BEHEMOTH - O LIVRO DO CAVALEIRO - CAPÍTULO III - A RECOMPENSA DOS VALENTES I

Em uma encruzilhada à noroeste de Aldrovia, o grupo de aventureiros separou-se enfim. Bastian e Willen seguiram em direção às terras montanhosas de Aldrovia. Roma e Or’kan subiram ao norte da cidade a fim de pegar uma velha trilha pela floresta que cerca o vale aldroviano.

– Precisamos seguir o curso do rio, disse o mercenário.

– Você tem certeza disso? Questionara Roma.

– É o caminho mais seguro, seguir o leito do rio fará que ganhemos dois dias, pode confiar, afirmava Or’kan.

– Eu confio em você, um pouco, disse a menina com um tom debochado.

– Roma, você parece ser a chefa daqueles meninos, retrucou Or’kan.

– Você acha? Ela perguntou-lhe.

– Claro que não, não seja arrogante, o orc respondeu rindo.

– E sabe o que eu acho de você e Willen, tentou-lhe provocar a menina.

– Não me interessa, respondeu de maneira enfadonha o mercenário.

– Não fala comigo, ela disse.

– Que pena, antes de sair de Aldrovia eu comprei esse arco e um par de luvas de olho de gato, disse o orc. – Terei que deixar estes itens por aqui já que eu não tenho nenhuma habilidade com arco e flecha.

– Não seja chato, a menina respondeu à provocação. – Comprou para mim?

– Claro, agora somos parceiros de aventura não é, disse amigavelmente Or’kan.

Roma não queria demonstrar que estava contente com os presentes, afinal, nunca recebera nada de graça, exceto as surras. A menina se esforçou para parecer durona, mas fios de lágrimas correram de seus olhos.

– Obrigada, ela disse. – Nunca tinha recebido um presente de alguém.

– Não precisa agradecer, agora somos parceiros, disse-lhe Or’kan. – Eu escolhi esses equipamentos que a ajudarão na sua habilidade natural com arco e flecha.

– Você acha que eu tenho aptidão? A menina questionou.

– Olhando bem para você, sua estrutura física não parece a de um humano adolescente, respondeu-lhe o mercenário.

De fato, Roma tinha pernas compridas, o que a fazia ser mais alta do que os dois meninos, além disso, seus longos cabelos dourados e as pontas das orelhas levemente bicudas não eram traços típicos dos homens.

– Você não lembra de nada dos seus pais, Roma? Perguntou o orc.

– Quando eu me esforço para lembrar deles, enxergo apenas a silhueta de uma mulher vestida com um manto verde-oliva, ela respondeu. – Depois minhas memórias ficam embaçadas feito vidro em dia de chuva.

– Entendo, quem sabe um dia você os reencontre, disse o mercenário depois de passar por cima de um tronco caído.

– Não tenho vontade de conhecê-los, ela respondeu com um tom de voz seco.

– Que a sua vontade seja o seu destino, disse o orc enquanto olhava fixamente para a menina.

O sol já estava no seu ponto mais alto do domo celeste quando a dupla resolveu parar para comer alguma coisa e descansar após caminhar os primeiros quilômetros antes de chegar à Floreste Negra.

– Tome, Roma, falou o orc lançando uma bolsa com o arco e as luvas.

A menina abriu a sacola e tirou de dentro um arco de 90 cm e um par de luvas de couros com uma pedra de olho de gato cravada em cada par.

– Esse arco é de visco de salgueiro, uma madeira leve e flexível, disse-lhe o orc. – As luvas têm essas pedras encantadas com uma magia de sopro.

– O que isso faz? A menina perguntou mostrando muito interesse pela explicação.

– A pedra de olho de gato é um minério que recebe facilmente qualquer encanto, disse-lhe Or’kan. – Os ferreiros a encantam com magias de menor poder que melhoram algumas capacidades físicas durante uma batalha.

– Nossa, isso é tão legal, Roma falou animadamente.

– A magia de sopro fará que sua flecha receba uma força extra enquanto percorre pelo ar, entendeu? Perguntou o orc.

– Mais ou menos, explica de novo sobre a força extra, pediu a menina.

– Não é a flecha em si que recebe uma força maior, mas seu braço é envolto por uma rajada de ar pequena, disse Or’kan. – Veja por si, coloque as luvas.

Roma encaixou as luvas em suas mãos.

– Concentre-se na sensação em seu braço, ele disse. – Você sentirá os pelos dos braços se eriçando como um arrepio, certo.

A menina fechou os olhos e se concentrou para sentir o que falara Or’kan. De olhos bem fechados, ela sentiu a brisa que corria sobre o rio, ouviu o burburinho das águas.

– Sentiu, ele perguntou.

– Sim... sim... não senti, ela falou.

– Certo, talvez falte mais percepção mágica em você, com uma expressão confusa ele falou.

A dupla parou a conversa para dividir o pão e o hidromel que Valentine deu. A menina nunca provou o sabor de um pão novo, macio, crocante. No orfanato as crianças comiam algo similar, um tipo de massa dura e sem forma que os órfãos diziam ser o resto da sopa da cozinheira. De fato, o pão de Saint Divine possuía um sabor azedo, de consistência inquebrável. Talvez fosse possível usá-lo como projétil caso alguma necessidade em batalha aparecesse.

Roma tomou um gole de hidromel e sentiu a bebida aliviar a velha dor de garganta, seus músculos também relaxaram e a face ficou quente. O orc tomava sua dose olhando para o rio, como se estivesse em um profundo estado de meditação. O lugar em que a dupla resolveu descansar era uma clareira aberta que formava um tipo de pequena praia de rio. Na areia havia pegadas e vegetação rasteira.

A dupla voltou a caminhar depois que Or’kan comeu todo seu pão. Roma ainda comia o último pedaço, ela levantou sentindo o corpo pesado e leve, além de uma vontade de rir de coisas bobas. A menina olhava para o cabelo trançado de seu parceiro e ria, olha para o vento balançando as copas das árvores e ria.

– Eu não acredito que você ficou porre, disse seu parceiro.

– Eu-eu, porre, n-não-não, Roma respondia com a boca pesada.

– Se eu soubesse que isso aconteceria, você iria tomar só água, o orc afirmou.

– Á-água n-não, eu-eu quer-o hi-hidromel, ela respondeu-lhe rindo pesadamente.

– Isso vai atrasar a nossa caminhada, pensou Or’kan. – De qualquer forma, daqui a pouco o efeito da bebida irá passar.

O mercenário resolveu carregá-la para acelerar seus passos, o vai e vem no colo dele fez a menina pôr todo seu almoço para fora.

– Que nojo, Roma! O orc disse com uma expressão aborrecida.

– Des-desculpas, ela falou.

O balanço gentil sobre o ombro largo do companheiro de aventura a fez cochilar por um tempo, não sabia quanto, mas cerrar os olhos fez o porre ir embora rapidamente, mas não tirou o sono completamente do seu corpo. A tranquilidade da caminhada foi interrompida pela súbita emboscada de um grupo de faunos ladinos.

Cercados e sem chance de ataque, Roma e Or’kan precisam se concentrar em uma forma de sair da emaranhada situação. Um fauno vestindo meia cota de couro levantou a voz representando o grupo.

– Viajantes, eu sou Galfuruim, chefe desse bando de criaturas degeneradas, falou realizando uma reverência sem graça. – O que seres de boa estirpe fazem no limite dessa floresta desencantada.

– Não queremos problemas, fauno! Falou firmemente o orc.

– Ei, menina, seu escravo tem permissão para tomar a palavra? Disse Galfuruim ignorando o mercenário.

– El-ele não é meu escravo! Ela respondeu. – Or’kan é meu parceiro!

O grupo de faunos soltou uma gargalhada debochada. – Ha! Ha! Ha! Muito bem, garota, você terá serventia como nossa escrava.

– Escrava, escrava, escrava! O grupo repetiu em coro.

– Suas pernas são compridas para nós, mas suas ancas mostram que você é uma fêmea saudável para esse grupo de faunos solitários, disse Galfuruim enquanto apontava uma faca para Roma.

A inocente garota não compreendia bem a mensagem por trás do tom obscuro na fala do fauno, apenas o pressentimento de que algo terrível aconteceria se os dois não fugissem. O mercenário não esboçava nenhuma expressão enquanto ouvia as coisas insensatas ditas por Galfuruim.

– Pela Grande Fonte! Como os protetores da natureza se tornaram ladinos? Falou Or’kan de maneira reprovadora.

– Cale-se, orc! Você também não tem seguido sua natureza, não é, retrucou desafiadoramente o chefe fauno.

– O caminho natural não foi obedecido por nós, mas em mim há honra! Exclamou o mercenário logo após cuspir como sinal de desrespeito à presença de Galfuruim.

– Arrogante! Gritou o fauno para seu grupo.

– Arrogante, arrogante, arrogante! Repetiram em uníssono.

Roma estava nervosa com o rumo daquela conversa inimiga, apesar da postura firme do seu parceiro, a menina presenciara algumas situações de vida e morte nos últimos dias que fariam qualquer valentão mijar nas calças. O dia já estava se despedindo do sol, e os tons roxos da escuridão começavam a abraçar a floresta, a noite estava chegando e junto a ela um gelado sopro de vento.

Os sapos começaram a coaxar e os grilos seguiram a cricrilar. – Nosso tempo é curto, viajantes, disse o fauno.

