O Mini Pretoriano

Outra tarde entediante. Estou sentado à frente do computador, um modelo desktop que ocupa boa parte da mesa branca, esta situada no meio da sala. Logo acima de mim está minha estante de livros, que ocupa a metade superior da parede. Como sinto orgulho dela. Custou caro, apesar de não ser a melhor de todas, mas é o que eu consigo pagar. Mesmo assim é um sentimento de conquista admirar assim toda a minha coleção.

Não são só livros que coloco para decorá-la. Há também várias pedras, brinquedos montados, uma coroa, matrioskas, um cogumelo do Mário, cavaleiros medievais montados e a pé, soldados da segunda guerra, um action figure de anime, catapultas e soldados romanos. Me orgulho de cada um deles.

Às vezes tenho a impressão de que minhas coisas estão vivas, de que enquanto eu as olho, elas me olham de volta. Mera imaginação, é claro. Não falo mais com elas fingindo que estão vivas, como fazia quando criança.

Um barulho me chama a atenção entre as estatuetas. Uma ou outra parece fora do local que me lembro de ter colocado. Talvez não. Não importa. Volto a me concentrar no computador. Ouço de novo. Agora o romano de plástico estava caído e o de metal estava na frente dele. Eu tenho certeza que não foi onde deixei. Tem alguma coisa errada.

Olho fixamente para as peças estranhamente mexidas. Passo longo tempo fitando-as, sobretudo o romano cor de bronze. Eis que, após vários minutos, ele se mexe:

— Tá bom, eu me rendo! Você me pegou!

A fala completamente inesperada do ser que deveria ser inanimado fez com que eu pulasse para trás. Desajeitadamente caí no sofá, sem entender o que estava acontecendo. Fiquei ainda alguns segundos paralisado, tentando achar alguma explicação para meu delírio. Enquanto eu racionalizava o impossível, mais sons saíram da coisa falante.

— Por que está me olhando assim? Sou Tito Petrônio Níger, um pretoriano honrado. Dou minha palavra que não vou fugir. Eu aceito minha punição.

— Punição? Pelo quê? — Ele fez um gesto para que eu me aproximasse.

— Olha, vamos combinar o seguinte: fingimos que nada aconteceu e eu juro por Marte que ficarei quieto da próxima vez. Sacrifico uma ovelha para dar força à minha palavra.

— E onde é que vou achar uma ovelha pra você sacrificar?

— Ora, vocês bárbaros criam várias nessas áreas campestres e selvagens. Fora as que saqueiam nas invasões — disse o brinquedo, com a maior naturalidade do mundo.

— Ah, sei… Então você é uma estatueta falante civilizada e eu sou um ser humano bárbaro? — Falei com debochada compreensão.

— Isso mesmo! Até que os selvagens dessa região são inteligentes. Mas pode deixar que vou te ensinar a educação latina. No início alguns povos ficam envergonhados de aceitar nossos costumes diferentes, mas depois de um tempo eles se adaptam. Você até vai preferir!

— Aham… Aí quando esses “povos envergonhados”, como você chamou, não querem romanos mandões na casa deles, o que vocês fazem?

— Bem, nós organ…

— Já sei, já sei. Fazem uma visita com suas legiões para convencê-los, não é?

— Se o senhor tem algo a dizer sobre meu grandioso império, fale logo de uma vez…

— Tudo bem então. São um bando de invasores, mercenários, raspadinhos e com saiotes ridículos.

— Ora essa! Não ouse insultar o uniforme da minha legião de novo, seu estrangeiro peludo, senão vou empalá-lo com minha espada… Uma maior, na verdade... Roma só quer o bem deles! O que posso fazer se eles não enxergam isso? São crianças que precisam de uns tapas do pai.

— Ok. Onde estávamos mesmo? Ah, sim! — E envolvi-o totalmente com apenas uma mão, retirando-o bruscamente da prateleira — Eu ia te punir.

— AAHH! Meu senhor, perdoe minha insolência, não quis ofender! Por favor, me ponha no chão! — Coloquei-o delicadamente na mesa do computador — Bom, como eu ia dizendo, meu amo, acho que não há necessidade de castigo. Ninguém me viu, além do senhor. E para o meu mestre não tenho o que esconder.

— Está perdoado. Me diz uma coisa: a quanto tempo você fala?

— Desde sempre.

— E por que não falou antes?

— Você nunca me perguntou nada antes — falou ele sorrindo.

— Tá… E os outros falam, ou só você?

— Falam sim, mas era melhor que não falassem. Nunca saiu nada que preste daqueles lá. Não é à toa que eu que mando neles.

— Mudando de assunto, por que o mini lanceiro que me custou uma fortuna está derrubado e com a lança torta?

— Bem… — Ele fez uma pausa, enquanto eu o encarava inquisidoramente — Ele que ficou na frente! Já cansei de falar para ele que eu que lidero esse exército. Como pretoriano eu tenho que tomar a dianteira. E ele insiste em me afrontar. Não posso deixar um soldado raso passar impune com tamanho desrespeito.

— Mas fui eu que coloquei você atrás.

— E daí? Ele tem que continuar mudando de lugar.

— Olha, Tito…

— Petrônio, por favor — corrigiu enfático o romaninho.

— Tá bom… Mas seu nome não é Tito?

