Orinsuke - Capítulo 03: Vida de Camponês

Aldeia de Kimoto – tempo atual

Orinsuke acorda para mais um dia de trabalho, repleto das mesmas rotinas conhecidas. Até a natureza repete seus gestos diários com o galo cantando no alto da cerca, o mugido das vacas e o relincho da mula. Nunca gostou de acordar cedo, mas quando o primeiro raio de sol adentra pela janela do quarto, sabe que a responsabilidade o chama.

Morando apenas com seu pai adotivo, o velho e rabugento Sr. Onoke, na pequena propriedade rural, na pequena aldeia de Kimoto, Orinsuke desde cedo aprendeu a valorizar o trabalho no campo e a lidar com as atividades domésticas. Em locais como Kimoto, é comum garotos e garotas trabalharem duro no dia a dia para ajudarem seus pais e mães.

A aldeia de Kimoto é um pequeno aglomerado, de não mais de trinta casas, onde moram pessoas, em sua maioria mais velhas e que vivem unicamente da agricultura e da pecuária, com parte da produção transportada para as aldeias maiores da região para ser vendida. Claro que esse trabalho cabia em sua maior parte aos jovens do lugar. Localizada no extremo oeste das terras do clã Wanabi, próxima do rio da serpente, um dos principais cursos de água em Endo, é um lugar silencioso e com quase nenhuma diversão.

Orinsuke levanta-se depressa quando percebe os passos do Sr. Onoke em direção à cozinha. O velho tinha mania de ficar irritado quando não via ninguém preparando seu café da manhã. E nesta manhã não foi diferente. Assim que Orinsuke chegou correndo na cozinha, lá estava ele sentado em sua cadeira de estimação, mordiscando um pedaço de pão com a cara amarrada. O garoto tratou logo de preparar a refeição para ver se, de estômago cheio, o velho se acalmava.

- Este pão está uma porcaria. Duro como casco de mula. Acho que nem as galinhas comem isso. Quando foi que compramos esses pães? - perguntou o sr. Onoke enquanto arremessava o resto do pão pela janela. Lá fora o típico ruído das galinhas chegando denunciava que elas estavam com fome também.

- Seis dias atrás. Não, dez dias que compramos esses pães - Orinsuke acendeu a lenha do fogão e misturou ovos com carne fatiada na chapa quente. O aroma da comida fez seu estômago roncar e sua boca encher de água.

- Tem dez dias que não comemos pão fresco? Como deixamos isso acontecer? Você deveria saber que o pão estava no fim. Afinal é seu trabalho olhar essas coisas Orinsuke.

- Desculpe, Sr. Onoke - o garoto tinha acabado de preparar um punhado de arroz e rapidamente começou a preencher o prato do velho - É que nos últimos dias tivemos gastos extras lembra? Há cinco dias tivemos que comprar um arado novo. Há três dias foi a vez de comprar um par de ferraduras para a mula. E ontem tivemos que chamar o Sr. Ikuma para consertar a roda da carroça. Desculpe mas não deu para comprar os pães que o senhor gostaria.

- Deixa pra lá - disse Onoke. Como de costume fez um gesto de agradecimento e começou a comer seu café da manhã - É melhor uma carroça em condições de uso do que alguns pães idiotas. Pelo menos temos uma boa carne para comer. Por falar nisso, quanta carne temos?

Orinsuke sentou-se no outro lado da pequena mesa, também agradeceu, e começou a comer seu café da manhã enquanto fazia cálculos em sua mente.

- A carne só dura até amanhã. Lembra que estávamos sem moedas para pagar o conserto da carroça e tivemos que dar uma boa parte do nosso estoque de carne? Ainda bem que o Sr. Ikuma aceitou nossa proposta.

- Sim, eu lembro garoto - o velho fez cara de poucos amigos - Então amanhã nada de carne.

- Ah, o estoque de arroz só deve durar até depois de amanhã. Portanto, até a próxima colheita devemos ter apenas leite, ovos e algumas verduras.

- Maldita estiagem - protestou o Sr. Onoke. O mesmo tinha se levantado e olhava pela minúscula janela da cozinha para o lado de fora - Este ano os ventos frios vieram com mais força do norte. Ainda bem que as beterrabas e as alfaces gostam de climas assim.