– Nos deixe seguir nosso caminho e prometo que não matarei cada um de vocês, ameaçou o mercenário. – Na sombra da noite eu serei implacável.

– Não seja convencido, respondeu-lhe Galfuruim mantendo uma postura altiva.

O vento soprou e algumas folhas foram arrancadas das árvores, caiu também Espinhoso, um fauno que usava ombreiras com pontas de flechas costuradas rudemente. Um dardo decorado com penas vermelhas acertou sua nuca, vindo de uma direção aparentemente aleatória.

– Chefe, o Espinhoso caiu! Gritou Ubro enquanto mexia com o corpo do fauno abatido.

Logo depois ele caiu também seguido por Cazam e Chamuscado. – Apareçam, malditos! Gritou Galfuruim olhando para as árvores.

– Você enlouqueceu, fauno? Disse Or’kan.

– Cale-se, nossos vizinhos apareceram outra vez, respondeu-lhe o chefe do bando. – Pode sair da moita, Lucian.

Roma e Or’kan se entreolharam sem entender nada do que estava acontecendo, quando perceberam que pequenas silhuetas apareceram por trás dos faunos. Eram os meninos gatos, catulianos, uma tribo animália que vivia nas florestas de Aldrovia. Com aparência felina, tais seres eram os protetores dos animais da floresta, mas ultimamente serviam de vigia das trilhas desde a repentina onda de assaltos ocasionada por Galfuruim e seu bando.

– Outra vez, fauno!? Disse de maneira desapontada o catuliano de pelo amarelo.

– Não atrapalhe meus negócios, Lucian, respondeu-lhe o fauno.

– As ordens do meu pai é de que os viajantes não devem ser importunados devido ao acordo... lembra, Lucian o reprimiu.

– Sim, a proposta está de pé, não fizemos mal nenhum aos dois, disse Galfuruim com um sorriso de segundas intenções.

– Que seja, ronronou o catuliano. – O chefe está o procurando para acertar os detalhes do casamento.

– É uma honra ir ao encontro do meu futuro sogro, falou Galfuruim antes de desaparecer.

Depois que o bando fauno se foi, houve um momento de silêncio constrangedor entre os aventureiros e seus heróis felinos.

– Podem seguir, viagem, disse Lucian.

– Obrigada, falou Roma. – Graças a vocês eu não virei escrava.

– Escrava?! Interpolou Lucian com uma expressão de surpresa. – Não é apenas feio, é também um sujeito sem classe, miou o menino gato para si.

– Nós perdemos o resto de luz do dia, falou Or’kan com um tom aborrecido. – É menos uma tarde para salvarmos Hammax.

Atento ao que disse o mercenário, Lucian ofereceu sinceras desculpas para a dupla de viajantes. – Galfuruim era um protetor desse território, mas há algum tempo ele começou a agir violentamente contra os viajantes, disse-lhes.

– Nós estamos em uma jornada para catar uma planta cantora, disse a menina.

– Que coisa difícil, falou Bonrbon, um catualiano de pelos negros e brancos. – Qual veneno vocês desejam curar?

– Um pazuzu envenenou nosso amigo, Roma respondeu-lhe.

– Uau! Miaram os demais.

As criaturas da floresta têm o estranho hábito de falar juntas, como se fossem uma só voz.

– Nunca ouvi de algum sobrevivente a veneno de demônios bestiais, falou Scargo, um catualino que trajava um chapéu plumado. – Deveras o mundo ter guardado um grande destino ao seu amigo.

– Ele é como um irmão, a menina respondeu carregando um triste semblante. – Nós continuaremos a jornada, não é Or’kan.

– Não é possível, interpolou Lucian. – Os trogloditas do rio costumam caçar durante a noite.

– Trogloditas não são problema, disse-lhe o orc.

– Um apenas é fraco, dois também, mas uma tribo inteira serviria sua carne no jantar e a moça seria um depósito de ovos e comida para seus abomináveis filhinhos, falou Bonrbon enquanto raspava um pouco de erva-de-gato para fumar. – Entenderam a situação?

– Passem a noite conosco e ao amanhecer vocês partem, disse-lhes Lucian. – Todos os catulianos concordam?

– S-sim! Miaram.

De longe, os meninos gatos e os dois viajantes ouviam os roncos usados pelos trogloditas que habitavam a floresta. Os tais seres são uma espécie anfíbia que vive escondida nas cavernas durante o dia, comumente praticam a caça em grupo e têm hábitos alimentares onívoros, comem peixes e outros mamíferos que conseguem caçar. Entre os comportamentos exóticos dessa raça, a reprodução é um mistério, exceto pelos relatos de viajantes que já ouviram gritos de agonia vindo de cavernas que servem de ninhos para os trogloditas, há quem diga que os trogloditas são dois em um.

A caminhada até a vila dos catulianos durou vinte minutos, o grupo percorreu por clareiras e áreas em que a trilha se afunilava, fazendo parecer que a mata jamais havia sido tocada. Quando chegaram, os viajantes ficaram surpresos com as construções dos catulianos, centenas de casas anexas às árvores de troncos milenares. Um sistema de escadas feitas rusticamente por cordas e madeira, mas resistentes, fazia a ligação entre cada residência. As ruas são suspensas por dobras e dobras de cordas que dão verdadeiro sentido ao dito de que “a união faz a força”.

Olhar para a vila dos catulianos é como enxergar um amontoado de construções que se ligam como uma teia de aranha, uma belíssima forma de convívio com a natureza. Os hábitos desse povo também são exóticos. A origem do primeiro catuliano se deu na criação do mundo, quando a Grande Fonte jorrou as águas primordiais sobre o deserto universal, daí surgiu a primeira árvore, Yggdrasil. Do primeiro fruto, após a primeira primavera, a árvore primaz gerou os meninos gatos, que recebem essa alcunha devido ao tamanho em idade adulta que se assemelha a estatura de uma criança humana de dez anos.

Desde pequenos, os catulianos são treinados nas artes da floresta, aprendem a caçar e a lutar, com a adaptação natural de seus corpos que lembram o de felinos, eles conseguem suportar o pulo de alturas elevadas, seus olhos permitem enxergar no escuro e têm um apurado faro. A sociedade catuliana, em geral, busca inserir todos os seus cidadãos, mesmo que nasça algum catuliano sem cauda, um defeito que representa um mal presságio pelos antigos da vila.

Quando alcançam a idade adulta, três anos no tempo dos homens, os machos da espécie passam por um teste de aptidão de caça enquanto as fêmeas são treinadas na arte da manufatura de vestimentas e de metais leves. A forja catuliana de flechas é a mais cobiçada entre os arqueiros e atiradores de besta que viajam mundo a fora em busca de tesouros.

Alguns magos de Eldenvar descobriram que os robes produzidos pelos catulianos do norte de Octavia são tecidos com uma linha natural produzida a partir de raízes de uma vegetação que nasce próximas às vilas catulianas, o que confere uma certa qualidade mágica para a roupa. O valor de uma veste de alto nível pode exceder 1000 moedas de ouro. Entre as artesãs de vestimentas, a catuliana Zafira tem as peças mais cobiçadas.

Apesar da prosperidade do povo catuliano ser visível, muitas tribos preferem o isolamento, como a vila de Lucian, na qual os viajantes descansam.

– Meus pés doem muito, disse Roma enquanto massageava o pé esquerdo apoiada em duas almofadas boleadas.

– Descanse, pequena, amanhã nosso dia será cheio, respondeu-lhe o orc. – Precisaremos correr contra o tempo devido ao incidente dessa tarde.

– Quanta loucura a de Galfuru-im-im e seu bando, a menina falou entre um bocejo longo e outro curto.

Antes que Or’kan falasse algo, Lucian entrou no quarto para anunciar o convite do chefe da vila aos dois viajantes. “O chefe-rei catuliano August V – Convida solenemente aos viajantes para participar de um jantar em sua residência – Cordialmente”, recitou um pequeno catuliano trajado de maneira pomposa.

– O meu pai quer conhecê-los, disse Lucian.

– Será uma honra, responderam os viajantes.

No caminho para a residência, a dupla recebia olhares curiosos, principalmente Or’kan por causa de seu tamanho e seu tom de verde pálido. Era um verdadeiro titã no meio dos pequenos catulianos que ora se esbarravam para vê-lo, ora olhavam de um jeito desconfiado, o que mostra quão isolada a vila é, já que os orcs de Ninrode têm acesso livre por tantas cidades.

A casa do chefe era uma construção de três pavimentos que não mostravam nenhuma regularidade estética, pelo contrário, parecia um amontoado disforme. Os viajantes não acreditaram quando a viram. No entanto, ao entrar eles perceberam como seu interior era confortável e impecável. O lado de fora parecia uma espelunca, mas as coisas bonitas estavam dentro, como um quadro de natureza morta que retratava um pomar de macieiras.

A guarda de companhia os acompanhou até a sala de jantar, onde August V ocupava a cabeceira de uma mesa farta de peixes, vegetais e doces. Ocupando o lado direito estava uma mulher fauna de chifres impecavelmente aparados cravejados com alguns rubis, de pelos da cor do mel e de olhos profundamente cinzentos como o luar.

– Sejam, bem-vindos, desejou-lhes o chefe da vila. – É uma honra recebê-los em nossa casa. Sintam-se à vontade.

