A Lenda dos Sete Trovões - Cap 01: Vida de Camponês

Os primeiros raios de sol invadem o quarto pelas frestas da janela. Mas o garoto só acorda quando o galo, na terceira ou quarta vez, canta empoleirado na cerca da propriedade. Apesar de estar acostumado com as obrigações que o chamam logo cedo, nunca foi tão afeito a acordar literalmente quando o galo canta. De qualquer forma, reconhece que se não fosse o pontual animal, não despertaria todos os dias no mesmo horário.

Orinsuke levanta-se depressa quando percebe os passos do Sr. Onoke em direção à cozinha. O velho tinha mania de ficar irritado quando não via ninguém preparando seu café da manhã. E nesta manhã não foi diferente. Assim que Orinsuke chegou correndo na cozinha, lá estava ele sentado em sua cadeira de estimação, mordiscando um pedaço de pão com a cara amarrada. O garoto tratou logo de preparar a refeição para ver se, de estômago cheio, o velho se acalmava.

---- Este pão está uma porcaria. Duro como casco de mula. Acho que nem as galinhas comem isso. Quando foi que compramos esses pães? --- perguntou o sr. Onoke enquanto arremessava o resto do pão pela janela. Lá fora o típico ruído das galinhas chegando denunciava que elas estavam com fome também.

---- Foi a seis dias. Não, dez dias que compramos esses pães --- o ar se encheu de um cheiro bom quando Orinsuke acendeu a lenha do fogão e misturou ovos com carne fatiada na chapa quente. O chiado e o aroma da comida fez seu estômago roncar e sua boca encher de água.

---- Tem dez dias que não comemos pão fresco? Como deixamos isso acontecer? Você deveria saber que o pão estava no fim. Afinal é seu trabalho olhar essas coisas Orinsuke.

---- Desculpe sr. Onoke --- O garoto tinha acabado de preparar um punhado de arroz e rapidamente começou a preencher o prato do velho ---- É que nos últimos dias tivemos gastos extras lembra? Há cinco dias tivemos que comprar um arado novo. Há três dias foi a vez de comprar um par de ferraduras para a mula. E ontem tivemos que chamar o sr. Ikuma para consertar a roda da carroça. Desculpe mas não deu para comprar os pães que o senhor gostaria.

---- Deixa pra lá --- disse Onoke. Como de costume fez um gesto de agradecimento e começou a comer seu café da manhã ---- É melhor uma carroça em condições de uso do que alguns pães idiotas. Pelo menos temos uma boa carne para comer. Por falar nisso, quanta carne temos?

Orinsuke sentou-se no outro lado da pequena mesa, também agradeceu, e começou a comer seu café da manhã enquanto fazia cálculos em sua mente.

---- A carne só dura até amanhã. Lembra que estávamos sem moedas para pagar o conserto da carroça e tivemos que dar uma boa parte do nosso estoque de carne? Ainda bem que o sr. Ikuma aceitou nossa proposta.

---- Sim, eu lembro garoto --- o sr. Onoke fez cara de poucos amigos ---- Então amanhã nada de carne.

---- Ah, o estoque de arroz só deve durar até depois de amanhã. Portanto, até a próxima colheita devemos ter apenas leite, ovos e algumas verduras.

---- Maldita estiagem --- protestou o sr. Onoke. O mesmo tinha se levantado e olhava pela minúscula janela da cozinha para o lado de fora ---- Este ano os ventos frios vieram com mais força do norte. Ainda bem que as beterrabas e as alfaces gostam de climas assim.

---- Ainda bem mesmo sr. Onoke. Pelo menos teremos o que vender no mercado no domingo --- Orinsuke tinha acabado de terminar sua ligeira refeição de carne e arroz e já arrumava os pratos e tigelas, depois de mergulhá-los num balde com água, e guardou tudo num pequeno armário de madeira antiga, já podre em algumas partes ---- Bem, agora preciso ir. Ainda tem as vacas para ordenhar, consertar uma parte da cerca e irrigar as cebolas.