- Ainda bem mesmo, Sr. Onoke. Pelo menos teremos o que vender no mercado no domingo - Orinsuke tinha acabado de terminar sua ligeira refeição de carne e arroz e já arrumava os pratos e tigelas, depois de mergulhá-los num balde com água, e guardou tudo num pequeno armário de madeira antiga, já podre em algumas partes - Bem, agora preciso ir. Ainda tem as vacas para ordenhar, consertar uma parte da cerca e irrigar as cebolas.

Os moradores da aldeia dependem exclusivamente do resultado de suas colheitas e pequenos rebanhos para garantir o sustento de suas famílias. Não é uma comunidade miserável, mas seus habitantes aprenderam a duras penas, ao longo de gerações, a lidar com dificuldades, principalmente aquelas trazidas pelo clima, que dita as regras às quais todos precisam se adaptar, como por exemplo a atual estiagem, que mergulhou Kimoto e as outras aldeias da região num período de frio e escassez de chuva.

O problema não está na temperatura, bem mais branda do que no inverno, quando despenca de vez e a neve cai sem cessar, e sim na falta de chuvas, o que torna a vida do agricultor bem complicada, já que uma parte de suas plantações dependem da preciosa água vinda do céu para se desenvolver. Portanto, Orinsuke, o Sr. Onoke e os demais habitantes de kimoto vivenciam um novo momento de dificuldade regido pelo ciclo imprevisível da natureza.

Logo depois de terminar de organizar a cozinha, Orinsuke, utilizando seu surrado casaco de frio, adentrava o pequeno curral onde o Sr. Onoke criava duas mirradas vacas e um boi de tração. Ainda tinha dois bezerros nascidos recentemente, garantindo assim a produção de leite.

Depois de amarrar as pernas traseiras da vaca, tendo o cuidado de deixar o filhote próximo da mãe, começou a retirar calmamente o leite em espessos jatos que caiam num balde abaixo. Enquanto isso, vez ou outra olhava na direção norte, enxergando no horizonte apenas nuvens carregadas e névoas brancas geradas pelo frio intenso. Sabia que naquela direção estavam as grandes Montanhas da Neve Perene e que era de lá que vinha todo o frio que por semanas assolava a região onde morava. Por alguns momentos ficou perdido em seus pensamentos.

“E pensar que existem pessoas que moram bem mais ao norte perto das montanhas. Lembro do dia em que o Sr. Onoke me falou das terras do clã Oriyama, que ficam além da gelada Floresta dos Pinheiros. Dizem que são os maiores caçadores entre os clãs do norte, acumulando o maior número de caça possível e guardando-a para o inverno. Por isso são chamados de senhores da floresta, pois defendem com unhas e dentes seus territórios de caça. Acho que estão certos, eu também não ia querer ninguém caçando nas terras onde eu mato minha fome. Será que os samurais de lá são tão fortes e corajosos como os senhores do clã Wanabi? Será que um dia eu poderia ser…..o que?! Droga!”

Orinsuke despertou abruptamente de seus pensamentos quando sentiu um líquido quente molhar suas sandálias de couro. O pequeno balde de leite tinha transbordado e derramado uma parte do precioso conteúdo. Por extinto olhou para os lados a agradeceu estar sozinho naquela hora. Se o Sr. Onoke visse uma coisa dessas ouviria uma noite inteira de sermões sobre desperdício.

Agradeceu à vaca e voltou correndo para casa, despejando o leite em algumas garrafas. Tampo-as com cuidado e as deixou em cima da mesa. O Sr. Onoke não estava no recinto. Foi ao quintal para pegar o regador e lá estava o velho em seu local preferido, um cantinho onde costumava consertar ou reparar algumas coisas da casa, principalmente com madeira. O local era bem rústico, simplesmente um teto sustentado por quatro vigas de madeira, sem nenhuma parede, uma bancada e um pequeno armário.

Orinsuke acreditava que ficava ali relembrando os tempos em que era marceneiro profissional. Nunca entrou em muitos detalhes sobre seu passado, mas certa vez disse que era um dos melhores e que tinha trabalhado para uma grande guilda na aldeia-capital. Mas com o passar do tempo veio o problema nos dedos, as dores e a falta de movimentação. Era somente o que sabia, pois nada mais falava a respeito.