Or’kan sabia que a cordialidade do chefe era apenas uma formalidade sem sentimento, alguma coisa ele iria pedir, pressentiu o mercenário. A menina Roma não escondia sua excitação diante do banquete, ela jamais estivera diante de tanta comida sobre uma mesa.

– Chefe, obrigado por sua hospitalidade, disse o orc realizando uma rudimentar reverência.

– Seu filho salvou a minha vida, disse Roma de um jeito encabulado.

A órfã repetia, sempre que possível, como foi salva por Lucian das garras de Galfuruim.

– Menina, eu fico abatido por causa das ações de meu parente fauno, respondeu-lhe o chefe.

– Parente? Questionou surpreso o mercenário.

– Sim! Interpolou a fauna assentada à direita de August. – Galfuruim é meu irmão e se casará em breve com Lily, a filha de seu anfitrião.

O orc já ouvira falar de casamentos políticos entre humanos, mas entre os seres da floresta era uma novidade. Enquanto pensava, ele franziu a testa e deixou sua expressão mostrar a esquisitice daquela situação.

– Perdoe os hábitos de minha esposa, senhor orc, disse o chefe. – Os faunos não são criaturas de hábitos civilizados.

Sua esposa arqueou as grossas sobrancelhas em sinal de protesto, mas não fez nenhum comentário impertinente. – Vamos sentar e comer, disse August mostrando os pratos à mesa. Roma sentou entre seu parceiro e Lucian. A menina serviu-se de três salmões grelhados, um punhado de ervilhas, purê de maça verde e uma taça do azedo suco de uva de gato.

O orc preferiu anchovas e uma dúzia de ovos de codorna que comeu tomando chá verde, um ótimo auxiliar para sua digestão lenta. O chefe preferiu os doces, e sua esposa montou um belo prato de saladas. Lucian comia discretamente uma tainha frita em banha de porco acompanhado pelo mesmo suco azedo que Roma tomava a contragosto. O jantar seguia tranquilamente exceto pelos olhares ansiosos do chefe que fitava a porta entre uma farta garfada de torta de amora e outra. – Vocês já encontraram a senhorita Lily, sussurrava para o mordomo.

– Estou aqui, papai, entrou dizendo a catuliana de pelos curtos e brancos. – Não precisa sussurrar.

Roma ficou sem palavras quando viu a filha do chefe adentrar a sala, Lilly tinha o passo manso, silencioso, seus movimentos pareciam ao de uma experiente dançarina que encanta a todos em um espetáculo. A presença da menina gata também chamou a atenção de Or’kan que ficou intimidado com o jeito feroz com o qual ela respondeu ao pai.

– On-onde você estava? Questionou August com a boca parcialmente coberta por uma bela taça de prata, herança dos seus antepassados. – Temos visita, percebeu?

– Eu caminhava pela floresta, é isso... papai, respondeu-lhe Lily com um tom cobre de voz.

– Estes são Or’kan e Roma, apresentou-lhes o chefe.

– Bem-vindos à vila catuliana da região de Aldrovia, Lily acenou sem gentilezas para os viajantes. – Posso sentar à mesa?

– Claro, respondeu seu pai. – Você sabe que hoje é um dia especial para nossa família.

– Eu não sou moeda de troca! Disse a menina gata num protesto que fez os pratos das mesas tremerem.

Lucian observava a discussão familiar, mas decidiu ficar resignado devido ao cansaço do dia, vigiar as ações do futuro cunhado não era uma tarefa nobre. Desde o início das disputas territoriais entre faunos e catulianos, o filho do chefe não concordou em arranjar relações diplomáticas com seus vizinhos problemáticos. Aquela relação, para seus planos, era uma tolice.

Seu pai casou com a filha do fauno ancião para conter as disputas por terras, Katka’s profanou a postura de uma esposa de um chefe catuliano. Os cidadãos estavam insatisfeitos e conversas entre o conselho da vila chegaram aos ouvidos da família de August. Para Lucian, seu pai não demonstrava a força e o respeito que um líder deveria mostrar para os que estão à sua vista.

A revolta do menino gato também se dava por causa da mãe que morreu em um ataque à vila, há cinco anos. O inverno aldroviano é marcado pelas torrenciais chuvas que enchem os rios que cortam a cadeia de montanhas da região, como a vila está no limite de um vale entre o reino de Aldrovia e a entrada da Floresta Negra, toda água do vale escoa pelo rio que os viajantes viram enquanto caminhavam. As águas turvas do rio subiram além da margem naquele ano, o que fez muitos trogloditas saírem de suas cavernas para resistir à inundação nos lugares altos da floresta, como a vila.

A chuva descia sem tréguas há dois dias, o chão da floresta estava encoberto de águas escuras que escondiam armadilhas naturais para quem caísse do alto das árvores. Toda a vila balançava por causa das pancadas torrenciais. Os catulianos estavam recolhidos em suas camas rezando para que nenhum tronco que firma a vila fosse derrubado devido ao encharcamento do solo florestal.

Apesar da aparente segurança, o chefe da vila enfrentava alguns problemas de natureza administrativa, o hospital da vila não sustentara o peso das águas sobre seu telhado, o que provocou um enorme buraco que alagou muitos quartos, incluindo a ala maternal. Naquele dia, infelizmente, a mãe de Lucian acabara de pari-lo.

– Vamos! Todas as catulianas que podem andar sigam para a ala leste do hospital! Disse um grande gato de pelos castanhos. – Precisamos desocupar a área alagada.

– Doutor Rother, a esposa do chefe está entre as parturientes, disse-lhe Bonrbon. – Seja mais cortês com a mestra.

– Que seja, respondeu-lhe o médico. – Eu tenho a responsabilidade pela vida de todas, entendeu? Não se meta no meu trabalho.

– Sua arrogância pode ser fatal, Bonrbon advertiu-o.

A pobre Sola andava lentamente por causa da fraqueza nas pernas, o menino Lucian consumiu muito das suas forças. De pelos dourados e olhos profundamente vermelhos, a esposa do chefe era uma descendente raça pura dos primeiros catulianos daquela vila. Seu casamento com August o conferiu o título de chefe quando a eleição dos sucessores aconteceu.

– Minha senhora, deixe-me que carregue o menino, ofereceu o guardião de Lucian.

– Ainda tenho forças para carregá-lo, meu caro Bonr, disse Sola entre uma respiração ofegante e outra.

Lá fora, um grupo de trogloditas cansados de nadar e enfurecidos pela fome decidiram subir nas árvores da vila. As criaturas deslizavam rapidamente pelos troncos em direção às baías de observação dos guardas que, devido à chuva, estavam vazias.

Um senhor catuliano que caminhava em meio a chuva segurando uma lanterna de querosene e vestindo uma capa de chuva amarela foi a primeira vítima. Dois anfíbios atravessaram suas pontas pelas costas, não houve tempo para miar por socorro. Os trogloditas se alimentaram dele ali. O resto do catuliano foi arrastado pelas águas e achado na manhã seguinte, assim como o corpo de um guarda, atacado em sua casa, e de uma dama que esperava o namorado em um encontro às escondidas.

Entre um relâmpago e outro, os trogloditas pareciam pequenos borrões que sumiam em um piscar de olhos. Um deles, que tinha escamas amarelas como a calcita, escorregava próximo ao hospital em busca de comida. Um clarão no céu fez seus olhos vazios fixarem na entrada do prédio, que estava aberta por causa do vento.

Movendo-se como um espirito errante, sua presença era sentida apenas como uma agonia. Ele caminhou por várias alas, mas nenhum dos catulianos ali chamaram sua atenção. A migração de pacientes da ala maternal para outro setor o chamou a atenção, de um corredor escuro observava as paridas carregando filhotes. A criatura, lambendo os finos lábios, decidiu que se alimentaria de uma delas.

Ele se moveu silenciosamente pelo teto, os relâmpagos que iluminavam o interior do prédio revelavam fugazmente a localização do predador, que paralisava quando acontecia. As catulianas iam diminuindo a cada minuto, ficando para trás apenas Bonrbon, Sola e Lucian.

O médico gritou, – Vamos, eu preciso acomodá-la o quanto antes! Também tenho outros pacientes para visitar. Sola era orgulhosa para admitir que o parto foi difícil, seu corpo não sucumbiu à gravidez de risco porque queria ver o sorriso do seu filho. Seu amor de mãe a manteve forte.

– Bonr, prometa que esse menino será um grande caçador, Sola disse.

– Claro, minha senhora, e viverá grandes alegrias ao seu lado, respondeu-lhe seu guardião.

– Não creio que isso será possível, falava de um jeito profético.

– Senhora, você ainda tem muitos anos de vida pela frente.

– Você sempre foi um grande amigo, Bonr... – Cuidado! Sola gritou.

À frente do guardião, o troglodita estocava sua ponta contra o trio, um tipo de lança rústica.

– Senhora, procure um lugar para se esconder, disse Bonr. – Eu dou um jeito nessa criatura!

– Cuidado, Bon... – antes de Sola terminar de falar, o guardião foi jogado contra a parede quando o troglodita o acertou com sua cauda.

A desatenção de Bonr seria o seu maior arrependimento nos próximos anos. A senhora Sola reuniu o resto de força para entrar em uma sala de consultas que estava com a porta aberta. A criatura a seguiu, seu interesse era o filhote.