Minutos depois, utilizando seu surrado casaco de frio, o garoto adentrava o pequeno curral onde o sr. Onoke criava duas mirradas vacas e um boi de tração. Ainda tinha dois bezerros nascidos recentemente, garantindo assim a produção de leite. Depois de amarrar as pernas traseiras da vaca, tendo o cuidado de deixar o filhote próximo da mãe, Orinsuke começou a retirar calmamente o leite em espessos jatos que caiam num balde abaixo. Enquanto isso vez ou outra olhava na direção norte, enxergando no horizonte apenas nuvens carregadas e névoas brancas geradas pelo frio intenso. Sabia que naquela direção estavam as grandes Montanhas da Neve Perene e que era de lá que vinham todo o frio que por semanas assolava a região onde morava. Por alguns momentos ficou perdido em seus pensamentos.

“E pensar que existem pessoas que moram bem mais ao norte perto das montanhas. Lembro do dia em que o sr. Onoke me falou das terras do clã Oriyama, que ficam além da gelada Floresta dos Pinheiros. Eles acumulam o maior número de caça possível para guardar para o inverno. Por isso que se chamam senhores da floresta, pois defendem com unhas e dentes seus territórios de caça. Acho que estão certos, eu também não ia querer ninguém caçando nas terras onde eu mato minha fome. Será que os samurais de lá são tão fortes e corajosos como os senhores do clã Wanabi? Será que um dia eu poderia ser…..o que?! Droga!”

Orinsuke despertou abruptamente de seus pensamentos quando sentiu um líquido quente molhar suas sandálias de couro. O pequeno balde de leite tinha transbordado e derramado uma parte do precioso conteúdo. Por extinto olhou para os lados a agradeceu estar sozinho naquela hora. Se o sr. Onoke visse uma coisa dessas ouviria uma noite inteira de sermões sobre desperdício.

Agradeceu à vaca e voltou correndo para casa, despejando o leite em algumas garrafas. Tampo-as com cuidado e as deixou em cima da mesa. O sr. Onoke não estava no recinto. Foi ao quintal para pegar o regador e lá estava o velho em seu local preferido, um cantinho onde costumava consertar ou reparar algumas coisas da casa, principalmente com madeira. O local era bem rústico, simplesmente um teto sustentado por quatro vigas de madeira, sem nenhuma parede, uma bancada e um pequeno armário.

Orinsuke acreditava que ficava ali relembrando os tempos em que era marceneiro profissional. Nunca entrou em muitos detalhes sobre seu passado, mas certa vez disse que era um dos melhores da região. Mas com o passar do tempo veio o problema nos dedos, as dores e a falta de movimentação. Era somente o que sabia, pois nada mais falava a respeito.

Estava fazendo bastante barulho enquanto revirava algumas caixas procurando algo.

---- Posso ajudá-lo, sr. Onoke?

---- A droga dos pregos acabou

---- Acho que o sr. Ikuma os utilizou quando consertou a carroça ontem. Eu dei alguns para ele. Acho que eram os últimos então

---- E por que você deu nossos últimos pregos?

---- Me desculpe sr. Onoke, não sabia que eram os últimos. Mas o sr. Ikuma disse que precisava dos pregos para o conserto.

---- Como?! --- perguntou indignado o velho Onoke ---- Como alguém que se diz marceneiro não leva consigo os instrumentos de trabalho? Que droga de profissional é esse? Quer dizer que usou meus pregos e ainda comeu minha carne? E agora como vamos consertar a maldita cerca?

---- Mas sr. Onoke, a carne foi o pagamento pelo serviço lembra? O dinheiro acabou faz um tempinho. E podemos dar um jeitinho amarrando a cerca com corda.

---- Ah, cale a boca Orinsuke. Acha que não procurei corda também? E sabe porque não achei? Por que também não temos a maldita corda. E Lá vem você de novo me lembrando da minha penúria. Pare de me dizer que estou sem dinheiro. Eu sei muito bem disso.

---- Me desculpe sr. Onoke. Não queria irritá-lo.

---- Você só sabe pedir desculpas! --- Onoke aumentou mais ainda o tom de voz e olhou para as mãos ---- Acha que é fácil não fazer mais meu ofício?! Acha que foi minha escolha cuidar de lavoura esse tempo todo?! Acha que eu gosto de ficar boa parte do tempo sem dinheiro?! Acha que gosto de morar nessa aldeia no fim do mundo cheia de aproveitadores?! Acha que é fácil alimentar mais uma boca?!