Estava fazendo bastante barulho enquanto revirava algumas caixas procurando algo.

- Posso ajudá-lo, Sr. Onoke?

- A droga dos pregos acabou

- Acho que o Sr. Ikuma os utilizou quando consertou a carroça ontem. Eu dei alguns para ele. Acho que eram os últimos então

- E por que você deu nossos últimos pregos?

- Me desculpe Sr. Onoke, não sabia que eram os últimos. Mas o Sr. Ikuma disse que precisava dos pregos para o conserto.

- Como?! - perguntou indignado o velho Onoke - Como alguém que se diz marceneiro não leva consigo os instrumentos de trabalho? Que droga de profissional é esse? Quer dizer que usou meus pregos e ainda comeu minha carne? E agora como vamos consertar a maldita cerca?

- Mas Sr. Onoke, a carne foi o pagamento pelo serviço lembra? O dinheiro acabou faz um tempinho. E podemos dar um jeitinho amarrando a cerca com corda.

- Ah, cale a boca, Orinsuke. Acha que não procurei corda também? E sabe porque não achei? Por que também não temos a maldita corda. E Lá vem você de novo me lembrando da minha penúria. Pare de me dizer que estou sem dinheiro. Eu sei muito bem disso.

- Me desculpe Sr. Onoke. Não queria irritá-lo.

- Você só sabe pedir desculpas! - Onoke aumentou mais ainda o tom de voz e olhou para as mãos - Acha que é fácil não fazer mais meu ofício?! Acha que foi minha escolha cuidar de lavoura esse tempo todo?! Acha que eu gosto de ficar boa parte do tempo sem dinheiro?! Acha que gosto de morar nessa aldeia no fim do mundo cheia de aproveitadores?! Acha que é fácil alimentar mais uma boca?!

O silêncio se instalou, cortado apenas pelo vento balançando as folhas das árvores. Onoke sentiu o peso e a acidez de suas palavras. Olhava para o chão pois percebeu que tinha passado dos limites, foi duro demais. Quando olhou de volta para Orinsuke, o garoto enxugava as lágrimas. O remorso invadiu seu coração com aquela cena.

- Olha, garoto. Não ligue para mim, sou apenas um velho rançoso e que fala demais as vezes. E em relação aos pregos eu pensei em levar metade de nossas garrafas de leite e vê o que Miaki tem a nos ofertar em troca lá no armazém. O que acha?

- Acho uma boa ideia, Sr. Onoke. Vou lá agora mesmo - Orinsuke estava com o semblante sério e repleto de tristeza. A ida ao armazém também tinha sido uma ótima oportunidade para sair dali e ficar um pouco sozinho.

O ar tinha ficado mais gelado e a caminhada era lenta pela estradinha de terra. Orinsuke andava pensativo enquanto segurava com cuidado o cesto contendo as garrafas de leite e olhava as pequenas propriedades a margem do caminho. Não sabia se o Sr. Miaki aceitaria a troca do leite pela caixa de pregos, mas naquela hora não se importava tanto.

Orinsuke estava acostumado com o lado rabugento do Sr. Onoke, com sua falta de paciência. Mas sempre tinha aquelas horas em que se sentia um fardo indesejado. Será que o velho só o aceitava porque ajudava na lavoura? Se não estivesse doente das mãos, ainda estaria com ele ou o abandonaria, como fizeram seus pais?

Nestes momentos Orinsuke imaginava como deveria ser a vida como um sem-teto, mendicando por um simples pedaço de pão todos os dias. Já tinha ouvido falar de pessoas que viviam como animais nas ruas das grandes aldeias. De fato tinha muito mais a agradecer ao Sr. Onoke por cuidar dele do que ficar magoado com suas palavras em momentos de raiva. Para alguém com pouco dinheiro, e num lugar tão isolado como Kimoto, não era fácil cuidar de outras bocas quando as vezes faltava até para si mesmo.

Pela segunda vez neste dia, lágrimas corriam em sua face.

Enxugou-as e apressou o passo. Se os deuses o tinham colocado para viver neste lugar, ajudando o velho pai adotivo, então faria o seu melhor.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 04/02/2019
Código do texto: T6566499
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