A senhora Sola correu para se esconder do troglodita, apesar de cansada, não desistiria da vida de seu filho. A catuliana escondeu o filhotinho em uma gaveta de uma sala que encontrara aberta. Infelizmente, a criatura a seguiu. Sola estava acuada, mas não com medo de perder sua vida.

A catuliana chamou a atenção do predador para si, que a atacou sem remorsos. Ferida, Sola se agarrava ao seu algoz para que ele não fosse atrás de Lucian. Atordoado, Bonr apareceu na porta do escritório para enfrentar o troglodita. Armado com uma espada curta, o catuliano fez sua lâmina dançar em direção a escamosa costa da criatura.

O escamoso foi golpeado entre duas vértebras, o que fez seu corpo se contorcer em dor. Bonr cessara seu ataque quando percebeu que seu inimigo não ofereceria mais perigo. Engano. O troglodita voltou a atacar outra vez. A criatura enrolou sua cauda em volta do pescoço da mãe de Lucian e a arrastou para fora através da janela. O corpo da esposa do chefe nunca foi encontrado.

Os dias que se seguiram foram de luto para os catulianos, uma vez que Sola era uma esposa de chefe atenciosa com todos os vilãos. Lucian cresceu sob a tutela de Bonrbon, que logo mostrou exímias qualidades de caçador. Crescido e decidido, Lucian um dia herdaria a posição do pai se se mostrasse ao conselho da vila que era merecedor de ser chefe da vila, mas quem sabe o que trama o destino, talvez o futuro do jovem catuliano fosse maior do que ele.

As forças do mal cresciam como musgo às sombras, muitos reinos sucumbiram à ganância dos Filhos das Sombras, uma ordem de guerreiros antigas prostrada às artes da necromancia. Leviatã, o terrível, era o grande líder das legiões tenebrosas, sua origem é um mistério tal como a história da própria ordem. Suas ambições são claras como o raiar do dia, dominar o mundo livre e estabelecer um reinado eterno de dor e sofrimento sobre seus opositores. Muitos exércitos foram derrotados tentando lutar contra os demônios de Leviatã. O líder dos Filhos das Sombras é um poderoso estrategista, seus cercos são rápidos e triunfalmente terríveis para seus inimigos. Os poucos reinos que puderam defender seus territórios o fizeram após inúmeras baixas.

A escuridão no coração humano fez crescer a quantidade de masmorras errantes, lugares que se deslocam no espaço-tempo, torres, cavernas, labirintos, castelos, não se sabe qual a forma que a masmorra assumirá, sabe-se apenas que uma errante oferece tesouros valiosos para seus desbravadores. Os caçadores de masmorra, pessoas que se dedicam a recolher o que há dentro das construções, crescem exponencialmente, e um grupo em busca de uma possível masmorra na Floresta Negra logo se encontrará com Or’kan e Roma.

Os raios de sol que passavam pelas copas das árvores incidiam em um único feixe dourado que acertara o olho direito de Roma através de uma janela. A menina relutava consigo para levantar da cama, a boa noite de sono sobre um colchão verdadeiramente macio a fez esquecer momentaneamente do motivo de estar ali. Revigorada, a jovem arqueira saltou da cama para acordar Or’kan, que também dormia profundamente na cama ao lado. O orc resmungava alguma coisa incompreensível com os pés de fora da pequena cama, na verdade, a maior para os padrões catulianos. Na noite anterior, depois do jantar, August V pediu à dupla para que eles levassem Lucian junto a sua busca da planta cantora. A missão seria uma forma de agradecimento pelo resgate e acolhimento. – Sabia, disse o orc. – Resgates e favores nunca são de graça.

Lucian os aguardava com Bonr e Lafa, uma catuliana caçadora, caso raro nas vilas dos meninos gato. Or’kan e Roma estavam terminando de arrumar os suprimentos para o resto da viagem. – Antes de guardar os pães, enrole em uma folha gigante, para eles não ficarem duros tão rápido, disse o mercenário.

– Não temos nenhuma folha gigante, respondeu-lhe a menina.

– Orc, nós percorreremos pelos pastos de Andrada, interpolou Lucian.

– Eu não conheço esse caminho, disse-lhe o mercenário.

– É um caminho secreto da vila, por lá não haverá nenhum obstáculo, disse o catuliano.

– Então será nossa via, obrigado, falou cortesmente o orc.

De fato, os pastos de Andrada é uma parte do território catuliano que serve para a criação dos animais que fornecem alimentos à vila, lá existem enormes lagos artificiais para a produção piscicultora e hortas. O conselho e o chefe da vila jamais permitiriam que forasteiros caminhassem por lá com exceção àqueles que estão em alguma missão oficial. O que não é, de fato, o caso de Roma e Or’kan, mas como estão acompanhados de Lucian e de dois caçadores da vila, a permissão para cortar caminho foi aceita.

O vento soprava levemente quebrando a calmaria dos lagos, que formavam pequenas ondas. Lucian a Or’kan conversavam descontraidamente sobre uma de suas aventuras. Roma caminhava alguns passos atrás, acompanhada de Lafa e Bonr. A menina observava como era bonito o negro pelo da caçadora e seu arco que possuía um fio dourado que brilhava como fogueira em meio à noite. O grupo já enxergava a entrada da Floresta Negra, um horizonte de árvores escurecidas e retorcidas. Diz-se que tal floresta é amaldiçoada pelo Rei da Mata porque as ninfas acolheram em seu interior um decadente nas guerras da criação. Deste então as árvores crescem torcidas e suas folhas grossas impedem a passagem de luz solar, fazendo com que o interior seja frio, úmido, e misterioso para quem se aventura. Sua natureza tenebrosa é um chamariz para muitos monstros, os trolls são uma das espécies que habitam seu interior, junto a gnomos sombrios e goblins.

– Esperem! Falou Or’kan fazendo um sinal com a mão direita.

– O que foi? Perguntou Lucian enquanto olhava o companheiro com uma expressão séria.

– Não notou? Há mais alguém próximo, respondeu o orc para seus companheiros.

– É impossível, disse-lhe Lafa. – Apenas catulianos andam por aqui.

– Não mais, pelo visto, ele a respondeu. – Fiquem atentos!

O vento soprou forte, as folhas das árvores da floresta dançaram livremente ao se soltarem dos galhos retorcidos. O grupo estava atento a qualquer coisa estranha ao seu redor. – Podemos voltar a caminhar, eu acho, disse Or’kan.

– Seja mais cuidadoso, mercenário, disse Lafa com rigidez.

– Ele sabe das coisas, Roma retrucou. – Or’kan salvou meu amigo de um demônio.

A caçadora se consternou em suas palavras, ficando calada no trajeto até a entrada da floresta. – Façamos uma pausa, anunciou Bonr.

– É seguro ficar por aqui? Questionou Lucian.

– Meu senhor, fique tranquilo, a luz do sol impede que as criaturas venham até as beiradas da floresta, respondeu-lhe o guardião.

– Estou com fome! Exclamou Roma. – O café da manhã passou rápido.

– Fome a essa hora, menina?! Interpolou o mercenário. – Caminhamos apenas metade do trajeto.

Lucian estava sentado sobre uma pedra coberta de musgo observando a conversa entre seus companheiros. O jovem catuliano vestia uma indumentária completa de caçador, cota de couro, botas de cano curto, uma calça perfeitamente alinhada a suas pernas, um cinto com uma pequena adaga decorada com o símbolo de uma maçã atravessada por uma seta, um tesouro herdado do herói caçador Guido Tell, uma aljava de flechas e um arco de roseira feito com uma técnica de forja dos anões das Montanhas de Ferro.

O grupo já sentia a frieza natural do interior da floresta, no seu chão crescia apenas uma relva pálida com tons escuros de verde. Os raios de sol que conseguiam penetrar os apertados espaços entre as copas das árvores faziam com que o ar florestal assumisse um tom crepuscular de lilás. – Esse pedaço de pão recheado com sardinha em creme é uma delícia, disse Roma entre uma bocada e outra.

– Não fale de boca cheia, advertiu o mercenário.

– Foi Bonr que preparou, disse Lafa. – Ele é o melhor cozinheiro das nossas caçadas.

– Eu quero um pedaço de dourado frito, pediu Lucian.

– Está na sacola pendurada naquele galho, respondeu-lhe Bonr apontando para um galho seco.

– Isso é alguma brincadeira? Não há sacola alguma, disse o jovem caçador.

– Eu deixei aí, afirmou o guardião.

Perto deles, um gnomo sombrio comia ferozmente o dourado inteiro, a pequena criatura foi atraída pelo cheiro da gordura do peixe que escorreu e deixou na sacola um aroma adocicado. Com cinquenta centímetros de altura, os gnomos sombrios são seres marginalizados por seus iguais que não vivem na Floresta Negra. Uma forma de diferenciá-los dos outros gnomos é pela cor arroxeada da pele, olhos carregados de olheiras e cabeça sem chapéu, um símbolo de honra entre a raça gnoma.

– Maldito! Gritou Roma. – Aquela criatura pegou o peixe do Lucian.

– Vamos pegá-los, disse Lafa.

– Calma, não podemos assustá-lo, disse Or’kan.

O pequeno gnomo lambia a ponta dos dedos sem perceber que ele seria caçado, mas sua percepção de perigo era aprimorada. Viver em um lugar perigoso o ensinou a ser atento mesmo nos pequenos momentos de prazer da vida. A criatura sentiu Lucian se aproximando dele, o que fez que soltar um grunhido e saísse correndo floresta a dentro.

