucos, sem carteira de motorista, acabavam se atropelando e se machucando. Eu nunca tinha vomitado nada em toda minha vida, será que essa ânsia de segurar todos os líquidos e comidas dentro de mim, me tornaram duro para repelir meu órgão principal? Não sabia mesmo a resposta daquele fato inusitado, mas eis que ia me surgindo outra ânsia. Coloquei a mão em meu peito. Estava oco. Fazia eco de meus líquidos e gases, mas nada batia. Batia sim, em cima da cômoda solitária.

Meu estomago palpitou. Lá estava vindo. Procurei diversas posições, nada acalmava o meu corpo. Sentei novamente, longe de meu coração. Fechei os olhos e saiu de uma só vez. Grande. Feio. Duplo. Eu havia vomitado os meus pulmões. Meus olhos arderam do tanto que se arregalaram. Estavam lá. Inertes. Com uma coloração estranha, algumas partes escuras. Eram feios, mas não me davam nojo, me davam dúvidas. O ar não me parecia inimigo, não me parecia diferente, talvez mais pesado, talvez mais leve, definitivamente sem explicação. Não corri, porque tive medo de perder o fôlego. Parecia que agora meus movimentos eram mais calculados e me dei por debilitado: já não podia mais fazer esforços. Peguei um refratário, também de vidro, e coloquei cuidadosamente os meus pulmões lá.

Era um sonho?

Resolvi que eu deveria me deitar e pensar melhor a respeito daquilo tudo na manhã seguinte, mas foi eu terminar de colocar meus pijamas velhos e surrados que senti outro baque, outra dor, outra ânsia e logo ali estava o meu fígado e sem esperar, meu estomago logo ao lado. Pude notar como meu estomago parecia judiado e , meu deus!, O que era aquilo? Uma ferida? Definitivamente era. Foi ali que eu descobri todos os motivos das minhas náuseas e dores de estomago quando eu comia, era uma úlcera. Peguei os dois e coloquei-os em outros dois refratários.

Ali estavam: meu coração, pulmões, fígado e estomago.

Pensei no que mais faltava rins, pâncreas, baço, vesícula. Tudo já estava em seus devidos refratários ao redor daquele aquário que trazia meu coração, o único que me parecia de fato bonito.

O chão já estava limpo pela oitava vez. Finalmente deitei. Um verdadeiro silêncio. Percebi que agora eu era basicamente intestino. Eu era louco e principalmente oco. Eu tinha um novo eu fragmentado que repousava em cima da cômoda única. Encarei o teto ora cinza, ora branco. Por que eu havia me vomitado?

Ali deitado, apenas existindo, tudo parecia ser muito distante da minha realidade. Meu corpo parecia não estar completamente deitado. Eu me sentia leve, porque eu era todo cheio de vazio agora, um vazio concreto dentro de mim, um fato, um vazio. Pensei que tudo bem, eu ainda tinha o meu cérebro...ainda tinha meus devaneios. Mas o que eu ia fazer com aqueles pedaços de mim espalhados na cômoda?

Não tinha uma razão para eu ter me vomitado naquela tarde tremendamente monótona. Não tinha razão, apenas tinha acontecido. Eu já estava farto de toda a rotina que me seguia no decorrer daqueles 30 anos de vida, eu já tinha atingido todos os meus objetivos e meus sonhos eram os mais supérfluos. É... talvez eu tinha me implodido e estava liberando meus restos por ai.

Eu sabia que já fazia algum tempo que eu não era mais eu. Eu já não discutia, já não fazia novos amigos, guardava minha opinião só para mim, já não me apaixonava. Não que a vida não fizesse mais sentido, eu só não via sentido nas pessoas que a compunham.

Adormeci e sonhei que eu tinha vomitado todos os meus órgãos. Um vento frio, que brincava com as cortinas amareladas e quase derrubavam fotos e retratos de rostos já desconhecidos, entrava pela janela. Escutei vários miados. Abri os olhos vagarosamente e quando eu vi, minha casa guardava meia dúzia de gatos. Todos sem fome e satisfeitos pela refeição que eu tinha sido.

Um buraco para sempre em mim.

Luane Amurin. 01/05/14

Luane Amurin
Enviado por Luane Amurin em 18/11/2018
Código do texto: T6505584
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