O silêncio se instalou, cortado apenas pelo vento balançando as folhas das árvores. Onoke sentiu o peso e a acidez de suas palavras. Olhava para o chão pois percebeu que tinha passado dos limites, foi duro demais. Quando olhou de volta para Orinsuke, o garoto enxugava as lágrimas. O remorso invadiu seu coração com aquela cena.

---- Olha, garoto. Não ligue para mim, sou apenas um velho rançoso e que fala demais as vezes. E em relação aos pregos eu pensei em levar metade de nossas garrafas de leite e vê o que Miaki lá no armazém tem a nos ofertar em troca. O que acha?

---- Acho uma boa ideia sr. Onoke. Vou lá agora mesmo --- Orinsuke estava com o semblante sério e repleto de tristeza. A ida ao armazém também tinha sido uma ótima oportunidade para sair dali e ficar um pouco sozinho.

A aldeia de Kimoto é um pequeno aglomerado, de não mais de trinta casas, onde moram pessoas, em sua maioria mais velhas e que vivem unicamente da agricultura e da pecuária, com parte da produção transportada para as aldeias maiores da região para ser vendida. Claro que esse trabalho cabia aos poucos jovens do lugar. Localizada no extremo oeste das terras do clã Wanabi, e próxima das margens do rio da serpente, um dos principais cursos de água do Grande Vale, é um lugar silencioso e com quase nada para se fazer.

O ar tinha ficado mais gelado e a caminhada era lenta pela estradinha de terra. Orinsuke andava pensativo enquanto segurava com cuidado o cesto contendo as garrafas de leite e olhava as pequenas propriedades a margem do caminho. Não sabia se o sr. Miaki aceitaria a troca do leite pela caixa de pregos, mas naquela hora não se importava tanto. Estava acostumado com o lado rabugento do sr. Onoke, com sua falta de paciência. Mas sempre tinha aquelas horas em que se sentia um fardo indesejado. Será que o velho só o aceitava porque ajudava na lavoura? Se não estivesse doente das mãos, ainda estaria com ele ou o abandonaria, como fizeram seus pais?

Nestes momentos Orinsuke imaginava como deveria ser viver como um sem teto, mendicando por um simples pedaço de pão todos os dias. Já tinha ouvido falar de pessoas que viviam como animais nas ruas das grandes aldeias. De fato tinha muito mais a agradecer ao sr. Onoke por cuidar dele do que ficar magoado com suas palavras em momentos de raiva. Para alguém com pouco dinheiro, e num lugar tão isolado e frio como Kimoto, não era fácil cuidar de outras bocas quando as vezes faltava até para si mesmo.

Pela segunda vez neste dia, lágrimas corriam em sua face.

Enxugou-as e apressou o passo. Se os deuses o tinham colocado para viver neste lugar, ajudando o velho pai adotivo, então faria o seu melhor.

O centro de Kimoto é onde a maioria das casas se encontram, onde ainda pode-se ver alguma movimentação durante o dia. Pessoas das propriedades mais afastadas costumam vir para cá para trocar informações, realizar as reuniões mensais, fazer compras e rever os amigos. E por falar em amigo, assim que chegou em frente ao pequeno mercado do sr. Miaki, Orinsuke viu uma carroça bastante conhecida.

O velho Miaki sempre mantinha seu mercado em perfeita ordem. Não havia muitos produtos mas tudo era muito bem organizado. Alimentos, ferramentas e material de limpeza estavam bem visíveis em seus respectivos lugares nas prateleiras. E atrás do balcão de madeira lá estava o dono com seu sorriso costumeiro atendendo os clientes. Com certeza de toda Kimoto era o senhor Miaki a pessoa mais importante, e provavelmente a que tinha mais posses. Era ele quem liderava o conselho da aldeia e também realizava viagens constantes à grande aldeia Wanabi para comprar mantimentos para sua loja.

Entre os poucos clientes no interior do lugar, um deles Orinsuke não via a algum tempo. O garoto gordinho estava terminando de falar com o sr. Miaki quando se virou e o encarou com um sorriso.

---- Orinsuke! Há quanto tempo heim!

---- Olá Godi. Como vão as coisas?