– Ele escapou, disse de maneira cabisbaixa Roma.

– Não adiantava ir atrás dele, falou Bonr.

– Minha adaga, vocês a viram? Perguntou Lucian.

– Não, respondeu o grupo.

– Foi o maldito gnomo, disse o jovem caçador.

– Preste mais atenção na próxima vez, disse Lafa com um tom azedo.

– Eu irei sozinho, ninguém precisa ir comigo, disse Lucian. – Eu não posso ficar sem minha adaga.

– Um caçador sem adaga é um caçador sem escudo, disse Bonr. – Lafa irá com você, Lucian. Eu e a dupla buscaremos a planta.

– Não se preocupem, disse-lhes o mercenário. – Esta missão sempre foi apenas minha e de Roma desde o início.

– A questão, Or’kan, é que a adaga de Lucian é um item muito raro para ser perdido, falou o guardião.

– Estou envergonhado por deixar minha arma perdida, falou o jovem caçador.

– Não fique assim, disse Roma tentando consolar o catuliano. – Uma vez eu perdi meu amigo.

– Menina, vá com Lucian e Lafa, falou o orc. – Bonr e eu seremos o suficiente para pegar a planta.

– Vocês esquecem que essa floresta é cheia de caminhos traiçoeiros, Lafa interpolou. – É perigoso caminhar aleatoriamente sem um objetivo.

– Qual seu plano, assentia Bonr para a caçadora.

– Vamos primeiro atrás da planta dos dois, depois iremos atrás de sua adaga, a catuliana propôs.

– Cadê o Lucian? Perguntou Roma.

– Mimado, ele fez de novo, disse Lafa após cuspir em sinal de desdém.

– Vá atrás dele, falou o guardião. – Leve a menina com você.

– Vamos Roma, disse a caçadora subindo em uma árvore. – Seguimos por essa trilhas de raízes expostas.

O jovem catuliano separou-se do grupo enquanto conversavam sobre a divisão dos grupos, envergonhado por perder sua adaga, ele decidiu resolver sozinho sua questão. A Floresta Negra não tomaria dele sua arma. Longe dali o pequeno gnomo corria com a adaga de Lucian em mãos quando foi atraído, outra vez, pelo aroma salgado de um assado. Ao redor da fogueira, um homem de meia-idade, com dreadlocks e pele amarela, assava um vistoso pedaço de porco selvagem. Os olhos puxados de Raoni eram iluminados pelas língua do fogo que derretiam a gordura da carne. Ao seu lado, uma pessoa com grosso gibão marrom e capa verde meditava profundamente.

A criatura se movia sorrateiramente entre os arbustos sem fazer barulho algum. O gnomo queria a sacola de suprimentos perto de uma pedra a cinquenta metros de Raoni. Arrastando-se pelo chão, centímetro a centímetro ele tomava espaço para roubar outro grupo. Com seus curtos braços, o gnomo tentou alcançar a alça da sacola de couro, mas foi interrompido pelo crepitar do fogo, que fez Antje, que na língua livre se fala Annie, abrir os olhos.

– Porco desgraçado! Exclamou a sacerdotisa verde. – Morrerei de fome.

– Calma, Antje, logo a carne estará pronta, disse o paciente mercador.

– Yure saiu a meia-hora e ainda não voltou, falou a curadora enquanto balançava os curtos cabelos azuis.

– Ele é bem crescidinho, disse Raoni. – Não fique tão preocupada porque isso mexe com seu estômago.

– É um crianção, a sacerdotisa falava de um jeito aborrecido.

– Quem é crianção? Perguntou Yure ao chegar de surpresa.

Antje ficou embaraçada porque o cavaleiro andante a apanhou falando dele. Yure era silencioso, tímido e muito astuto, de pele leitosa e cabelos prateados, e olhos da cor de esmeralda, havia um mistério por trás do cavaleiro que incomodava a jovem sacerdotisa, que sempre comentava com Raoni sobre o companheiro de caça de masmorra. O grupo se formou na cidade de Octavia, na guilda de caçadores.

Na ocasião, o mercador Raoni buscava um grupo que pudesse ajudá-lo a desbravar as misteriosas masmorras que surgiam ao redor do mundo. Habilidosos homens, mulheres, elfos, orcs, anões, catulianos e outras criaturas com sapiência o suficiente saíram mundo a fora em busca de tesouros raros, itens mágicos e prazer de tornar o desconhecido, conhecido.

Na porta da guilda de caça, Raoni andava de um lado a outro anunciado seu convite para quem entrava no grande prédio de tijolos laranjas. A velha porta da construção rangia suas dobradiças por causa do movimento intenso de criaturas que passavam por lá. As recepcionistas, três jovens octavianas vestidas com um uniforme carmim com abotoaduras quadradas de azul-marinho se revezavam atrás do balcão. A pergunta que você, caro leitor, talvez se faça, seja o porquê buscar uma guilda para viver aventuras e recolher tesouros em ambientes hostis.

É simples, a guilda funciona como um seguro para quem se associa, por apenas cinco por cento dos lucros de cada tesouro, os caçadores associados têm um hotel para ficar em todas as cidades do país, além de comida e tratamento médico, caso sobrevivam, a sua viagem. Raoni acabara de pagar a taxa de inscrição, no valor de 150 moedas de ouro, para receber todo suporte da guilda.

– Ei, mercador! chamou o cavaleiro.

– Deseja algo? Questionou Raoni.

– Eu tenho uma busca especial, posso me juntar a seu grupo? Falou-lhe Yure.

– Bem, somos apenas os dois, o mercador respondeu.

– Sem problema, eu não gosto de muita aglomeração, disse Yure.

– Qual sua busca, companheiro? Disse Raoni. – Riquezas, fama? Falava descontraidamente.

– É algo sem importância para você, respondeu sem rodeios o cavaleiro.

– Certo, cada caçador caça sua presa perfeita, se sonho, se pesadelo, isso depende apenas de quem luta, disse Raoni.

A dupla seguiu para o hotel da guilda, no caminho, Yure esbarrou em Antje, que comprava uma porção de maças com um vendedor de rua. A sacerdotisa verde, nervosa, nada paciente, virou-se bruscamente para o “– paspalho sem atenção!” que a fez derrubar suas maçãs. Yure ficou sem graça com a situação, apesar de desculpar-se, a jovem esbravejava.

– Perdoe o meu companheiro, sacerdotisa, disse o mercador.

– Como você sabe que sou uma curadora, respondeu-lhe Antje mudando sua expressão de raiva para surpresa.

– O manto verde e o broche de pinho, falou gentilmente Raoni. – Estas são peças únicas dos servos de Uadjit, a deusa dos vales. Estou certo, não?

– Percebo que sua sabedoria ultrapassa a do paspalhão aí, disse a curadora com uma voz carregada de desdém por Yure.

– Eu já pedi desculpas, não voltarei a bajular para que me conceda seu afeto, disse o cavaleiro de maneira resoluta.

O mercador era um estudioso de línguas antigas, como ninguém ele sabia julgar com precisão as pessoas ao seu redor por causa da facilidade de interpretação que carregava consigo, algo similar à acurácia dos arqueiros, ou precisão dos magos, quando desferem seus poderosos projéteis, seja físico, seja mágico. Raoni ficou interessado que Antje fizesse parte de seu grupo, uma sacerdotisa verde seria bem-vinda.

– Junte-se a nós, curadora, propôs o mercador.

– Que convite direto, ela respondeu-lhe. – Não tenho interesse.

– Esta é uma boa proposta, partiremos em busca de tesouros, conhecimentos e itens raros deste mundo, oferecia Raoni enquanto suas mãos se moviam animadoramente, apesar de sua expressão mostrar calma após uma tempestade.

O cavaleiro andante de Tundra, cidade ao norte gélido do outro lado do mar cristalino, nas terras de Britannia, olhava-os de maneira plácida, resignado a seus pensamentos nebulosos. Vestido com uma corta de anéis, ombreiras curtas e botas cano alto, nas costas ele carregava sua espada de duas mãos, a Infâmia dos Gigantes, um tesouro de família repassado por gerações, do herói Bakhtin na primeira guerra do inverno, ao decepar a cabeça de Golias, o rei dos Nephilins, uma raça antiga, para libertar a Tundra da tirania de seu senhorio, aos seus avós e pais. Yure Hielomman carregava consigo a glória de sua família, mas seu interesse estava em outro artefato, dito nos mitos de seu povo, nas histórias de dormir para as crianças, a espada Gaélica, forjada na primeira montanha do mundo, com o fogo do rei-dragão pelo mestre-ferreiro Gu’Namon Steelerock. – Não há a menor chance de caminhar com esse sujeito, falava a curadora apontando para Yure.

– Não seja tola, mulher, disse o cavaleiro. – Venha conosco e pare de asneiras, falou com um imponente terror que gelou a espinha da curadora.

A voz dele soou dentro dela como a voz divina de sua deusa ao contar os segredos da magia verde em seus ouvidos. – Raoni, eu irei se você deixar esse esquisitão longe de mim, falou Antje.

– Sua vontade será cumprida, senhorita, respondeu-lhe o mercador com um sorriso leve. – Yure, não atormente a dona Antje, falou com um tom adoçado de ironia.

– Tsc! Que seja, disse o cavaleiro virando-se para olhar algumas adagas em uma tenda de armas leves ao lado da tenda de frutas.