— Na verdade é meu pré-nome. Meu nome é Petrônio. Só minha mãe me chama de Tito. É para me diferenciar do meu pai, que também é Petrônio.

— Pré-nome... — repeti confuso, ainda pensando.

— Sim. Em locais civilizados, ou seja, os que estão dentro dos domínios de Roma, temos um pré-nome, usado apenas pela família, um nome e um sobrenome. Então, o senhor deve…

— Escuta, Petrônio — falei meio irritado — aqui não é Roma. Aqui é minha casa e quem manda sou eu. E peço que você não destrua as outras miniaturas. Custaram muito caro.

— Na verdade, sinto dizer, meu amo, que, se eu estou aqui, é porque essas terras agora são do Império. Fico feliz de trazer a paz romana para esse local ermo e violento.

— Trazer a paz?

— Sim. O senhor mesmo ajudou nessa minha missão. Saímos daquele lugar onde invasores cruzavam constantemente nossas fronteiras com lanças.

— Você está falando da casa da minha sogra? Claro que fomos embora, eu casei e comprei esse apartamento...

— Sim! E nos salvou das feras enormes!

— Feras? Ah, sim! Os cachorros! Bom, eles eram grandes demais para virem morar aqui…

Então minha cachorra branca, Alba, atraída pelas vozes vem para a sala verificar o que era toda aquela agitação.

— Júpiter, mais poderoso dos deuses! Afaste esse lobo gigante de perto de mim! Não deixe ele me engolir, meu senhor! A pior morte é ser devorado por feras na Arena.

— É só um cachorrinho manso, seu latino medroso — disse a ele gargalhando.

— Não tem graça. Já vi esses bichos estraçalharem muitos de meus colegas.

— Certo, Tito… — disse destacando seu pré-nome, para provocá-lo.

— Petrônio — corrigiu novamente.

— Eu prefiro Tito e vou te chamar assim.

— Mas…

— Cala a boca.

— Sim, senhor…

— Tito, percebi que você é meio… como posso dizer… sua pele é muito escura para ser um cidadão romano.

— Sou do Egito. É um reino que fica na África. É domínio romano. O sobrenome Níger vem da cor de minha pele e de meus parentes.

— Sei onde é. Meio longe de Roma. Mas você não sofre preconceito dos cidadão da Itália?

— Itália?

— Digo, dos cidadãos que moram na capital do Império.

— Ah, às vezes. Mas já estou acostumado. E mesmo eles não costumam desafiar guerreiros com gládios na mão — falou a estatueta zombando.

— É, acho que você está certo — E sorri.

— Aqui também parece longe de onde estou acostumado a lutar. Estamos onde? Na Gália?

— Mais Longe. Na América.

— América?! Pelos deuses, onde é isso?

— Olha, podemos dizer — tentei explicar debilmente — que é do lado da África, mas primeiro tem que cruzar um oceano inteiro.

— Entendi. Então é numa ilha perto da África — disse Tito com convicção.

— É. Podemos dizer que sim…

— E qual é o povo de vocês? — Perguntou curioso.

— Somos brasileiros.

— Nunca ouvi falar.

— Huuum. — pensei por um segundo numa referência mais fácil e disse — Podemos dizer que somos descendentes dos portugueses.

— Portugueses? — Disse o pretoriano ainda mais confuso.

— Ah, sim! Somos parentes dos lusitanos!

— Mas é claro! Por que não falou antes? Conheço os lusitanos. Já fui na Lusitânia aplacar várias revoltas e matei vários rebeldes lá. Bons tempos aqueles das Guerras Púnicas… — falou sozinho, nostálgico — Desculpe, sem ofensa aos seus parentes. São águas passadas.

— Sim, sim. Não tem problema. São parentes distantes…

Um som de chaves batendo se aproxima da porta. É minha esposa chegando em casa.

— Tenho que ir, meu senhor. Foi muito bom conhecer pessoalmente o meu mestre. Quem sabe não nos falemos de novo. — Disse o soldado, com orgulho legítimo.

— Pode deixar, Tito, ainda temos muito o que conversar. Até a próxima.

Então, gentilmente o peguei com uma das mãos novamente e o coloquei na prateleira alta, junto aos seus companheiros inertes. Levantei o soldado com a lança que Tito derrubara, e recoloquei-o à frente, em destaque, como ele preferia.

Ele olhou para mim com um sorriso, seguido de um aceno de cabeça marcial. Com marcialidade repentina, realizou a saudação militar romana, batendo o punho direito fechado contra o peito e depois estendendo o braço, com a mão espalmada reta bem à frente do corpo, na altura do ombro — um gesto muito parecido com o que consideraríamos hoje uma saudação nazista, apesar de que não era o caso para a época do romaninho. Então respondi com igual vigor. E meu querido subordinado voltou à postura congelada e inexpressiva de costume.

Minha esposa entra em casa e me encontra sentado em minha cadeira de estudos, na frente do computador, que vista debaixo assumia um aspecto colossal.

— Está estudando, meu bem?

Estava olhando para minha coleção de bonecos, especialmente para o Pretoriano. Qual era mesmo o nome dele? Não lembro. Estava recostado na cadeira, confortável e distraído, da mesma forma que estive antes daquela conversa estranha. Será que ela ocorrera de verdade? Não tinha mais certeza. Parecia tudo como antes.

— Estou sim, minha linda.

E não pensei mais nisso.