---- Ah, você sabe que aqui em Kimoto só o que mudam são as estações. No mais está tudo a mesma coisa. Cuidar da lavoura, dar comida aos animais da propriedade, fazer compras. Meus pais não me dão folga. Ainda mais com essa falta de chuva. Acho que na próxima estiagem eu vou dar um jeito de fugir e correr do trabalho. Pelo menos esse trabalho todo me ajuda a diminuir o excesso né --- Godi apertava a grande pança em quanto sorria para o amigo ---- E você? Como está?

---- Tirando as estações e minha barriga, nada mudou nesses dias para mim --- Orinsuke puxava a pele da barriga magra. Os dois garotos riram gostosamente. Nestas horas os problemas se dissipavam e a alegria de estar com alguém de sua idade, um amigo, era muito bom, mesmo que esses momentos não se repetissem tanto como no passado.

---- Orinsuke! Godi! --- uma voz gritou alegre do balcão.

---- Hei! Olá Han! --- gritaram os dois garotos em resposta. Que maravilha mais um membro do velho grupo aparecer.

Depois de negociar as garrafas de leite em troca da caixa de pregos que precisava levar, embora o sr. Miaki tenha aceitado mais pela amizade antiga com o sr. Onoke, Orinsuke se reuniu do lado de fora da loja com os amigos. Quando eram mais novos, na época em que as responsabilidades não tinham chegado, Orinsuke, Godi, Han e Yume, a garota do grupo, sempre se reuniam para as brincadeiras quando seus pais os levavam para as reuniões do conselho, festividades e feiras livres em outras aldeias. Adoravam aproveitar o tempo explorando os bosques, fingindo ser uma patrulha samurai numa missão. Orinsuke sempre admirou a figura desses guerreiros, com suas habilidades especiais e coragem, portando sempre suas famosas espadas, as katanas.

---- Vocês ainda possuem aquelas espadas de madeira que usávamos? --- perguntou Godi enquanto mastigava uma banana que tinha tirado do bolso.

---- Eu não --- respondeu Han. O mesmo tinha retirado o avental da cintura e colocado sobre o ombro ---- Acho que foi no ano passado que meu pai usou minha espada para consertar uma parte da cerca que faltava. Lembro que na hora não gostei muito, mas depois deixei pra lá.

---- A minha ainda está guardada embaixo da cama --- falou Orinsuke ---- Gosto muito dela, e sempre que olho para ela penso nas nossas explorações. Lembram daquela vez em que o Godi ficou preso num monte de arbusto e demoramos quase uma hora para tirá-lo?

---- ha! ha! ha! E quem não lembra --- gargalhou Han ---- Ficou chorando dizendo que nunca mais ia voltar para casa.

---- Idiotas. Falam isso porque não foram vocês que ficaram presos e espetados no corpo por todos os lados --- Godi puxou rapidamente outra banana do saco que carregava ---- she não fôche a faquinha da Yume ainda istcharia lá precho --- falou enquanto mastigava.

---- Ela sempre dizia que aquela faca era sua verdadeira katana. Uma faca minúscula diga-se de passagem. Não dava medo nem em passarinhos --- falou Han sorrindo.

---- Um verdadeiro samurai nunca despreza sua espada --- disse Orinsuke levantando o dedo indicador para chamar a atenção ---- Ela é a alma do guerreiro.

---- Você sempre levou muito a sério essas aventuras Orinsuke. Essa coisa de samurai é só para brincar mesmo --- falou Han.

---- Concordo --- disse Godi pegando na barriga avantajada ---- Eu mesmo não tenho a mínima condição de tentar ser um samurai. E também não acho que eles cumprem bem sua missão de nos proteger. Não ligam para as aldeias mais distantes como Kimoto. Lembram daquele trio de assaltantes que perambulava nesta região causando problemas? Graças ao conselho, que organizou uma caçada, os bandidos foram presos e levados embora. Nenhum samurai apareceu para nos ajudar.

---- Eles poderiam estar com algum tipo de problema para mandar alguém. O território Wanabi é grande --- disse Orinsuke

---- Para que ter um território se não pode tomar conta? --- questionou Godi.

---- Deixa pra lá Godi. Orinsuke acha que pode ser um samurai e por isso defende eles --- Han amarrou o avental na cintura e acenou se despedindo ---- agora tenho que voltar ao trabalho.