Antje, por sorte ou por azar, estava hospedada no hotel para o qual Raoni e Yure estavam indo. O trio, antes de entrar, marcou para jantar no bar do Porco Louco à frente, a cozinha do hotel da guilda não era famosa pelos pratos deliciosos, exceto pelo café da manhã e pelos pães frescos de cevada recheados com carne defumada de pato. A sacerdotisa verde tomava um copo de cerveja preta, o cavaleiro tomava vinho quente e o Raoni suco de laranja com hortelã. Para o prato principal eles escolheram batatas grelhadas, uma coxa de pernil frito em banha de porco e sopa de grãos. Aquela comida fez os aventureiros salivarem por causa do aroma doce que exalava da carne grelhada temperada com manjericão, alho e suco de limão.

O bar estava lotado de outros grupos que saboreavam a deliciosa comida e riam alto das histórias que viviam ao redor do mundo em busca das masmorras. Na mesa à esquerda, um grupo de guerreiras amazonas, de peles pardas e negros cabelos trançados como correntes que prendem as almas no Tártaro, e vestidas com rústicas cotas de couro e armadas com lâminas circulares dentadas, comiam faisões assados e bebiam hidromel enquanto riam umas das outras. À direita havia um grupo grande que comia carne de novilho e sopa de beterraba, cada membro trajava um corselete azul-petróleo bordada com uma garra de águia de cor vermelha. Seu líder era um anão marrento chamado Alfoir Montana, um mestre-ferreiro considerado um herói de masmorra, título concedido aos aventureiros que derrotam o lorde maligno que habita, ou não, tais lugares.

A fama que o precede fala da masmorra que era ninho de um dragão revivido pela magia de um necromante, após engolir a vida de muitos aventureiros, os quais se tornavam servos do espectro necromante, Montana montou sua própria companhia de caçadores para dobrar a vontade dos monstros e tomar-lhes seus tesouros. Ele buscou especialistas em magia ofensiva, cura, combate corpo a corpo e rastreamento. Sua pequena legião de guerreiros, magos, caçadores, curadores e rastreadores demoraram dois anos para chegar ao fim da Caverna Jade, como ficara conhecida àquela masmorra. No seu retorno voltaram apenas cinco aventureiros, Barrosa, DeCaux, Carina, Kalducien e o próprio Montana.

O anão comia olhando desconfiadamente para todos. Sua grossa barba da cor de argila, que ia do verde ao branco, deixava pingar a gordura que seus finos lábios deixavam escapar do novilho assado. Ao seu lado estava Barrosa, seu capitão rastreador, um homem comprido de feições finas, pele bronzeada e olhos negros como o eclipse, acompanhado de duas belas elfas de companhia dos Campos do Sol.

O barulho que preenchia o ambiente do bar cessou pelo estalo de um tapa porque Tito mão-solta, um batedor do grupo de Montana, passou a mão na irmã de Alisa, Saria, líder do grupo das amazonas. A valente guerreira deu um tapa tão forte no rosto sem vergonha de mão-solta que todos olharam a vergonha que a aventureira fez passar o abusador. – Que moça, corajosa, disse Tito.

– Nunca mais use sua mão imunda para tocar minha pele ou estará sem ela na próxima vez, disse Saria erguendo uma adaga de lâminas da cor de bronze para mão-solta.

– Tente mulher, respondeu-lhe Tito de maneira escarnecedora.

– Volte para seu lugar! Gritou Montana. – Não sabe respeitar seu igual, mão-solta?

– Sim-sim, senhor, respondeu-lhe o abusado sem levantar o olhar.

Alfoir levantou sua corpulência musculosa de maneira imponente, sua presença impunha tal respeito que apenas Alisa olhava-o firmemente.

– Sua presença é um presente, Alisa, disse Montana esforçando-se para parecer cortes ao dirigir a palavra para a líder amazona.

– Não perca tempo com lisonjeio, anão, falou a amazona com um tom de voz duro como o aço. – Segure seu cão na próxima vez.

– Cubra melhor sua cadelinha, retrucou Alfoir segurando o grosso cinto cravejado de pedras vermelhas. – Talvez assim meus cães se guardem melhor dentro das calças.

– Como ousa?! Falou Alisa com uma expressão vulcânica que lhe avermelhava as pardas maçãs sobressalentes de seu rosto redondo.

– Não tente, mulher, advertiu o anão. – Meus cães não gostam de ver seu dono apanhando, mesmo que por mãos tão belas.

Alfoir sabia como insultar as pessoas, um dom natural, talvez, mas suas palavras fizeram Alisa partir em direção dele. Com um movimento rápido, ela fez girar uma lâmina serrada que atingiria em cheio o rosto do anão se Barrosa não tivesse segurado seu ataque com um talher. O choque das armas fez um tinir que vibrou desconfortavelmente em todos que assistiam a pequena escaramuça.

Yure se sentia incomodado com todo aquele movimento, seus sentidos apurados perceberam o dano psiônico que Barrosa infligiu a todos, era uma técnica que causava confusão nos inimigos. – Fique calmo, companheiro, disse Raoni sussurrando. – Eu conheço as táticas daquele capitão.

– Que gente sem classe, dizia Antje com um tom de desaprovação.

– Montana sempre causa confusão por onde passa, disse o mercador.

– Aquele homem, falou Yure se referindo a Barrosa. – Que tipo de força ele usou para segurar a amazona?

– O capitão rastreador de Montana estuda antigas técnicas de batalha da região da Cananeia, respondeu-lhe Raoni. – Poderes cheios de segredos.

As guerreiras amazonas se levantaram para lutar por sua líder, o grupo do anão também se levantou. Oito para cinco, esta era a proporção dos grupos que agora brigavam no Porco Louco, as garçonetes se escondiam atrás do balcão, alguns grupos entraram na nuvem de confusão. Socos, pontapés, garrafas voando, pratos dançando pelo ar, a ordem deu lugar à baderna. O dono do bar, o senhor Kubrick, correu para chamar pela guarda da cidade, que apareceu apenas quando um princípio de incêndio foi começado porque uma maga catalisou uma bola de fogo para acertar um ladino que tentava afanar uma adaga laminada de ouro do seu companheiro de equipe. O hábil gatuno se esquivou, fazendo com que a bola de fogo acertasse uma garrafa de rum que explodiu cuspindo fogo-líquido por uma parte do chão. As chamas já beijavam uma das vigas de sustentação quando a guarda real, vestidos com armaduras peroladas com uma roda dentada cravada no peitoral e ombreiras, conseguiram conter os ânimos.

O dono do Porco Louco teve um prejuízo de 4 mil moedas de pratas e mil de ouro entre as reformas que precisaria fazer e a chamada de emergência da guarda octaviana. Depois que os aventureiros saíram do estabelecimento do senhor Kubrick, Montana reconheceu alguém especial para ele, Raoni.

– Como vai companheiro, disse o anão alisando a barba.

– Levando, respondeu Raoni em um tom de voz tumular.

– Anos se passaram e você não mudou nada, homem, falou o anão sem reverência.

– Até mais, Montana! Disse o mercador dando de costas.

– Espere! Gritava o anão.

– Até mais, falava Raoni enquanto se afastava do velho amigo de masmorra.

Antje e Yure se entreolhavam sem entender a situação, de toda forma, deixaram para lá qualquer coisa, afinal, daqui uns dias o grupo partiria para a Floresta Negra. Era o momento de arrumar os suprimentos, traçar rotas e afiar espadas.

Um barulho no arbusto próximo a Antje fez Yure tirar a espada da bainha, o brilho da lâmina parecia que Infâmia do Gigantes tinha vida própria. – O que foi? Questionou a sacerdotisa.

– Há algo perto, anunciou o cavaleiro.

O mercador se ergueu revelando dois pequenos machados, um em cada mão, ao se colocar em posição de combate. A sacerdotisa fez o sinal de conjuração para invocar um feitiço de veneno. O que quer que saísse do arbusto receberia um ataque poderoso do grupo.

– Aaaahhhhh! Gritou Roma.

– Uma menina, falou Antje.

– Quem é você? Perguntaram.

– Calma, não me ataquem, disse a menina.

Uma seta foi disparada na direção de Yure, que a rebateu com sua espada. – Uma distração, disse o cavaleiro. Outras flechas foram disparadas, de direções diferentes e tão velozes quanto a primeira. Com sua espada, o cavaleiro conseguia se desviar de todas, mas uma ou duas acertaram de raspão as partes descobertas de sua indumentária, o braço direito e no rosto, que naquele momento deixava escorrer um pouco de sangue misturado ao suor. Raoni e Antje tentavam se esconder de alguma forma, mas aquele ataque era direcionado a Yure, que resistia bravamente.

– Para, Lafa! Gritou Roma.

As flechas cessaram, houve um silêncio que logo foi cortado pelo barulho sinistro do vento que saia de galhos ocos, dando a impressão de que vozes macabras gargalhavam da infeliz sorte daquelas pessoas estarem lá. O arbusto se moveu outra vez, uma sombra difusa saiu, era Lafa.

– Como você ousa! Miava a caçadora.

– Eles não me fizeram mal algum, respondeu Roma.

– Ei gatinha, disse Raoni. – Você é uma catuliana da vila ao norte de Aldrovia?

– Qual seu interesse em minha vida, Lafa respondeu impertinentemente. – Quero eu saber com que falo em lugar tão perigoso?