---- Vamos, não precisa ficar assim --- Godi tinha percebido o desânimo de Orinsuke ---- Eu sei que tem admiração, mas essa coisa de samurai não é para garotos como nós. Sabe disso não é? Além do mais, meu pai costuma dizer que a vida de um samurai é repleta de sangue e morte, e que vivem pouco. Eu gosto de minha vida e pretendo morrer bem velhinho. Você não? --- terminou de falar sorrindo e abraçando o amigo.

---- É, acho que tem razão --- disse Orinsuke ---- Mas não custa nada sonhar, não é?

---- Sim, claro, eu também tenho muitos sonhos. Um deles é ter muito dinheiro para montar um restaurante e comer os melhores pratos o dia todo. Mas posso ter isso? Claro que não. É só um sonho. E como diz meu pai, sonhos são feitos para sonhar.

Quando retornou para casa, Orinsuke encontrou o Sr. Onoke em frente ao portão de madeira que dava acesso à propriedade. O mesmo disse que tinha observado o contorno da cerca e percebeu outros pontos que precisavam de reparos e também que “a maldita mula tinha escapado de novo pela passagem quebrada lá atrás no quintal”. Orinsuke demorou mais de uma hora procurando o animal e só o encontrou quando lembrou o local em que a mula gostava de pastar, próxima a um pequeno lago formado pela água da chuva.

O garoto prendeu o animal no curral e voltou apressado para ajudar o Sr. Onoke, que já estava adiantado no conserto da cerca. Orinsuke não gostava de deixar o velho trabalhar sozinho por causa das mãos adoentadas. Sempre que forçava demais os dedos passava a noite toda com dores, tendo que deixá-las constantemente mergulhadas em água morna para aliviar o incômodo. Mas neste dia deu tudo certo e não houve necessidade de cuidados especiais. A dupla terminou os reparos em todos os pontos críticos e no final ficaram contemplando o final de tarde, encostados na cerca. O pôr do sol ao norte era sempre belíssimo de se ver, pintando o céu de lilás, azul e laranja.

---- Mais um pouco e os pregos não dariam para tanto remendo --- falou o Sr. Onoke, quebrando o silêncio.

---- Quando vi a quantidade de buracos na cerca também tive receio de não dar. Mas uma hora ou outra teríamos que consertar essas falhas. Ainda bem que o senhor tem um bom olho para essas coisas. Acho que não teria visto nem metade disso --- Orinsuke começava a arrumar os pregos e as ferramentas num pequeno saco. O velho ficou olhando para o garoto em silêncio.

---- Como foi lá no armazém?

---- O Sr. Miaki gostou do leite. Disse a ele que era de primeira qualidade. E ainda encontrei o Han e o Godi. Conversamos um pouco.

---- Olha garoto --- falou Sr. Onoke, mudando de assunto ---- Quanto ao que aconteceu hoje mais cedo, peço desculpas pelas minhas palavras --- logo em seguida voltou a olhar o horizonte. O sol já estava quase escondido por trás das montanhas ao longe. Orinsuke ficou surpreso com aquelas palavras. Não lembrava da última vez que tinha ouvido um pedido de desculpas do velho. Mas resolveu respeitar o silêncio do mesmo, pois sabia como tinha sido difícil para ele dizer aquilo. Mesmo assim não conseguiu evitar o sorriso que se formou em seus lábios.

---- Ah, o Sr. Miaki mandou lembranças e perguntou quando o senhor iria visitá-lo para uma boa conversa --- foi a vez de Orinsuke quebrar o silêncio, falando de modo sorridente.

---- Pois é, isso é verdade. Faz tempo que não vou à sede da aldeia conversar com o Miaki. Somos amigos de longa data, desde os tempos na grande aldeia. Fazíamos parte da mesma confraria de artesãos marceneiros --- Onoke falava em tom nostálgico. Orinsuke percebeu que o velho viajava a um passado distante.

---- Nada melhor para matar a saudade do que rever os amigos --- mais uma vez lembrou do encontro com Godi e Han no começo da tarde.

Orinsuke torcia para que o Sr. Onoke analisasse com carinho o encontro com o velho Miaki, pois seria uma ótima oportunidade para rever os amigos. Nesta hora lembrou que não tinha perguntado sobre a Yume, e nem Godi ou Han falaram a respeito dela, tamanha foi a empolgação do reencontro. Também estava com saudade da amiga, que não via há semanas.