– Somos caçadores de masmorras, disse Yure com uma sombria calma na voz. – Este é nosso líder, e aquela é nossa curadora.

A catuliana olhava desconfiadamente para todos com seus profundos olhos felinos que brilhavam como a distante Andrômeda nos céus de verão por causa da leve escuridão da floresta. Roma se levantava do tombo provocado pela caçadora que a usou como isca quando avistaram o grupo ao redor da fogueira.

– Olhe, disse Roma. – A adaga de Lucian!

– Que objeto brilhante, disse o mercador. – Parece que há muito valor neste artefato.

– É uma joia de nossa vila, respondeu-lhe Lafa.

– Qual o preço? Questionou o mercador.

– Não há, esta adaga pertence ao filho do chefe da vila.

Yure deu alguns passos para apanhar a adaga. – Tome, menina, disse o cavaleiro.

– Muito obrigada, respondeu Roma com as bochechas coradas enquanto pendurava no cinto a arma.

O grupo ouviu um fino grunhir vindo de trás de uma rocha negra, era o gnomo sombrio quase morto. Uma das flechas de Lafa lhe atravessara o delgado dorso. Com uma expressão de terror e de dor, os olhos da criatura clamavam por misericórdia.

– É o que merece um ladrão, disse Lafa com braços cruzados com olhar implacável para o gnomo.

– Vamos terminar logo com isso, sugeriu a sacerdotisa. – O corpo desse gnomo pode me servir. Yure, empresta a faca.

– O que você fará, Antje? Questionou o cavaleiro.

– Rápido, me dê antes que seja tarde, disse a curadora apressadamente.

Yure girou em suas mãos uma faca de combate, entregando a Antje pelo cabo. No chão, a sacerdotisa desenhou alguns símbolos dos Vales para invocar um feitiço verde com a faca de Yure. – Et factum est pulveris et reditus pulveris, recitou Antje. O círculo brilhou levemente com uma luz verde pálida. A energia saída da terra se movia nas palmas da mão da sacerdotisa como uma chama. Todos estavam atônitos por presenciarem a manipulação de energia etérea tão próxima.

– Eu irei transformar o corpo do gnomo em material, falou Antje em sussurro.

– Você é cruel, falou o cavaleiro.

Movendo-se lentamente, ela se aproximou do moribundo gnomo e soprou as chamas verdes sobre ele. A criatura parou de se contorcer em agonia, seu corpo começou a se desfazer em pó, primeiros as extremidades, depois o tronco, por fim restou apenas dois olhos cinzas, opacos. A sacerdotisa pediu para que Raoni pegasse um tubo de ensaio em sua sacola.

– Que nojo, disse Roma. – Como você tem coragem de pegar em algo morto.

– Não está, falou Antje. – Eu apenas alterei seu estado da matéria. Tudo em nosso universo se transforma.

– Filosofia interessante, interpolou o mercador. – Precisamos sair daqui.

A curadora recolheu o pó de gnomo e pôs no tubo, selando-o depois com uma rolha. – Pronto, já recolhi meu material, disse Antje.

– Precisamos achar Lucian, disse Lafa para Roma. – O caminho que seguimos era diferente do que ele tomou.

– Sério?! Disse Roma de um jeito indiferentemente irônico. – Eu falei para tomarmos o sentido oposto quando chegamos àquela clareira.

– Você não tem experiência nessa floresta, Lafa falou respondendo a provocação da companheira.

– Precisam de ajuda, propôs o cavaleiro. – Entendo que buscavam alguém.

– Sim, um menino gato chamado Lucian, respondeu Roma. – Ele deixou nosso grupo em busca do gnomo que roubou a adaga que você deu para mim.

– As rotas desta floresta são perigosas, qualquer ponto de referência equivocado pode ser a causa de um perdido, falou Raoni enquanto alisava o queixo.

Quando o mercador acabou de falar, um pequeno tremor de terra foi sentido por todos. As árvores balançaram em uma espécie de dança macabra, folhas se soltaram e corvos bateram suas asas. Gritos foram ouvidos, primeiro distantes, depois perto, e mais perto, junto a trepidação da terra. Do meio dos arbustos apareceu Lucian, agitado, sujo, desesperado. – Corram! Ele gritava. Atrás do catuliano, um gigantesco troll perseguia o menino gato, cada passo do monstro fazia tremer a terra, quando seus braços se moviam, as árvores eram arrancadas de lugar, e um odor de frutas podres que exalava de sua boca sufocava quem ousasse encarar a poderosa criatura da floresta negra. De corpo forte como um tronco maciço, braços excessivamente musculosos, a criatura vestia uma tanga, uma pele de algum animal que também foi sua refeição.

Yure desembainhou sua espada, posicionado, ele tencionou seus músculos para desferir um golpe poderoso sobre o monstro. A criatura rugiu quando viu o grupo de aventureiros. – Antje, invoque algum feitiço de atordoamento! Gritou o cavaleiro.

Raoni se desequilibrara um pouco quando o monstro pisou mais forte ao chegar ao acampamento. Roma e Lafa cuidavam do coitado Lucian, e Antje conjurava um feitiço que pudesse atrapalhar os ataques do troll. – O caminho da espada é o caminho do cavaleiro, Yure repetia em sua mente. O avanço bruto da criatura fez o cavaleiro rolar para o lado para escapar de um golpe certeiro, ele sabia que qualquer dano naquela luta representava a morte.

Raoni foi por trás do monstro que estava em um transe insano de ira. – Yure, estou pronta! Gritou a sacerdotisa.

– Faça! ele respondeu.

As mãos da curadora brilhavam como centenas de pontos amarelos que se moviam livremente. – Este feitiço vai aumentar sua força e a de Raoni, explicou Antje. – Nympharum vallis tua dona malum.

Yure e Raoni sentiram um vigor sobre seus corpos, que agora pareciam mais leves. O troll investiu contra o mercador, que se lançara em um ataque direto. Um dos machados provocou um corte profundo entre as pernas da poderosa criatura. Yure balançava a Infâmia dos Gigantes com destreza. – Roma, fique com Lucian, vou ajudá-los, disse Lafa.

– Fique você, respondeu a menina. – Eu darei suporte a eles com minhas flechas.

– Tu não tens tanta agilidade assim, retrucou a caçadora.

– Não duvide, falou Roma dando as costas para os catulianos.

A menina se posicionou atrás de uma árvore próxima à Antje. Sua aljava estava cheia de flechas. Aquele era um bom momento para experimentar os equipamentos que Or’kan lhe presenteara. O arco estava em riste, o fio esticado ao limite, a menina inspirou profundamente, e quando soltou o ar de uma vez, soltou também a flecha, que rasgou o ar em forma de espiral, um efeito que pouco arqueiros alcançam após anos de treino.

A primeira flechada acertou um galho que fez um barulho surdo no impacto. Roma voltou a esticar seu arco, dessa vez ela não puxou com tanta força a corda. Apontando impecavelmente, ela soltou a segunda flecha, que penetrou na carne do troll, chamando sua atenção. – Ele está vindo em nossa direção, disse a curadora.

– Antje, Roma! Saiam daí! Gritou Yure correndo em direção ao monstro para golpeá-lo pelas costas.

– Raoni, chame a atenção do troll, disse a sacerdotisa.

– Certo! O mercador respondeu.

A curadora tinha conhecimento de um veneno que talvez faria desabar o monstro facilmente, no entanto, o problema era o catalisador, no lugar do pó de fada, ela possuía apenas o pó de gnomo recém-coletado. – Espero que dê certo, Antje falava consigo. O cavaleiro mudou sua tática de batalha indireta para um confronto cara a cara. Quando o monstro balançava seus braços aleatoriamente, Yure fazia pequenos cortes, que provocavam uma pequena hemorragia. A criatura rugia devido ao ardor provocado pela lâmina da espada matadora de gigantes. O sangue do troll possuía a viscosidade semelhante à seiva de árvore.

O lugar estava pintado de sangue da criatura, que sangrava bastante. Raoni conseguiu acertar um golpe crítico em meio as costas do monstro, mas o contra-ataque da criatura fez o mercador ser lançado distante, uma forte pancada que o jogou a 100 metros do grupo. A boca do mercador sangrava, observando Yure, Antje e Roma lutarem, ele decidiu usar um artefato que os levariam à vitória.

– Antje, saia daí, gritou o cavaleiro. – O monstro vai atrás de você.

Os passos pesados do monstro fizeram Antje perder o equilíbrio, o que a fez cair sem compostura para evitar ser golpeada pelo troll. Roma interviu com duas flechas que penetraram na lateral do monstro, seriam mortais se a pele não fosse dura como pedra por causa das plantas que cresciam sobre seu corpo enquanto dormia. Distante do centro da batalha, Lafa dava suporte à Lucian, que se feriu na perna durante a fuga.

– Todo treinamento e você corre feito criança, Lucian, disse a caçadora.

– Cala a boca, isso não é hora de bronca, retrucou miando o menino gato.

– Seu pai não irá gostar de saber que o filho foi ferido em batalha, falou Lafa.

– Um bom caçador tem cicatrizes, respondeu Lucian.

Roma estava com a aljava quase vazia, restaram cinco flechas, das quais duas foram desperdiçadas porque o alvo se moveu, uma caiu na hora de retesar o arco, a outra se partira e a última estava em mira. Sob um galho, ela fixou seu olhar entre os olhos do troll, separados pelo estrabismo natural daquele tipo de criatura, um pouco abaixo estava seu nariz, como um amontoado de cogumelos. Em geral, a estética de um troll em muito se assemelha a um jardim de flores perturbadoras.