A verdade foi que o tempo passou e a ida à loja do Sr. Miaki não se concretizou. Diante das atividades rotineiras na lavoura, ou quem sabe por não querer entrar em contato com alguém que lembrasse seu passado, o Sr. Onoke acabou desistindo de fazer a visita ao amigo. Passadas duas semanas do encontro com Godi e Han, Orinsuke estava mais do nunca voltado para as atividades na propriedade. Nesse meio tempo houve uma leve, e muito bem-vinda, pancada de chuva que ajudou muito no crescimento das verduras e hortaliças. As últimas vendas na feira não foram boas, justamente pela falta de uma variedade de produtos. Mas agora as alfaces, as beterrabas, as couves, os brócolis, os espinafres e as cebolas estavam prontas para a colheita.

Nas raras horas vagas durante o dia, antes do cair da noite, Orinsuke aproveitava para tentar algo novo que vinha pensando. Enquanto o Sr. Onoke tirava seu tradicional cochilo no meio da tarde, ia ao quintal munido de cerrote, martelo e cinzel, que pegava “emprestado” do velho, e ficava trabalhando nos pequenos blocos de madeira, tentando dar alguma forma a eles.

Não sabia explicar o porquê, mas sentia uma estranha atração por tudo que era feito de madeira, por isso mesmo admirava as árvores e sua beleza. As formas que o material adquiria nas mãos dos artesãos, como o Sr. Onoke, e a própria textura da madeira era fascinante. Imaginava o cuidado que a natureza tivera para fazer algo tão bonito, moldável pelas mãos humanas e muito resistente ao mesmo tempo. Nessas horas costumava lembrar das inúmeras vezes que, quando criança, ficava vendo o Sr. Onoke dando forma a muitas das peças que hoje estão guardadas em seu quarto. São belas esculturas de madeira na forma de barcos, animais, pessoas e até escritos em alto-relevo.

Imaginava que a marcenaria poderia ser uma boa forma de ganhar a vida no futuro. Apesar de gostar das atividades na lavoura, não pretendia viver para sempre num lugar como Kimoto, mesmo que tivesse de enfrentar o difícil desafio de morar nas aldeias maiores, ou quem sabe até na grande aldeia do clã Wanabi, sendo um garoto do campo. As vezes sentia que de alguma forma estava traindo o Sr. Onoke quando imaginava esse futuro, como se o estivesse abandonando depois de tanto tempo sendo cuidado por ele. Mas a verdade era que não conseguia evitar esses pensamentos, que o assaltavam como um grito abafado de liberdade no fundo do coração.

Mas o que Orinsuke percebia nos momentos que tentava despertar alguma habilidade com as peças de madeira era que, primeiro, para adquirir algum talento nessa área seria necessário muito tempo de treino, tempo esse que não conseguiria dispender durante os dias. E segundo, não tinha a menor habilidade manual para os pequenos detalhes que o ofício de artesão marceneiro exigia.

Por muitas vezes em seus treinos acabava machucando os dedos com o martelo ou espetando-os com várias farpas dolorosas. Quando o Sr. Onoke perguntava o motivo dos dedos enfaixados, a resposta era sempre a mesma: “nada não, são os calos no manuseio da enxada”. Era a desculpa perfeita e ele sempre acreditava, ou fingia acreditar. Tinha receio da reação do velho se soubesse que estava usando suas ferramentas na tentativa de aprender um ofício. Na verdade não queria decepcioná-lo pela falta de habilidade.

Orinsuke sentia crescer em seu coração uma angústia, algo que ele não sabia nomear, como se uma voz o chamasse para algo que ainda não sabia o que era. Ela estava sempre ali, presente, constante, sutil e poderosa, a ponto de o impulsionar a tentar realizar coisas novas, como a marcenaria. Mas quando percebeu que essa tentativa não atendia ao que aquela voz queria, que a angústia permanecia e os machucados nos dedos aumentavam, se via mergulhado em frustração e desânimo.

“Não sirvo para nada mesmo. Godi tem razão. Sempre teve razão”

Naquela tarde Orinsuke disse a si mesmo que não machucaria mais os dedos. Continuaria com as verduras e hortaliças.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 21/01/2019
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