A jovem arqueira segurava o arco com firmeza, sua respiração seguia um padrão contínuo, ela se concentrara para sentir brotar a percepção que nunca a fez perder um alvo. Cativa de seu foco, em um expirar curto seguindo de um longo, ela soltou a corda. A flecha correu algumas centenas de metros. O acerto em seu alvo fez o monstro perder toda sua acuidade, uma espécie de cegueira.

Raoni aproveitou o momento para apanhar em sua sacola, após ter se arrastado, uma garrafa de fogo-líquido. Depois de sacudir para ativar o efeito de sua substância, ele lançou em direção ao monstro, que foi acertado nas costas. O vidro quebrou fazendo a mistura queimar as plantas que endureciam a pele da criatura, fazendo-a amolecer. Yure correu contra o monstro e arremeteu sua espada que trespassou a criatura. O troll soltou um rugido agoniante com a espada atravessada em seu corpo antes de cair de joelhos e morrer.

O resultado da batalha foi uma costela trincada em Raoni, alguns arranhões em Yure, luxações em Antje e um corte em Roma, feito quando a menina subiu na árvore. – Pegue a flor do troll, disse Lucian enquanto caminhava em direção ao grupo.

– Que flor? Perguntou Raoni.

– A que nasce sobre as cabeças dos trolls da Floresta Negra, falou o jovem caçador.

– Ah, certo. Eu vejo uma daqui, falou o mercador.

– Corte com cuidado, essa planta é muito frágil, sugeriu Lucian.

– Yure, por favor, faça o corte, disse Raoni.

O cavaleiro pegou sua faca de combate e cortou precisamente. Apesar da acurácia com o corte, alguns fios de cabelo saíram juntos. – Agora posso salvar, Hammax, disse Roma.

– Qual o propósito da coleta? Questionou a sacerdotisa.

– Antídoto para veneno de demônio, respondeu Roma. – Um amigo em Aldrovia espera por essa planta.

As pétalas da planta cantora formam uma espécie de boca que, quando amassadas, soltam um agudo gemido, como se estivessem, de fato, cantando. – O corpo do troll tem muito material, falou Antje. – Posso coletar bastante catalisador.

– Pegue somente o essencial, curadora, ainda temos nossa missão, falou o cavaleiro.

– Não me dê ordens, seu bastardo! Retrucou Antje. – Eu faço o que quiser.

A fogueira crepitava com o resto de lenha que sobreviveu ao ataque do troll. Lafa, Roma e Lucian agora precisavam encontrar com Or’kan e Bonr que foram em busca de outro troll para arrancar-lhe a flor cantora. – Estamos de partida, disse Roma. – Obrigado pela ajuda.

– Não ajudamos vocês, apenas nos defendemos do monstro trazido por seu amigo, disse Yure com sua frieza natural.

– Você poderia ser diplomata, cavaleiro, disse a sacerdotisa escarnecendo do companheiro.

– Minhas sinceras desculpas, disse Lucian. – Não foi minha intenção pôr a vida de terceiros em perigo.

– Catuliano, sua vila fica em nossa rota de volta à Aldrovia, receba-nos para recompensar nossa ajuda, disse o mercador.

– Serão recompensados, disse Lafa. – Agora precisamos voltar o quanto antes.

– Nos veremos outras vezes, pensou Antje enquanto olhava os dois catulianos e a menina Roma adentrarem a floresta.

A luz do dia já começara a se despedir, e o frio ficaria mais intenso. Or’kan e Bonr passaram o dia buscando por indícios de trolls pela região da floresta em que estavam. Eles organizaram um raio de busca de 5 quilômetros, mas até o momento nada acharam. Quando o entardecer perdeu para a noite, de uma trilha de arbustos espinhosos saíram Roma, Lafa e Lucian.

– Pelos deuses! O que aconteceu? Questionou o orc.

– Pegamos a planta, falou animadamente Roma. – Lucian encontrou um troll.

– Que notícia boa, menina, respondeu o mercenário. – Precisamos correr para Aldrovia, temos apenas um dia para salvar Hammax.

– Vocês não conseguirão chegar à vila em meio a escuridão da floresta, falou Bonr. – Vamos aguardar o amanhecer.

– Lucian está ferido, falou Lafa para seu guardião. – A perna do seu tutelado se arrebentou.

– Como isso aconteceu, garoto? Questionou Bonr a Lucian.

– Não fale assim, disse o jovem caçador. – Eu já tenho idade suficiente para assumir meus atos.

– Prometi a sua mãe que cuidaria de você, respondeu seu guardião.

– Guarde seus sentimentos, Bonr, falou Lucian. – Mas se você quer saber, eu contarei... quando fui atrás da minha adaga, percorri pela trilha do gnomo. Em certo ponto percebi que havia um caminho bifurcado.

– Ainda se diz caçador, interpolou a caçadora.

– Deixe-o falar, miou rispidamente Bonr.

– Segui por uma trilha mais aberta, que deu em uma clareira com uma enorme rocha no meio cercada de plantas, narrou o catuliano. – Depois de perceber que estava perdido, eu peguei meu arco e deixei encostado na rocha, que começou a se mexer fazendo a terra tremer. Antes de perceber, um troll corria atrás de mim quando cheguei no acampamento de um grupo de caçadores de masmorra.

– Uau! Disse Or’kan. – Você é sortudo por ter saído vivo dessa situação.

A fogueira queimava com vigor, alguns peixes assavam junto a uma panela que fervia um caldo improvisado de legumes. O grupo de Roma e Or’kan comiam sossegados quando um grito cortou a tranquilidade. Or’kan se movimentou nas sombras para esperar os inimigos. Lafa e Bonr se puseram à frente de Lucian, e Roma preparou seu arco. Da escuridão no limite do acampamento, Antje saiu ferida. – Eu preciso de ajuda, ela disse antes de desmaiar.

Seus olhos pesavam muito para se manterem abertos, mas ela fez um esforço. O brilho dourado das chamas fazia as faces de Roma e Or’kan brilharem como parte de um exército divino. – Olhe, ela acordou, falou Lafa.

– So-so-corro, disse a sacerdotisa com muita dificuldade.

– O que aconteceu? Questionou Roma.

– Fo-fomos a-ata-atacados, ela respondeu.

– Isso é horrível, afirmou Lucian.

Depois de alguns minutos, Antje conseguiu sentar e contar o que aconteceu após se despedirem. – Um outro grupo de caçadores de masmorra atacaram depois que foram embora, disse a curadora. – Como estávamos feridos, Yure e Raoni não suportaram muito tempo os ataques, eu fui logo rendida.

– Quem eram? Questionou o orc.

– Não conhecia ninguém, a sacerdotisa respondeu. – Quando tive a chance de escapar, eu corri.

– Fez bem, disse Lafa com os braços cruzados.

– Temos que ajudá-los, Bonr, falou Lucian.

– Você mal consegue se manter em pé, disse o guardião. – Provavelmente estão mortos.

– Não! Disse Antje. – Agora lembro! Eles buscavam por uma chave de masmorra.

– Nesta região não há masmorra, interpolou Bonr.

– Sim, há um boato de uma masmorra de alto nível no interior da floresta, mas ela precisa de uma chave-mestra, falou a sacerdotisa. – Segundo as histórias, ela não possui dentes, é pontiaguda como uma adaga e no seu corpo há o sinal de um ídolo.

Depois de uma longa conversa, o grupo de Roma e Or’kan chegou à conclusão de que precisavam ajudar Antje por causa da dívida de gratidão. Por isso destacaram Bonr, Or’kan e Roma para ir com a sacerdotisa, enquanto Lafa acompanharia Lucian de volta à vila. Os primeiros raios de sol já cortavam as densas nuvens da noite quando os grupos se separaram.

A equipe de resgate acabara de chegar ao lugar onde Antje foi atacada com seus companheiros. Sem tempo para reações, Or’kan foi dominado por dois homens antes que pudesse pular para as sombras, Bonr foi acertado com uma pancada na cabeça e Roma estava presa em uma armadilha. – Desculpe, pessoal, disse a curadora. – Eu precisava de vocês.

O que será que Antje e seu grupo estão tramando? Após oferecer ajuda, os aventureiros serão retribuídos com a traição?

Continua

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Previsão para outro capítulo: 15/01/2019

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Olá leitores, gostaria de agradecer a presença de quem acompanha Behemoth. Quero compartilhar com vocês algumas mudanças. A primeira é que Behemoth é o primeiro conto de quatros, os quais terão respectivamente os nomes de: Kraken - Dragão - Leviatã, cada um com foco em uma classe, na sequência de quatro: cavaleiro - mago - arqueiro - sacerdote. Alterei o enredo para que pudesse estender a aventura de Bastian e seus amigos, dando visibilidade e existência a algumas ideias que tive enquanto escrevia o segundo capítulo. A segunda mudança, na verdade é uma ideia, é de que eu irei publicar toda esta série em livros, não decidi se eBook ou impresso (depende do dinheiro que terei disponível :D). A terceira coisa é um pedido que faço, compartilhem com seus amigos e amigas, gostaria de perceber se há acolhimento ao que escrevo, já que o faço para entreter a leitores ociosos (risos!). Obrigado outra vez.